O que há numa vida? (primeira resposta)
O 20º volume da ANL dá continuidade à história das personagens de uma “experiência de narrativa pictogramática que junta gelo designada arbitrariamente, como mera conveniência, ‘Rusty Brown’”, como se lê na capa da ANL no. 16, que dera início a este novo projecto. Desde então, com a excepção do no. 18, que reunia alguma das partes de um outro projecto em curso, Building Stories, com este novo volume temos quatro num mesmo formato, oblongo, que retrata as vidas de várias personagens cujo ponto de encontro diegético é uma escola secundária do Midwest, num quase perpétuo Inverno, se não em termos meteorológicos, pelo menos em termos da moral, melancólica como um manto inalienável. (Mais)
Tudo leva a crer que Ware pretende dar uma intensificação diferente em Rusty Brown e em Building Stories em relação a aspectos explorados no seu romance - neste caso em particular a palavra faz bem mais sentido genealógico - Jimmy Corrigan. Mas cada uma dessas intensificações é diametralmente oposto em termos de escala. Building Stories concentra-se quase em absoluto num só edifício e os seus moradores, apesar de haver uma maior atenção para uma protagonista mulher. É como se as personagens principais fossem essa mesma mulher e o prédio que habita, e se se procurasse explorar a relação estabelecida entre as duas, de modos mágicos e que abrem as memórias mútuas. Rusty Brown, por sua vez, pega em duas personagens de histórias menores de Ware, o própro Rusty Brown e Chalky White, dois nerds amantes de banda desenhada, ficção científica e outras das sub-culturas desse tipo, para desenhar o que parece ser um prisma em permanente mutação e expansão. Não são apenas essas duas personagens, nas suas infâncias, que se colocam no centro da atenção do autor, mas muitas das outras personagens em seu torno, agora mais distantes, agora no centro (o próprio Ware “desempenha” um papel, de professor de desenho). O grau de polifonia de Rusty Brown promete ser extremamente complexo, ao ponto mesmo de ruptura, isto é, em que uma determinada narrativa de uma personagem poderá nem sequer inflectir significativamente na de uma outra. Criam-se, nessa rede de narrativas díspares apenas unidas por aquele intervalo espácio-temporal da escola do Midwest nos anos 1970-80, linhas tangenciais uma às outras, fazendo emergir uma complicada estrutura, mas talvez nunca unificada por um centro nevrálgico qualquer.
Lint pode portanto ser lido tanto autonomamente como integrado enquanto capítulo, desagregado, tangencial, de Rusty Brown (ou outro título que venha a se decidir quando da sua completude). Lint centra-se em total exclusividade na vida de Jordan Lint, uma personagem que, até à data, parecia ser apenas secundária, um daqueles adolescentes meio-perdidos que parecia não ter nada mais que fazer senão somente atormentar os miúdos mais novos - particularmente o pequeno Brown, perseguir com interesse sexual Allison White, a irmã de Chalky, fumar charros, inclusive com o professor Ware, e fazer outro tipo de asneirices por todo o lado… Mas em Lint, a sua vida está no centro, desde o momento do seu nascimento até à morte. Em rápidos e sucessivos trechos narrativos, uma página por “episódio”, testemunhamos toda a sua vida. Chris Ware opta por uma constante variedade de composição de páginas, apresentando algumas das suas complexas grelhas fechadas, quase estanques, como outras bem mais livres e fragmentadas - especialmente nas cenas de abertura (o nascimento, a emergência da consciência, o surgimento da percepção da linguagem articulada, o que recorda o exercício de Chester Brown em Underwater) e do fecho (a dissolução na morte) - assim como todas as variações intermédias (inclusive a representação da perspectiva do seu próprio filho, quando este transforma as suas próprias memórias de infância numa obra autobiográfica que revela Lint como um monstro).
Ware é um autor magistral no que diz respeito à representação do humano. Não procura jamais fórmulas fáceis, nem apresenta um acontecimento como trauma para justificar uma acção futura. Todos os acontecimentos são apresentados tal qual, em toda a sua plenitude humana, demasiado humana. Não há partidarismos sobre o mal ou o bem, nem é possível julgar Jordan enquanto má ou boa pessoa. É tão egoísta como os outros, e tão capaz de vislumbrar a beleza e sentir uma emoção fortíssima como os outros. Os erros que carrega são dele mesmo, comparáveis aos dos demais, mas são eles que o moldam enquanto ser humano.
Se existir algo que possa passar por tressage neste volume, são toda uma série de círculos ao longo das páginas, que tanto podem ser objectos tangíveis da diegese - como um candeeiro de tecto, uma ervilha, um cilindro de brincar, uma flor ou um bolo vistos de cima, um olho separado - como podem ser parte integrante das estruturas da banda desenhada - sob a forma de bullet points do texto ou uma auréola recortando uma vinheta pequena -, como podem ainda ser simbólicos de uma sensação: as mais das vezes, um enxame de círculos brancos em torno do “terceiro olho” de Jordan sempre que atinge um orgasmo. Este “enxame” corresponde também àquele de círculos vermelhos e pretos que se forma logo ao início, formando o corpo ou a imagem especular do corpo de Jordan, que se repete na cena de dissolução final.
Ware parece ser um adepto daquele tipo de humor filosófico que vê a vida como uma doença sexualmente transmissível e com uma taxa de mortalidade de 100%. Ou naquela piada de George Carlin que imagina a vida muito mais feliz se fosse ao contrário, largando a morte logo ao princípio, tornando-nos mais jovens a cada dia, ganhando responsabilidades e trabalho, depois divertirmo-nos, largar todas as tarefas para sermos acarinhados e finalmente terminarmos num orgasmo. Mas leiamos o livro na sua direcção correcta ou de trás para diante, o mesmo tipo de tristeza, de aparente falta de sentido, de natureza desagregada de interpretações maiores e fechadas conceptualmente, manter-se-á. Apenas a ficção e o tratamento que ela permite garantirá a uma vida a sua assunção significativa. De resto, as nossas próprias vidas sabem ao mesmo à medida que as vivemos. É nesse sentido que Ware é magistral, capturando o humano de uma maneira tão rara.
Há dezenas e dezenas de momentos em que Ware desarruma o espaço de representação mais expectável da banda desenhada, não mostrando apenas os corpos das suas personagens, mas certos diagramas que aumentam o espaço dessa mesma acção. Ou texto que flutua por sobre as imagens, provocando outro tipo de intensidade e relações entre texto e imagens. Outros ele emprega técnicas tentadas em Building Stories, para desarrumar os próprios corpos, alterando subitamente perspectivas, focalizações, jogando com representações de reflexos e memórias e fantasias, ou brincado com perspectivas e composições complexas como aquela em que a sua primeira mulher o acorda do sofá, e o braço parece estar na continuidade natural do seu corpo, trazendo acima questões de poder entre os dois cônjuges e a amante que surge entre ambos pelo sonho erótico/recordação de Jordan, etc. Qualquer tentativa de descrição linear do trabalho de Ware debater-se-á com os obstáculos criados pela dimensão visual e compositiva, que tira partido das linhas de fuga temporais e de representação possíveis.
Não é de somenos importância que o nome de família de Jordan, e que dá nome ao livro, seja “Lint”, que é a mesma palavra utilizada para aqueles fiapos e restos de tecidos (de têxteis, pele humana, pó) que se acumula nos cantos da casa, em filtros, e até no umbigo. Cotão. Resquícios de coisas usadas, partículas mínimas e sem importância que são largadas pelos objectos que os continham e encontram na sua união, em bolas, algum grau de visibilidade, mas apenas para mais facilmente serem limpas. Mais de metade do pó nas nossas casas é feito de nós mesmos. Células mortas largadas pela pele. A nossa matéria foi feita de pó das estrelas, na fórmula, a um só tempo poética e científica, de Carl Sagan. É num acumular de mortes sucessivas que a vida se vai criando, e este volume encerra uma vida completa.
Repare-se que Chris Ware utiliza todo o objecto publicado para criar a sua narrativa - se bem que pedaços dela tenham sido publicados antes noutros locais, como jornais e antologias, a sua existência enquanto livro transforma-o num texto coeso, o que obriga a uma atenção redobrada da sua valência entre a colecção de textos menores que fazem o texto sobre Jordan e a sua consideração enquanto parte de um texto maior, que imaginamos será publicado num só gigantesco volume quando terminar. As guardas do livro não são parte paratextual mas texto. No primeiro diagrama que se vê, há uma estrutura complexa que mostra sucessivas vistas parcelares e encaixadas, que vão desde o universo à galáxia da Via Láctea ao planeta à cidade à casa onde Jordan nasceu ao olho de uma testemunha à estrela que lhe brilha atrás dos olhos. Uma outra linha faz atravessar esses elementos pelo objecto do livro, como se uma máquina de transposição de escalas se tratasse. O livro enquanto máquina escópica universal.
Depois dá-se o início à narrativa propriamente dita, mostrando cotão acumulado nos cantos de uma casa, antes de vermos as células a dividirem-se e a formarem Jordan. No outro extremo do livro, Jordan tem um último orgasmo moribundo e entrega-se novamente à quadricromia que se desfaz em círculos e se dissipam no branco da última guarda, ao som de um “I am” para sempre incompleto, mas que fica marcado na contracapa. A vida de Jordan encerra-se entre estas capas e deixará apenas cotão? A verdade é que a sua sobrevivência está assegurada não apenas no próprio livro como nas outras partes em que participa na saga de Rusty Brown.
É conhecido como Ware é obsessivo. Isso não é problema nenhum, na medida em que a obsessão de Ware é recompensada pelo facto de que o seu esforço, foco e trabalho se canaliza na construção de obras perfeitas. Perfeição no sentido em que a sua leitura e interpretação não terão fim, e permitem a promessa de um moto contínuo de desdobramentos, não no sentido de uma perfeição absoluta, de silêncio. Como se disse, o livro é uma máquina escópica, e isso apenas nos obriga a ler e ver e reler e rever.
10 de setembro de 2011
Acme Novelty Library no. 20. Lint. Chris Ware (Drawn & Quarterly)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:06 da manhã
Etiquetas: EUA
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4 comentários:
Outra excepcional análise.
Muito obrigado pelo esforço, que ajuda a dignificar esta novena arte.
Caro Manuel,
Agradeço as palavras, mas a dignificação da arte é mais conseguida pelos próprios artistas.
Acho curiosa a expressão "novena arte", se bem que possa não entender o alcance que pretende com ela. Simplesmente abomino a expressão "9ª arte" (razões as quais apresentei noutro lugar), mas talvez queira falar de uma maratona de 9 dias apenas ligado à banda desenhada: um festival em que tudo, desde os espectáculos às refeições, fossem baseados nas bandas desenhadas. Alinho.
Faço já "salada de frutas cristalizadas à Petzi".
Pedro
A banda desenhada é tão inclusiva que me parece excessivo cercar-se nela mesma durante 9 dias consecutivos. A menos que então o resto de tudo esteja lá também e que os 9 dias se alarguem para tempo indeterminado.
Mas não vim para dizer nada disto. :-)
Também sou da opinião que o trabalho de Ware é perfeito e que a humanidade nas suas personagens tem tanto um carácter centrífugo como centrípeto na estrutura da narrativa: é através dela que a diegese se dispersa – e aí comprometa então a linearidade – e é pelos destroços destas pequenas revelações que construímos a(s) personagem(s). Bricolage. O afinidade gráfica com elementos geométricos, e sobretudo o uso do círculo, em ware, faz todo o sentido, pois - e para além de outras consequências - por mais teias que construa, por mais complexa que seja a construção da personagem, ela encerrará apenas um ser humano, como diz, como outro qualquer, mas sempre idiossincrático e resumido num ciclo, que pode sim, ser um pedaço de cotão – é perfeito! Parece-me que todo o ambiente estrutural demasiado arrumado (esquemático) de Ware, sirva também o propósito de poder desarrumar humanamente as suas personagens – e que isso se traduzirá num aumento de informação, que só a “arrumação” permite levá-la ao sufoco de nos vermos ali, saltando de pensamento em pensamento, de vontade em vontade para, no fim, assistirmos - e sermos também - à desistência de uma qualquer potencialidade, cheia de "outras" coisas acontecidas...
Aproveito para perguntar se a assistência às conferências da CBDPT é gratuita e aberta a qualquer interessado sem inscrição prévia.
Obrigada.
Agradeço as palavras, Isabel, se bem que não posso responder-lhe ponto por ponto. Os livros de Peeters e Samson e o colectivo americano de que falei faz pouco tem um manancial incrível para dar continuidade e sistematicidade às suas reflexões. Aconselho vivamente a leitura, se é que não já os tem.
Quanto às CBDPT, a entrada é totalmente gratuita e livre, mas haverá caixinha das contribuições...
Obrigado,
Pedro Moura
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