30 de março de 2012

Les Yeux du Seigneur. Aurélie William Levaux (La Cinquième Couche)

Se já havíamos debatido a possibilidade de uma banda gravada (com Coché), e uma banda pintada (também com Coché mas outros autores poderiam ser arrolados), e variações múltiplas (pela fotografia, a escultura, etc.), é com Aurélie William Levaux que chegamos à banda bordada. Artista plástica que expõe o seu trabalho regularmente (nos circuitos galerísticos e museológicos), seria discutível se a agregação destes trabalhos num volume encadernado (é a segunda vez que o faz, na La Cinquème Couche, depois de Menses Ante Rosam) constitui uma mera colecção, se se trata de um catálogo, ou se se reformula esse conjunto num outro tipo de texto que procura outra ordem de coesão e significado, capaz de conquistar lugar numa outra disciplina – livro de artista, livro ilustrado, banda desenhada…
Os seus trabalhos consistem em desenhos feitos sobre panos de algodão cru cortados aproximadamente nas dimensões de uma folha A4, utilizando tinta, mas também introduzindo linhas bordadas, sobretudo a vermelho, e por vezes enxertos sobrepostos em pequenos apontamentos, tudo com costuras bem visíveis. Estas linhas compõem alguns dos objectos da imagem (um tronco de árvore, uma planta florida, os contornos e o corpo de uma personagem, pratos a lavar, uma vagina – dentata –, estruturas de emolduramento), mas não só, como veremos. Os tais enxertos parecem por vezes estar a servir de “correcção” das linhas que eventualmente se manterão por baixo, mas elas apenas são ilhéus em que se reforça a dimensão do material, da tactilidade envolvida (o fio é um rasto que se deixa ver, como uma linha crua a grafite ou uma pincelada vincada), da abordagem hábil. O livro ganha assim uma permanente textura delicada que jamais nos permite esquecê-la, jamais a transformando num simples fundo do que vemos, a ilusão da representação.
O que encontramos ao longo de Les Yeux du Seigneur são cenas inconjuntas de variadíssimas personagens, mas com uma grande incidência para mulheres, muitas das quais são “gémeas”, isto é, as suas características físicas – cabelos negros e fartos, sobrancelhas espessas e ligadas, um corpo robusto, um pequeno sinal na bochecha – repetem-se. Algumas dessas características repetem-se mesmo nas crianças, também do sexo feminino, e numa ou outra personagem masculina, tenha ou não o cabelo curto. No entanto, mesmo naquelas cenas em que não há uma total decisão se se trata de um casal, de um par de amantes lésbicas, ou de uma família, não é imediato se estamos perante uma daquelas cenas à Botticelli ou De Luca onde as personagens se repetem ao longo do eixo das suas acções no espaço. A ambivalência é, na verdade, condição da estruturação e leitura deste projecto. Se numa abordagem superficial o estilo figurativo de Levaux – linhas grossas negras, tramas densas para construir as vestes, os cabelos, os padrões complexos e/ou floreados dos vestidos, mas também o posicionamento dramático dos corpos, as relações que estabelecem entre si, através de toques furtivos ou amplexos apertados – nos faz recordar de Aubrey Beardsley, a leitura activa outros mecanismos de associação.
O primeiro ponto de comparação, então, será com o famoso ciclo de tapeçarias medievais conhecido como “A Dama e o Unicórnio”. Apesar da identificação dos cinco sentidos ou das virtudes, mais o desejo, nesse ciclo antigo ser mais ou menos claro, a presença de frutos, de cenas na praia, de pessoas abraçadas ou ao colo, de pássaros canoros, de veados bramindo, neste livro moderno, leva à possibilidade de afinidades sensuais entre uma e outra obra. Não há modo de fazermos corresponder imagem a imagem, claro está, nem sequer, parece-nos, é possível identificar “momentos” ou “episódios” em Les Yeux, ainda que possamos recriar conjuntos de imagens por algumas características (por exemplo, mas especulando, “cenas domésticas”, “cenas realistas/autobiográficas”, “memória de infância”, “cenas íntimas”, “cenas simbólicas”, etc.), mas existem elementos menores que permitem pensar nessa associação. Se tomarmos em conta, também, o estilo ou escola a que aquelas tapeçarias são associadas, dita de “mille-fleurs”, e que consiste na representação dos fundos como se se tratasse de um campo pejado de pequenas flores e vegetação rica, apercebermo-nos-emos do contraste efectuado pela escolha despojada, crua e mais simplificada de Levaux (ainda que as figuras desenhadas se apresentem com padrões complexos e tramas de linhas densas, como já indicado). É claro que o trabalho de Levaux não é uma tapeçaria, mas sim desenhos e bordados sobre algodão. Mas tampouco o é a chamada “Tapeçaria de Bayeux”, a qual mais rapidamente é chamada à colação de uma suposta história universal da banda desenhada por aqueles que negam a possibilidade de inscrição neste campo criativo desta e de outras experiências menos tradicionalistas, o que nos deveria fazer pensar. Ainda no seguimento desta associação, e como corolário da possibilidade avançada, está a cena “adicional” das tapeçarias medievais em que se lê “[à] mon seul désir”, a qual encontra um claríssimo eco numa imagem singular desta obra, onde duas mulheres sentadas apresentam bandeirolas saídas das bocas (mais um elemento a favor da aproximação medieval) onde se escreve “désir” e “intérdit”. A quem pertencerá, porém, esse desejo proibido?
Penso que valerá a pena transcrever a anedota final por inteiro, presente numa só página – existe matéria verbal, textos, balões de pensamento até, no livro, por vezes bordados, por vezes desenhados com tinta que se espalha nos fios de algodão – quase no final do volume, e que dá nome ao projecto: “sentia-me feia/então perguntei-lhe se/ela me achava bonita/ela respondeu/minha querida somos todos/belos aos olhos/do Senhor///isso destruiu-me a moral” (s.n.). As mulheres – de rostos repetidos umas nas outras, nas filhas, nos homens – têm aquelas características físicas apontadas acima, que por vezes, até por se apresentarem muitas vezes em rigorosos perfis e com os cabelos fulvos engrinaldados, recordam Frida Kahlo, não se coadunam com os regimes de representação da beleza feminina vigente. A própria presença de crianças, de episódios domésticos (de lavar pratos a máquinas da loiça em arco), de tomar conta de uma criança doente, de crianças deitadas na cama com a mãe, fazem com que todo este projecto possa ser pensado sob o signo do feminismo, filtro pelo qual a maternidade, o corpo e a doença, as expectativas de beleza e mesmo as relações intersubjectivas entre mãe e filha, mães e filhas, mulheres entre si e mulheres e homem e o mundo são repensadas por direito próprio, e não de acordo com modelos que partem sempre do homem como ponto primeiro.
É mesmo tentador ler estas relações num quadro lacaniano, se nos recordamos de como para esse psicanalista se estabelece uma oposição (cronológica, de desenvolvimento) entre o Imaginário, que corresponde ao espaço em que a criança vive, uma espécie de “interior” que é o domínio maternal, antes da linguagem, e o Simbólico, no qual ao se entrar, e que é também o processo de individualidade, marca o abismo irreversível da separação com a mãe. Ora, se sobretudo tomarmos em conta que a maior parte das imagens que representam a mãe e a filha (isto é, se esta identificação funcionar), mas também no caso de outras mulheres ao longo do livro, não apresentam distância física entre si, ora unidas em amplexos, ora colocadas numa espécie de ilha (como a Dama das tapeçarias), ora unidas pelas estruturas bordadas, pelos próprios materiais que as circundam e as manchas, etc., essa falta de distância parece estar a ser aqui explorada de vários modos expressivos. Claro que, tendo em conta que estas teorias psicanalíticas foram criticadas pelo feminismo dos anos 1970 como construindo a identidade feminina no interior de uma economia de representação patriarcal, é possível que todo esse edifício conceptual seja falho nestas interrelações subjectivas entre mulheres, que se podem estender para além do círculo estritamente familiar, e experimentado nas cenas “sociais” do livro de Levaux.
Ainda no seguimento desta leitura, surgem aqui e ali imagens mais centralmente dedicadas a essa abordagem. A vagina dentada, os comentários sexuais espalhados pelos textos, e, acima de tudo, um diagrama de uma mama, vista de perfil e com explicações dos seus elementos constitutivos (auréola, glândulas, adiposidades, etc.). Esse diagrama sublinha essa característica feminina exacerbada, como sendo um lugar simbólico (de alimentação, de desejo sexual, de doença), contrastando essa única imagem técnica e fria com os momentos de intimidade e proximidade (senão mesmo de “confusão”) entre as personagens.
As cenas panorâmicas, algumas das quais estão impressas em folhas duplas que se desdobram, e onde estão presentes grupos de raparigas em pátios de escola ou em florestas acompanhadas por veados, e este tom quase inaudível e tenso de uma violência não-dita, faz aproximar Levaux de Henry Darger. Mas onde este associava as suas imagens a um texto tremendo, e todo o seu projecto a um mundo ficcional que nasce da sua obsessão e desinscrição da “normalidade”, até mesmo psicológica, Levaux faz no interior de uma comunicabilidade social, ainda que procurando mecanismos oferecidos por essa mesma possibilidade – artes plásticas, o livro enquanto difusão, a arena pública -, uma tarefa que serve para derrubar essa mesma “normalidade”. Uma vez que se abdica aqui de construções convencionais e tradicionais da narrativa com imagens, encontram-se outros caminhos.
Não é de surpreender, por exemplo, que as composições optem por uma força centripetal de todos os seus elementos, como se se imaginasse que o plano visual, tal como é visto na forma final (publicada) tivesse tido as suas margens num “ponto morto” da acção criativa, tal qual como quando se usa um bastidor se proporciona desde logo uma diferenciação entre o plano em que se trabalha e a margem “abandonada”. Daí a sensação das tais “ilhas”. E apesar da presença de pequenos troços de texto, que criam anedotas ou rápidas situações semi-narrativas enclausuradas nas imagens individuais, perguntamo-nos se esta ausência geral de narrativa, de períodos temporais, de continuidade diegética e de total garantia da presença das mesmas personagens nos permite pensar numa passagem para um outro domínio, sem temporalidade, talvez de instantaneidade simbólica ou alegórica. Esta ausência de tempo poderá vir a revelar-se uma pista falsa, porém. Ainda que não haja uma dramatização, por assim dizer, dos eventos apresentados, conseguiremos identificar presenças e/ou temáticas recorrentes que, coalescidas, farão emergir, senão uma narrativa, nem sequer fantasmática, pelo menos uma formação conceptual coesa, uma nuvem diáfana que encerra todo o livro.
Há aqui uma abdicação de códigos (narrativos, figurativos, representativos) “burgueses” para, pela relação entre as personagens, atingir um ponto social. Esta interpretação ganha forma se for feita à luz de um famoso ensaio sobre o olhar [gaze] cinematográfico por Laura Mulvey, “Visual pleasure and narrative cinema” (de 1975). Este ensaio levanta questões complexas, e não podemos fazer justiça ao seu encontro entre formalismo e psicanálise neste curto espaço, mas um dos seus objectivos principais é expor o modo como o cinema tradicional constrói um prazer muito específico, a que Mulvey chama de “escopofílico”, e esse prazer é dominado pela ordem dominante, androcêntrica, de tal maneira que passa por “inconsciente”. Quer dizer, o prazer de olhar é masculino, o objecto é feminino. Mesmo depois de alguns estudos que criticam esta abordagem de Mulvey, ela ainda faz sentido, mormente na banda desenhada, campo de criação que continua dominado por uma pesada herança tradicionalista nesses (e outros) aspectos. Mulvey escreve, “nos seus papéis exibicionistas tradicionais, as mulheres são simultaneamente olhadas e mostradas [displayed], com a sua figura codificada de um modo a desencadear reacções visuais e eróticas fortes, de tal forma que se pode dizer se conotarem com uma qualidade-de-serem-olhadas [to-be-looked-at-ness]”. Esta questão do olhar ganha um peso poderosíssimo se consideramos que, num livro intitulado “os olhos do Senhor” (Seigneur, portanto um sentido religioso), a esmagadora maioria das personagens tem os olhos fechados. Apesar de existirem algumas figuras de costas, outras pequenas de mais para se poder ver se os olhos estão abertos ou fechados, etc., de todas aquelas em que não há qualquer problema em identificar isso, são raras (mas talvez significativamente em termos interpretativos, que não procuraremos) as que estão de os olhos abertos. A questão é menos “Que quererá isto significar?” do que “Que tipo de interpretação podemos nós avançar?”
Terminemos, mas regressando à questão material. Aqueles elementos soltos de que falámos – dos fios aos enxertos de pano sobrepostos - não estão somente imbricados e interrelacionados com a figuração, a estrutura e os eventos retratados. Também o próprio título do livro, o nome da autora, o nome da editora e o cólofon aparecem como letras bordadas, assim como o par de olhos na contracapa, arrastando dessa forma esses elementos paratexuais para um plano material idêntico ao do texto central. Isto seduzir-nos-ia a considerar Les yeux du seigneur como uma obra auto-reflexiva (para além das pistas autobiográficas, intra- e extra-textuais), quer dizer, consciente dos aspectos formais pelos quais é constituída. Todavia, talvez não haja aqui uma procura tão activa por um auto-questionamento do veículo e contexto em si, mas um encontro, produtivo, mesmo assim, entre um modo de fabrico das imagens, uma prática, e uma forma de divulgação. Esse é um dos fitos desse objecto, o livro.
Nota: agradecimentos a Isabel Baraona, pelo empréstimo do livro.

2 comentários:

Anónimo disse...

sei que estás sempre em cima do acontecimento mas já viste isto?
http://www.lemonde.fr/livres/visuel/2012/03/29/la-guerre-des-mamadous_1676968_3260.html

Pedro Moura disse...

Amig@ anónim@,
Isso não é de todo verdade, e por isso mesmo agradeço o link!
Pedro