16 de janeiro de 2012

Mister Wonderful. Daniel Clowes (Pantheon)

O autor chama a esta obra de “midlife romance”, na contracapa. Em inglês, o segundo termo restringe-se a “romance de amor”, e o primeiro é o qualificativo, relacionado com “a crise dos 40” (ou dos 50 ou 60, conforme o caso). Ainda na língua inglesa, em certos círculos, fala-se, quando se procura por um parceiro na felicidade amorosa, de um “Mr. Right” (por cá é “Príncipe Encantado”)… O título é, a um só tempo, um exagero, de “certo” para “maravilhoso”, e uma ironia, já que o protagonista, Marshall, estará longe de preencher o papel adivinhado por essa palavra. Ou não?
Marshall faz parte dessa linha de personagens que Clowes tem moldado nas últimas décadas. Solitário depois de um casamento que tinha todos os ingredientes para falhar, uma vida profissional frágil, uma cada vez mais distante relação com o mundo que o rodeia e cresce em direcções que ele despreza, e mergulhado numa bílis que ora não compreende ora não domina e o cega para os seus próprios preconceitos (como todos nós), Marshall parece encontrar apenas consolação em pequenos prazeres ridículos ou então nos discursos que vai tecendo para si mesmo - e que são acedidos pelos leitores. E a mulher com quem ele inicia uma relação, Natalie, não é de todo muito diferente desse retrato clínico, se bem que a “bagagem” dela defira da dele. Em suma, e mais uma vez, surgem aqui duas personagens derrotadas pelas circunstâncias de uma vida fraca e que nada deve ao glamour da ficção, e é o embate de ambos que poderá provocar uma qualquer faísca. No entanto, o abismo da focalização, da voz, do protagonismo, vem de um ponto de dentro de Marshall.
Quando finalmente a mulher com quem havia marcado um encontro às cegas, Natalie, aparece, raramente temos acesso às palavras que ela diz, mesmo vendo os contornos e colocação dos balões de fala que lhe pertencem. Essas elocuções estão ocultas pelos pensamentos de Marshall, apresentados sob a forma de legendas narrativas. Isso diz muito das estratégias de Clowes, que afunilam, quase de modo claustrofóbico, sobre o protagonista, e ao mesmo tempo à personalidade de Marshall, a um certo grau de autocomiseração, de sentimentos paradoxais de inferioridade e superioridade e de ensimesmamento quase extremo. Isso encontra o seu acme no surgimento de uma espécie de pequeno Marshall demoníaco, avatar cartoonesco típico da consciência (e, ao mesmo tempo, não sendo impossível livrar-nos da sensação de ser uma homenagem ao Mr. Mxyzptlk de Curt Swan). E as sistemáticas interrupções de fantasias na cabeça de Marshall (idênticas àquelas feitas por Chris Ware em Jimmy Corrigan), mas num regime de representação chibi. E a autoconsciência de que ele é capaz, deslizando “na auto-depreciação no interior do meu próprio monólogo” (pg. 42). Em suma, uma personagem tão patética como a esmagadora maioria do bestiário a que Clowes nos tem habituado.
Uma ilha surge neste ensimesmamento, e toda a narrativa se altera subitamente, quando, devido a um assalto, Marshall é obrigado a tomar a iniciativa, e física, e violenta, para resolver o problema. Todo o regime narrativo se altera e passamos a “escutar” ambas as personagens num plano de igualdade. Mas é uma ilha, ilusória, e voltamos aos trilhos habituais num ápice. Essa interrupção ecoa no trilho da narrativa as tais interrupções estilísticas que Clowes faz ao regime “normal”, no trilho da imagem. É verdade que em Ice Haven o que agora se pode apelidar de “heterogeneidade gráfica” (segundo lições de Thierry Smolderen e Thierry Groensteen) era mais radical e diversa. Mas isso não nos impede de encontrar aqui “mudanças de registos gráficos [que] interpelam directamente o receptor, dificultando a função transitiva da imagem e pondo em dúvida o lugar hegemónico do relato” (como lemos num artigo intitulado “La(s) aventura(s) de la forma. La heterogeneidad gráfica como vía de experimentación en el cómic”, de Álvaro Nofuentes, apresentado em Alcalá de Henares). Não nos parecendo que a “verdade” suposta do que Marshall nos conta está colocada em questão em termos tão profundos, a utilização desses registos mais abonecados podem querer dar conta de várias coisas: o desespero de causa das fantasias de Marshall, a natureza dos tais prazeres mínimos (ele é cliente assíduo do ebay, logo coleccionador/comprador compulsivo, logo…), a inocuidade desses mesmos ensejos, etc.
Clowes consegue criar em duas ou três penadas (vinhetas, entenda-se, o que exige algum esforço bem além dessas “penadas”) um qualquer ambiente social e o modo enviesado com que nos dá a conhecer os seus elementos e habitantes através das suas personagens levam-nos, por vezes, a concordar com elas (isso não ocorre em Wilson). A sua gestão do espaço de composição - tendo em conta que este é um livro oblongo, e o número de vinhetas é diminuto - encontra-se num controlo excelente. Repare-se como, nesta prancha, numa cena de diálogo, que muitos autores medíocres ou presos a géneros determinados, pensam ser “desinteressantes”, Clowes consegue dar a ver uma rápida evolução entre a relação das personagens, tirando partindo do enquadramento e da focalização, do afastamento e aproximação das personagens, do aparente crescimento do vento que os envolve, da gestão dos silêncios das falas e equilíbrio das legendas narrativas, e do repentino “corte” que faz do casal de todo o ambiente, para que se sublinhe o estado atingido dessa relação. E, mais, da narrativa, em que apenas a atenção e entrega dos leitores ao que é dito com tão pouco faz ver por completo a alma aberta de Marshall, e assim, a promessa de uma resolução comum. Talvez não feliz, mas comum, pelo menos.
Independentemente da vida pessoal de Clowes, que não só não nos interessa como não nos deveria interessar, a sua visão das relações pessoais e amorosas, nas obras, parece ser sempre lúgubre. Ao contrário da esmagadora maioria das produções cinematográficas do mainstream, com as quais partilha muitos dos elementos, dos ambientes, das tramas narrativas de encontros e desencontros, Clowes atinge conclusões bem diversas. Quiçá tão ficcionais quanto os “happy endings”, diga-se de passagem, mas pelo menos capazes de auscultar de uma maneira mais realista e mais digna da capacidade que o ser humano tem em errar, magoar os outros e fazer-se de estúpido. Se o final de Mr. Wonderful é tão erroneamente “maravilhoso” como o seu título, ou se na verdade a “maravilha” se encontra na capacidade de crer ainda no mais profundo âmago do patético e do derrotismo, cada leitor decidirá.
Mister Wonderful foi pré-publicado episodicamente no The New York Times Magazine, o que levaria a pensarmos numa possibilidade de nova vida da banda desenhada nos jornais, não regressando a fórmulas impossíveis de repetir de um tempo supostamento “áureo” (quer da produção da banda desenhada quer do papel específico dos jornais), mas antes procurando novas maneiras de associar públicos específicos, modos contemporâneos da banda desenhada, técnicas de reprodução, edição, serialização e circulação. Recordemo-nos da experiência de Zentner e Mattotti com Le bruit du givre, de Chris Ware com The Building Stories, de Art Spiegelman e In the Shadow of No Towers.

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