Esta obrinha de Rui Lacas teve origem num jornal ou boletim (ou misto de ambos), associado ao projecto Travessa da Ermida, intitulado Efeméride. Pelas suas características físicas, permitia que as imagens de Lacas tivessem um espaço amplo para se mostrarem, e a sua reedição (com material inédito adicional) num formato três vezes menor, transforma significativamente a mesma. É que, onde num jornal grande, numa paginação que raramente escapa da vinheta única ocupando toda a página, ou duas vinhetas ora horizontais ora verticais, dá-nos a ver planos grandes das linhas e manchas, e o próprio acto físico de folhear a observar leva-nos a uma proximidade a essas imagens, a uma imersão mais íntima, que não se repetirá neste formato menor. Transforma-se toda a matéria numa outra fruição do texto (este entendido como a equação holística entre a história, as imagens, a estruturação, as cores, etc.).
A história é simples, curta e singela. Uma breve sinopse quase que a esgotaria: nessa travessa de Belém, é incumbida ao padre que toma conta da Igreja de Nossa Senhora da Conceição a tarefa de guardar uma caixa de jóias, aparentemente do rei. Estas são misteriosamente roubadas, e igualmente em mistério devolvidas, passando por um sonho de um milagre, ou talvez milagre mesmo. Outro acontecimento interrompe o arco dessa acção, porém, com a chegada súbita da República, e o fim das jóias é transformado.
Como explica Catarina da Ponte no prólogo, e o próprio projecto da Travessa deixa claro, o “mote” dado a Rui Lacas consistiria no cruzamento diegético de três elementos que compõe o núcleo cultural desse ponto de encontro: o local de culto, as jóias e o vinho, tudo associado a ramos explorados contemporaneamente. Assim sendo, desconhecemos (haveria de se perguntar ao autor) se esta história se baseia num folclore local, num boato beato guardado, ou se é da lavra total do autor. Em todo o caso, ela encaixa-se na perfeição na possível história, na tradição local e no projecto específico com que se associa.
Não há espaço para grandes desenvolvimentos, nem nos parece que seja esse o desejo do autor. Não se procura explicitar a história pessoal do padre, explorar que tipo de relações ele estabelece com a população local de um modo complexo, apresentar individualmente as personagens que se cruzam, nem sequer dar voz a todas elas… A Ermida não é um exercício psicológico narrativo, a que Rui Lacas já se entregou com A Filha do Caranguejo, por exemplo (também da Polvo). No entanto, não estamos aqui naquele território mais leve que o autor também explorou em Asteroid Fighters ou nas curtas de City Stories. É algo que se encontrará a meio nessa rede de relações de complexidade narrativa e construção psicológica das personagens. Com duas ou três vinhetas, uma expressão facial e corporal e a proximidade com as personagens que a circundam, rapidamente Lacas consegue tornar distinta a personalidade deste mesmo padre.
O trabalho do autor, em termos visuais, tem aqui uma destreza mais consensual do que conseguira em Merci, Patron! As condições e circunstâncias de trabalho também terão levado a esse resultado, mas há em A Ermida uma plasticidade redonda, um paciente e equilibrado jogo de linhas e áreas brancas, um inteligente uso da pinceladas de segunda cor para o volume, as sombras e o apoio na construção das expressões das personagens que torna este um gesto de excelência deste autor, o que não o impede, ainda assim, de produzir uma obra muito clara nos seus propósitos e figurações. Queremos com isto dizer que Lacas mostra aqui uma inscrição muito justa numa abordagem clássica da banda desenhada - o uso dos elementos formais específicos da comunicabilidade deste meio, o grau de simplificação e hipérbole nas expressões, entre outros atributos - mas garantindo-lhe um certo ambiente contemporâneo - pela liberdade das linhas, o tipo de investigação rítmica, a não-resolução completa da narrativa, etc. Há até mesmo oportunidade de introduzir no livrinho uma espécie de homenagem a outras obras de banda desenhada, ora com o banquete final com as gentes locais (o emprego do valor das jóias, redistribuídas em alegrais simples e talvez universais) ora com a partida do padre como um solitário em direcção ao pôr-do-sol.
A cena fulcral do livro, um sonho com a Virgem Maria e o Menino Jesus, ainda que não mergulhando totalmente em opções surrealistas e absurdas, apresenta as figuras santas numa escala monumental em relação ao padre que torna essa mesma cena algo estranha-familiar (unheimlich) e é ela que acaba por aglutinar toda a trama, todos os acontecimentos, todos os sentimentos da história. Apagando assim o sentido de “ermo”, tornando-o num local de comunidade.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
12 de janeiro de 2012
A Ermida. Rui Lacas (Polvo)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:46 da tarde
Etiquetas: Portugal
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