No âmbito do 20º Festival Internacional da Amadora, e por convite da direcção do festival, na pessoa de Nelson Dona, e sob coordenação da comissária geral pelo núcleo principal deste ano ("XX anos, balanços e perspectivas de duas décadas de BD em Portugal"), Sara Figueiredo Costa, tive a honra e o grato prazer de ter sido convidado a organizar uma exposição. Sendo esta a minha segunda participação curatorial (que palavra...) no FIBDA (após o Divide et Impera, em 2007), e seguindo as linhas mestras do que comporia a exposição que assinalaria os 20 anos do festival, foi-me dada carta branca para pensar um sub-núcleo que servisse de complementarização aos outros núcleos, mais associados às ideias de retrospectiva e de balanço. Para mais, era-me pedido que procurasse uma forma em que fosse possível (re)pensar que tipo de relações a banda desenhada poderia fundar ou criar com outras áreas artísticas, nomeadamente a das artes galerísticas e museológicas (artes visuais), temperado pela noção de contemporaneidade.
Aviso desde logo que as razões e os fundamentos conceptuais que me levaram ao desenvolvimento da ideia central, uma espécie de espectro entre duas famílias criativas a que dei o nome de "formalistas" e "discursivos", o modo como entendo o significado, valor e peso da palavra-conceito "contemporaneidade" (que vai para além de uma mera circunstancialidade cronológica e relacional), o que ditou as escolhas e ainda a possibilidade da sua extensão, foram expostas no texto que explicita este núcleo expositivo, e que encontrarão no livro publicado pelo FIBDA intitulado Almanaque FIBDA XX Anos, já disponível.
Por outro lado, tendo em conta a importância que um objecto impresso, distribuível, final, assume quer para os autores, quer para mim, leitor, quer para os organizadores deste núcleo específico, achou-se por bem colocar à vista (ainda que, infelizmente, não à disposição e leitura) algumas das publicações que ao longo de alguns anos, têm dado a conhecer o trabalho destes autores. Não tendo havido oportunidade de apresentar uma casa mais arrumada, apresentou-se uma vitrina algo caótica, mas consequente em relação à "família" a que diz respeito. Eis algumas imagens.
Os autores que resolvi reunir são Bruno Borges [aqui ao lado], Miguel Carneiro, Joana Figueiredo, André Lemos, Carlos Pinheiro, João Maio Pinto e Nuno Sousa. É assim que se forma "A Contemporaneidade na Banda Desenhada Portuguesa", cujo sub-título deve ser levado em conta e seriamente: "Uma opção de perspectiva. Dos Formalistas aos Discursivos". Ou seja, não deve ser sequer entendida como uma escolha final, absoluta, nem fechada. É uma opção ditada por alguns princípios, aplicáveis nesta ocasião.
31 de outubro de 2009
FIBDA 2009, Contemporaneidade.
Algumas ou outras razões que me levaram a esta escolha, de uma forma solta, são as seguintes:
1. por acreditar que a banda desenhada é um território tão amplo e livre como qualquer outro modo de expressão, pretendi complementar as frentes que estão usualmente bem representadas neste festival com uma "outra" família de produção;
2. resolvi dar preferência a um grupo de autores que nunca estiveram presentes no FIBDA de um modo acentuado ou de todo (salvo o facto de dois deles, Joana Figueiredo e Bruno Borges, terem sido premiados no concurso há longos anos, e o André Lemos [aqui ao lado, com o filho] ter integrado os 17 autores na "Embaixada" criada então);
3. tal como ocorre noutros festivais, certames, encontros, mostras, etc., de qualquer outra área criativa, preferi sublinhar aquelas tendências que se encontram numa ponta de experimentação e caminhos paralelos aos mais percorridos, acrescentando às retrospectivas e antologias esta perspectiva (possível) de novidade, pois penso que o FIBDA tem tudo a ganhar em dar espaço também a essas frentes (e isto independentemente do tempo da "carreira" destes autores, tendo em conta que o André Lemos anda nestas andanças há quase 20 anos também);
4. tentei construir um grupo que, não obstante a sua aparente ou real diversidade estilística, constroem uma rede coesa de referências, estratégias, interesses e linhas de força [aqui ao lado, Joana Figueiredo].
Dito isto, estão todos convidados a visitar o FIBDA, que tem muitas outras exposições merecedoras da vossa atenção: uma imensa mostra de Oesterheld, a exposição do trabalho de António Jorge Gonçalves para o livro Rei que, como se discutiu aqui, é mais forte no seu domínio visual, o destaque retrospectivo a Rui Lacas, que mostra toda uma série de forças diversas que lhe atravessam a carreira, os Israel Sketchbooks do Ricardo Cabral, de que falaremos, espero, uma magnífica, ainda que pequena, mostra da editora Planeta Tangerina, talvez a exposição cuja cenografia é a mais conseguida do festival, as pranchas de Osvaldo Medina para Mucha e A Fórmula da Felicidade, as retrospectivas dos concursos e a colecção de originais do CNBDI, que tem autênticas pérolas (a prancha de E.T. Coelho é - apesar de me colocarem em territórios mais "experimentalistas" não sou cego nem intolerante - incrível), a exposição de Lepage que, apesar de não ser um autor interessante na minha óptica, tem um domínio técnico e até virtuoso da aguarela que envergonha muitos daqueles que se passam por mestres nesse campo (ao que João Maio Pinto [aqui ao lado] me ajudou a compreender), e outra meia-dúzia de coisas mais ou menos ocultas. Há também, claro, exposições às quais passei ao largo.
Ficam os agradecimentos, mais uma vez, à direcção e coordenação do Festival - independentemente das diferenças de visão e discrepâncias de modos de trabalho, discutidas frontal e educadamente - , assim como a toda a equipa que arregaça as mangas e que me ajudou a concretizar a exposição da melhor forma.
Na página de vídeos do Público (Ípsilon), encontrarão alguns depoimentos meus em torno desta exposição: aqui.
Publicada por Pedro Moura à(s) 7:59 da tarde
Etiquetas: Academia, Exposições, Portugal
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4 comentários:
Caro Pedro,
Parabéns pela exposição (que pela distância só poderei acompanhar por estas fotos). A escolha dos autores e a proposta da exposição parecem bastante interessantes e acertadas. Porém, tenho uma dúvida.
Mesmo sendo uma exposição de "retrospectiva e de balanço" - e entendendo as diversas causas que levam a minha impressão - , pelas fotos, ficou-me uma sensação que normalmente tenho em exposições de banda desenhada: muitos trabalhos em pouco espaço e uma ideia de "apreciação" de fragmentos de algo deslocado de seu lugar, perdendo, em parte, a ideia de obra.
Se havia uma intenção de procurar "uma forma em que fosse possível (re)pensar que tipo de relações a banda desenhada poderia fundar ou criar com outras áreas artísticas, nomeadamente a das artes galerísticas e museológicas (artes visuais), temperado pela noção de contemporaneidade" não seria mais interessante repensar o próprio formato de exposição de BD?
Um abraço.
Pedro
Olá, Pedro. Tudo bem?
A pergunta que fizeste é não só extremamente pertinente como vexante, pois não tenho criatividade suficiente para poder responder da melhor forma, isto é, criando um bom sistema de exposição da banda desenhada. Não me quero escapar a respondê-la, pois penso sobre elas bastas vezes e não tenho os conhecimentos suficientes que desejava, mas será incompleta.
Há uns anos (2002?) houve uma exposição em Angoulême, que não vi mas conheço através do catálogo/livro, chamada "Les Musées Imaginaires de la Bande Dessinée". Essa exposição mostrava as várias dimensões da banda desenhada sob a forma de vários museus, por exemplo, da História Natural (mostrando a evolução das personagens como se fossem criaturas vivas, ou a tipologia dos balões), de Etnologia (mostrando objectos que pertenceram a Corto Maltese), etc. É uma excelente ideia, mas que acaba por cair numa ideia glorificadora da encenação espectacular para os "clássicos" da banda desenhada, o "dar vida" às personagens e livros mais famosos, etc.
Por outro lado, uma das ideias mais simples e mais eficazes era a de um espaço onde estariam disponíveis os livros em torno de mesas e sofás confortáveis: uma biblioteca-sala de leitura. Afinal, não é a banda desenhada para ser lida?
No entanto, sabemos que a curiosidade das pessoas vai mais além do que vêem reproduzido nesse objecto de consumo final e absoluto, querem ver o processo, os truques, querem ir até à fonte, ao "original" (claro que, desde Benjamin sabemos que não há original nas artes da reprodução). Além do mais, procura-se sempre expor inéditos, como se a parede passasse a ser um veículo possível de publicação (e não o era, no século XIX?).
A "Divide et Impera" foi desenhada por um amigo meu, designer, António Gomes, e a disposição das pranchas, o modo como estava distribuído, etc., era todo significativo (pranchas na horizontal, outras perpendicularmente às paredes, um dos trabalhos projectados). Esta foi feita de um modo mais simples, quase de improviso, mas a minha ideia era criar constelações dos trabalhos de cada autor e irmaná-los de acordo com uma ideia (que como disse, não é de forma alguma definitiva). Optei por mostrar muitas das publicações em que eles foram publicados, mas era impossível deixá-las acessíveis aos visitantes, por razões óbvias.
Existem muitas exposições excelentes de banda desenhada, mas até à data não conheço nenhuma que deixasse esta ideia da "prancha na parede". A "Out of Sequence" tinha soluções cenográficas interessantes (tornando a parede num efectivo veículo de publicação, paginação e significação); a "Comic Release!" criava um espaço de diálogo entre as artes visuais e os comics de um modo relativamente inovador...
Esta experiência não visava recriar a roda, mas tão-somente mostrar um grupo de autores que, no seio da "cena" da banda desenhada portuguesa actual, têm feito um trabalho sustentado e que podem servir de exemplo a uma ideia de contemporaneidade informada por outras disciplinas artísticas (o que os torna relativamente diferentes de outros autores, com as suas excelências, mas que optam por seguir caminhos mais consensuais, clássicos, nítidos).
Existem artes cujo espaço de divulgação, fruição e prazer não é a "white box" das galerias e museus: o cinema, os posters, o grafitti, a música, a literatura, e a banda desenhada. Qualquer tentativa de as arrastar para este espaço é uma violência à sua ontologia e materialidade. Temos é de pensar numa violência que seja pertinente e nos faça ganhar uma nova dimensão de apreciação.
Mas como?
Abraços,
pedro
Eu gosto de ver banda desenhada original nas paredes de um museu. Prefiro mil vezes isso do que ter bonecada pintada nas paredes, "para contextualizar". Quando vou a uma exposição quero ver os originais do autor, perceber o seu processo de trabalho, não quero um circo à volta da coisa, como é costume ver-se na Amadora.
Um abraço,
M
Olá, Pedro. Por aqui tudo bem. Espero não estar sendo inconveniente por continuar a conversa ou estar me alongando demais em meu comentário. Mas me interessa essa questão, e tenho muitas incertezas sobre o assunto.
E sobre o que digo não me refiro a esta exposição especificamente, mas sim nesta questão entre a BD (já me acostumo à sigla) num espaço de arte e suas relações com este maldito adjetivo: 'contemporâneo'.
Não acho que se trate apenas de encontrar uma forma. digamos, criativa de apresentar os trabalhos e sim da maneira como o artista articula as relações do seu trabalho em um determinado espaço. Falaste da música, cinema e do grafitti, e mesmo estas expressões conseguiram relações talvez mais acertadas com a arte contemporânea. Lembremos do Fluxus, de Matthew Barney e Marina Abramovic (neste sentido o projeto Destricted parece uma referência interessante) ou , de Basquiat, dos recentes Banksy e os brasileiros Os Gêmeos.
Concordo que falar em trabalhar a banda desenhada em seu campo expandido seja um tanto fraco e acho bastante importante ao falar de BD quando afirmas que "não é possível ver, estudar, analisar, apreciar um determinado modo de expressão ou artístico através dos instrumentos ou percepções ou parâmetros suscitados por um outro. As crises de uma arte não coincidem com as de uma outra. As especificidades de uma determinada linguagem artística não invalidam cruzamentos e aberturas, claro está, mas ambos devem ser ponderados, negociados e verificados nas suas pertinências analíticas. "
Estes cruzamentos e aberturas é que acho pertinente explorar. Digo, que a BD na arte não seja um fim, mas uma disciplina a se "apropriar". Acho, por exemplo, que o já citado Basquiat as vezes fazia em sua pintura banda desenhada. Ou mesmo diversos casos de criadores que resenhas em teu blog, que aparentemente, não têm uma relação explícita com a BD.
Acho que estou me alongando e sendo bastante confuso. Em resumo...não seria mais interessante num caso destes abandonar esta proposta de "retrospectiva e de balanço" e que fossem criados trabalhos cujo fim fosse a galeria e que articulassem com o meio da mesma forma que utilizam o livro impresso ou mesmo que se apoiasse em questões entre processo, documento e obra e não tanto em questões formais?
Espero não ter sido confuso ou dito coisas sem muito sentido!
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