O encontro entre a poesia e a banda desenhada não é inédito, e tem uma história bastante variada e bela. E se bem que essa mesma história exija que se encontrasse uma maneira precisa de identificar o que seria a poesia, ou a poesia em banda desenhada ou a banda desenhada poética (e alguns teóricos e investigadores deste campo fizeram-no, ou tentam-no, cada qual com as suas vias, como Renato Calligaro ou Deniz Deprez), não nos referimos aqui a adaptações de poemas a este meio, número tremendo para iniciar a sua contagem, mas a trabalhos que podem ser tanto colaborações entre poetas e autores de banda desenhada como autores de banda desenhada que a empregam para criar um modo poético no seu interior. Alguns destes pontos já haviam sido abordados a propósito do livro de Luís Manuel Gaspar.
O encontro entre a filosofia e banda desenhada também não é inédito, ainda que a sua presença não seja tão marcada, e levante problemas de uma ordem bem diversa. Também aqui não nos referimos a meras adaptações de textos ou à utilização da banda desenhada como veículo de educação e simplificação sobre um determinado autor, nem de encontros criativos muito interessantes (como Logicomix) que todavia se mantêm num território espartilhado de exposição. Falamos de empregar este meio expressivo para aquilo que Foucault escreveu sobre a “actividade filosófica”, a saber, “o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo”, “a tarefa de saber como e até que ponto é possível pensar diferentemente”, ou mais dificilmente de entender, mas justíssimo, actividade que tem “o direito [de] explorar o que, no seu próprio pensamento, pode ser mudado mediante o exercício que faz de um saber que lhe é exterior”. E, finalmente, acrescenta que a forma eficaz - “o corpo vivo da filosofia” - de o fazer é o ensaio, “prova modificadora de si mesmo no jogo a verdade” (História da Sexualidade, Vol. 2). Não se tratará, portanto, de detectar qualquer momento de “mandar postas de pescada” sobre este ou aquele assunto, mas de escavar no interior de um pensamento, o que é menos imediato. Nesse sentido, talvez algumas páginas de Fabrice Neaud, as máquinas ficcionais dialogantes com Deleuze de tom Dieck e Balzer, e algumas frases (num sentido musical, que seria caro ao autor) de Baudoin se aproximem dessa tarefa.
Os dois livros que aqui trazemos à discussão cerzem ambas essas linhas. Se bem que o espaço que separa a poesia e a filosofia é, pelo menos desde Platão, um abismo, não significa tal que não se tenha arriscado a construção de pontes possíveis entre os dois regimes discursivos. É possível que estes dois livros o façam também. Passíveis de serem lidos em conjunto, não apenas por uma questão superficial dos objectos serem similares e atravessarem condições de produção próximas (exposição primeira em blogs, sequente edição em livro para um circuito limitado) é sobretudo pelas afinidades estilísticas, temáticas e filosóficas que parecem agregar que a leitura dupla se reforça. Não sendo propriamente livros conducentes ao acéfalo entretenimento ou cumprimento das fórmulas narrativas-económicas de outros títulos de maior circulação (e inerte maior “sucesso”), é possível que apenas conquistem uma fímbria reduzida de público leitor, mas creiamos que leitores que respondam à aplicação exigida pelos mesmos.
Mr. Klunk e o Senhor Klaxon. Jorge Matos e Paulo Azevedo (livros espontâneos)
Este livro é composto por pequeníssimos relatos que tanto podem ser lidos - isto é, analisados - individualmente (cada página é uma situação narrativa auto-suficiente), como nas séries agregadas (que os autores apelidam de “actos” e que são tituladas), como na sua totalidade. Dessa forma, são “poemas inconjuntos”, para citar Pessoa, que é presença clara nas histórias. Diegeticamente, tratam-se de nódulos narrativos em locais e tempos muito específicos (uma praia, as ruas de uma cidade, à noite próximos de uma taberna), em que as duas personagens - um homem que se adivinha ser um velho solitário, Mr. Klunk, e um cão falante com almejos de humanidade, Senhor Klaxon - digladiam argumentos em torno da condição humana (e canina, ambas espelhando-se de modos tão distorcidos quanto iluminadores, se nos recordarmos de “Investigações de um cão”, de Kafka, que topedro adapta no seu livro).
O resultado é uma estranha combinação do aforismo, do apólogo dialogal, e da anedota. Encontram-se naquele estranho balanço de humor de que Miguel Carneiro também faz uso com o seu Senhor Pinhão, onde a súbita clareza profunda do que é dito se anula pela brutalidade do humor contraposto, mas a primeira ainda assim deixa fazer os seus sentidos através da segunda. “Ilude-me com qualquer coisa, Klunk!”, pede Klaxon. “Dormi bem esta noite!”, responde o homem. Irrisório? Brilhante? As duas personagens são cínicos, no fundo, o que reforça ainda mais a noção canina da humanidade: recordemo-nos de que o termo é, originariamente, uma escola filosófica que aplica o apodo de “canino” (kunikos), com Antístenes e Diógenes. Klunk e Klaxon vivem ou ocupam papéis marginais da sociedade, e, por isso, utilizam essa distância para encontrar as facetas criticáveis e odiáveis nos outros, se bem que isso os impeça de serem capazes, ao mesmo tempo, de encontrar prazer em singelezas ou numa moralidade mais robusta e abrangente. Ambos ladram ao mundo, enquanto este lhes passa ao lado.
Esta natureza, digamos, política das personagens, esta distância e não-inscrição na normalidade dos modelos, é corroborada de uma maneira acabada pela parte visual do livro. Os desenhos de Jorge Matos são constituídos por um punhado de rabiscos. O termo é técnico. São aquelas linhas lançadas sobre o papel em primeiríssimo lugar para aí estabelecer o espaço, o campo, a divisão da área virgem, e onde se construirá o desenho com todos aqueles elementos que concorrerão para que ele seja visto como “final”. Não procura o artista, porém, essa finalidade. E seja a grafite, caneta ou marcador, combinando ou não essas ferramentas, tirando ou não partido de instrumentos digitais, quer a personagem humana quer o cão constituem-se sempre de modos diversos e flutuantes graças à aglomeração dessas poucas linhas. Isto poderia recordar muitos outros autores que tiram partido desta abordagem mínima (mas não “minimalista”, atenção), quer conducentes a um virtuosismo gráfico como Saul Steinberg, quer à exactidão expressiva de um Artur Varela, quer ainda à suficiência de Matt Feazel. No entanto, se há área à qual estamos aqui próximos, será aquela de uma expressividade nervosa, orgânica, impetuosa - e associada a conteúdos temáticos também irmanáveis - de um estilo que se tornou a matéria-prima de artistas como Gerald Scarfe ou Ralph Steadman, acima de quaisquer outros.
Talvez não seja por acaso que o nome da editora seja livros espontâneos. É da espontaneidade que de facto este livro parece viver, mas uma espontaneidade que obriga, pelo contrário, a uma pausa substancial na sua consideração.
Mores et al. Topedro (auto-edição)
Se o livro anterior deste autor construía uma só narrativa alongada, e de alguma densidade dramática, este segundo volume reúne também “peças” mais pequenas, e muito diferentes entre si. Uma primeira história, “Mores”, a mais longa, é um encadeamento mais ou menos solto, mais ou menos lógico, de uma série de pensamentos ou citações filosóficas - ditas pelas bocas dos mais diversos cidadãos comuns, de transeuntes a utilizadores de transportes públicos a prostitutas de rua, de mulheres às compras a polícias de trânsito - que fazem convergir ideias sobre a relação do homem com a moralidade, com uma suposta transcendência, com o papel da natureza, e daí a ligações sociais com a polis, as artes, e o corpo. Algumas das histórias que se seguem, e esta descrita, pelos intervenientes, têm aquele carácter de humor misto de que falámos a propósito do livro de Matos e Azevedo, anedotas que veiculam lições profundas ou pensamentos desconfortáveis mas necessários. Trabalhadores de obras públicas discutem a natureza da física contemporânea, e o modo como se aproximam menos das categorias empíricas e positivas de Aristóteles do que de outras mundividências, como as de Heraclito e Empédocles. Cita-se Aldous Huxley para encontrar os pomos de discórdia e as sementes de concórdia entre ciência e fé, religião e filosofia.
Estas histórias mergulham, então, em discursos abstractos, filosóficos, mas sempre procurando que ligações são possíveis de lhes dar um peso ou uma gravidade terrena, à escala humana. Procura-se menos uma transcendência absoluta e poética do que a beleza da imanência humana. Isso está reforçado no que se poderia chamar de segunda parte do livro, de um tom mais autobiográfico e mais contextualizado de forma concreta.
Como dissemos acima, há também aqui uma adaptação do conto-ensaio de Kafka, “Investigações de um cão”, que poderia ser comparada com Um mês e um dia, de Ruth Rosengarten, em termos de matéria plástica e composição estrutural, assim como da lição profunda filosófica que aproxima, na sociedade ocidental, o homem e o cão. Em termos de banda desenhada, topedro (ou Topedro), ou estará menos interessado num virtuosismo da linguagem desta área do que a possibilidade de dar a ver imagens que possam informar (aqui, “dar forma”) as palavras do escritor checo. Os desenhos são novamente construídos por breves linhas a art pen (imaginamos), depois adensadas por aguadas a pincel (a reprodução digital não permite perceber se o papel suporte é texturado, logo estas imagens parecem flutuar numa superfície anódina). Se a esmagadora maioria das estratégias de composição são simples, e até mesmo arbitrárias - e continua a empregar legendagem mecânica - , a verdade é que há um ou outro momento em que as estruturas podem ganhar um significado substancial (na história de Huxley, as aparentes divisões arbitrárias podem querer dar conta dos abismos já referidos e das tentativas de os pular).
Veja-se esta história, “O Seixo”, completa, para compreender o modo como o autor transforma a paisagem num plano a duas dimensões, cujas linhas convergentes servem para fundar a chegada a esse plano de imanência e integração na natureza.
É possível que haja quem pegue numa pedra e a deseje arremessar, por não a compreender à primeira. Não saberemos se a compreendemos ou não, mas queremos também sopesá-la.
Nota final: agradecimentos aos autores, pela oferta de ambas as publicações.
21 de janeiro de 2012
Klunk, Klaxon, Mores. Matos e Azevedo, topedro (auto-edição).
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:21 da tarde
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2 comentários:
Caro Pedro:
Tive a oportunidade de ler o livro “Mores” após uma troca de “géneros” entre mim e o António Ribeiro. E reli-o 3 vezes (A natureza traiçoeira dos livros quando são de alguma densidade e profundidade obriga à revisitação). Penso que utilizar as formas adjectivais banais de “excelente”, “bonito”, “cativante”, não serão as mais indicadas para qualificar um livro que seja. No entanto são intelectualmente as palavras mais honestas que encontrei após as leituras por mim efectuadas.
O encontro crítico que o Pedro fez entre os dois livros a é pertinente e assertivo.
Um abraço
Fico contente que possa ter ajudado a apresentar uma obra à outra.
Obrigado,
Pedro.
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