Permitam-nos iniciar este texto com uma questão prosaica, pessoal, paralela à publicação em si, mas que se revelará, esperamos, produtiva para a leitura da mesma. Comprámos este comic book numa livraria especializada através de uma standing order. Esta figura comercial está prevista na contextualização comercial que tem dominado a banda desenhada norte-americana contemporânea, e que ganhou força nos anos 1980, do chamado “mercado directo”, em que as vendas são feitas entre as editoras e os revendedores através de uma distribuidora (sendo a Diamond o quase monopólio actual), vendas essas desde logo asseguradas por se pautarem pelas “encomendas” feitas meses antes; por vezes mesmo ditando as tiragens. Isto significa que não há perdas, uma vez que da parte das editoras não há consignações mas vendas directas aos revendedores, e não há perdas destes por terem os clientes acordado a compra (se tudo correr bem, claro). Uma standing order é uma encomenda para um determinado título: em vez de ter de encomendar número a número, esta solução permite que todos os números desse título sejam comprados à distribuidora-mediadora e o comprador não perde o fio à meada, a série completa, etc. É uma forma confortável para quem deseja comprar todos os números de determinadas séries, sobretudo aquelas publicadas na indústria mainstream, cuja produção ainda se pauta pela publicação mensal ou semi-mensal das suas séries.
Durante muitos anos era esse o panorama usual em toda a indústria; apesar de ser algo cozinhado no mainstream influenciaria igualmente a cena “alternativa”, herdeiros imediatos do underground dos anos 1960 mas procurando uma integração mais suave na economia de mercado norte-americana e, consequentemente, global. Editoras como a Fantagraphics, a Drawn & Quarterly, a Oni Press ou a Top Shelf, cultoras de uma banda desenhada mais diversificada em termos de géneros, políticas de edição e até formatos em comparação com a Marvel e a DC, seguiam esse método como podiam, com as suas publicações em formato de comic book. Editoras independentes mas inclinadas a seguirem os passos dos géneros mais tradicionais, como a Dark Horse, a Image, a Caliber ou a Avatar Press, como é natural, não tinham outro método senão se encaixarem nesse modelo. Esta é uma das razões pelas quais faz sentido distinguir-se entre banda desenhada “independente” e “alternativa”, divisão conceptual muito clara nos Estados Unidos, ainda que permita largas discussões de negociação entre este e aquele título, este e aquele autor, etc. De uma forma necessária, drástica e se calhar abusivamente de encurtar a história, podemos dizer que com a emergência cada vez mais maciça dos formatos em livro (graphic novels) e a sua cada vez mais sentida integração nos circuitos de legitimação cultural nos Estados Unidos (de discussões académicas a vendas em livrarias generalistas, de prémios literários a outras reapropriações e remediações), houve um consequente ofuscamento desse outro formato. Quer dizer, quanto mais a graphic novel (gn) parecia ser um formato legitimador – mesmo quando não são mais do que a compilação de material anteriormente publicado em comic books, isto é, trade paperbacks (tpb), sejam mainstream ou não – mais o comic book em si se tornava um resquício de uma cultura e uma prática cultural em retraimento. Esta situação tem sido drástica nos últimos dez anos e é até discutível se é a Marvel e a DC que constituem hoje o mainstream, se se considerar que as suas actividades editoriais devem rondar uns 20 a 25% dos lucros, em contraste com tudo o que se relaciona com os filmes, e que globalmente as vendas das gn/tpb ultrapassa de longe a dos comic books, quer em valor quer sobretudo em termos sociais. As comparações são sempre perigosas, pois cada caso tem especificidades: se The Walking Dead vende cerca de 30 000 cópias, Fun Home vende mais de 60 000, mas a primeira é uma série com 16+1 volumes até à data, e a segunda um só livro sem continuação. Mas se comprarmos com as 100 000 cópias de um só volume, a meio da série, de Naruto, e ainda considerarmos estarmos a falar da versão inglesa que vende sobretudo domesticamente – ao passo que aqueles outros títulos também são vendidos fora dos Estados Unidos -, perceberemos que a banda desenhada japonesa tem uma vantagem de mediatização insuperável por qualquer outro sector do meio…
Não é de surpreender, portanto, que a maior parte da produção dos autores “alternativos” tenha abandonado progressivamente as suas séries no formato periódico dos comic books e se tenham cada vez mais virado para a criação de livros (e não esqueçamos que a sua regularidade nunca foi idêntica à dos grandes produtores de super-heróis, mas que também se ressente nas qualidades dos mesmos). No entanto, parte do charme da fruição da banda desenhada – é possível que aqui estejam misturados elementos de nostalgia de condições de recepção – é a sua serialização, condição a qual também pautava (e pauta, como se pode ver pelos ritmos diegéticos da Marvel/DC) o modo como os autores criavam as suas mais longas histórias e projectos, como integravam as suas reacções no material peritextual o que se passava no mundo ou com outros colegas, e a forma como os leitores lidavam com a gestão desse mesmo ritmo. Nem todos abandonaram este processo de uma maneira cabal, se pensarmos nos casos de Chris Ware com Jimmy Corrigan, Chester Brown com Louis Riel, e Jason Lutes com Berlin. Mais, alguns autores, como spiegelman, Ware, Bechdel, ainda serializam o seu trabalho em jornais, o que revela de outro modo ainda. Mas a esmagadora maioria deles abandonou o formato; outros nunca o sopesaram sequer, como Craig Thompson, que pensou Blankets e Habibi para serem editados somente como os volumes imensos que se conhecem (o que condiciona também a sobrevivência financeira dos autores e o investimento dos editores, mas isso levar-nos-ia a outras dimensões). O próprio Tomine publicou Scenes from an Impending Marriage dessa forma.
Tentando regressar à nossa questão, é curioso que as nossas standing orders, ainda em vigor, sejam de títulos que entretanto desapareceram ou se alteraram drasticamente: Acme Novelty Library, Palookaville (que passou a ser um livro), Underwater, Artbabe, The Biologic Show, Blood Orange, Bête Noire (mas também Madman). É verdade que Adrian Tomine já nos havia habituado a interrupções drásticas, mas desde 2007 que a sua série Optic Nerve não chegava a um novo número…
É portanto um sentimento estranho receber mais um Optic Nerve em condições que já não faziam parte da prática cultural corrente, em relação a um autor alternativo. Tomine está consciente disso, como se depreende no que se publica neste número.
Podemos dizer que existem três histórias aqui: “A Brief History of the Art Form Known as ‘Hortisculpture’”, de 19 páginas, “Amber Sweet”, de 11 páginas, sendo estas as que ocupam a parte de leão do comic book, e seguindo as regras narrativas e estilísticas mais clássicas de Tomine, e, já depois da secção de cartas publicadas – precisamente esses materiais adicionais peritextuais que trazem parte do charme da serialização -, uma história de duas páginas, abertamente autobiográfica, somente a preto-e-branco, que discute as próprias condições de produção, distribuição, representação e até de recepção do comic book que temos nas mãos. Muitas das questões levantadas nessa curta história auto-derisória tocam as questões abordadas na nossa longa introdução, mas veremos que as outras histórias também contribuem para um ambiente de auto-consciência de Tomine. Naquela, Tomine explica como ainda quer continuar o seu comic book, e é chamado de “o último panfleteiro”, para riso dos colegas; vai tecendo reminiscências sobre os aspectos peritextuais dos comics de que gostava, e ora pensa nas experiências que ainda se mantêm (como as de Jason Lutes ou Sammy Harkham) ora é demolido por uma frase de Dan Clowes numa entrevista à rádio; cria expectativas de fazer um tour nacional para promover a revista mas nem a editora está interessada em gastar muito dinheiro nisso, nem as lojas estão disponíveis para o receber, nem os clientes estão interessados em comprar. O único cliente que fala com Tomine engana-se no nome (chama-lhe “Tomei”), adora o gesto por fazê-lo “voltar atrás no tempo”, implica que Tomine “está a enterrar a cabeça na areia”, mas admirando-o por isso, e finalmente diz que já não compra “floppies”, preferindo “esperar pelo livro e depois fazer um download ilegal e ler no telefone”. Compreenderão, claro, que há aqui uma dose maciça de exagero e anedótico, mas os ingredientes estão presentes: Tomine tem alguma consciência de que a presença dos comic books dos criadores alternativos já não são a norma e são até vistos como um objecto estranho, que a resistência comercial é enorme, e que o seu propósito estético – que tenta explicar ao cliente mas não o logra fazer – será mal compreendido. Não é por acaso que o termo americano para estas revistinhas seja “floppy”, recordando o nome que se davam às primeiras disquetes flexíveis de menos de 1000 kb (!), ou seja, a uma certa celeridade no modo como se adoptam e abandonam tecnologias materiais num mercado sedento de melhorias técnicas e correlatas inovações de distribuição, informação e fruição. É verdade que a adopção e abandono do comic book no circuito alternativo é muito diferente do que em relação ao mainstream comercial, mas é por isso mesmo que as materialidades não são suficientemente esclarecedoras se não forem contextualizadas e diferenciadas social, política e esteticamente. Estamos a falar de suportes, não de formas ou ontologias.
As duas histórias centrais basicamente retomam alguns dos temas caros a Tomine, sobretudo a segunda história, sobre uma jovem mulher que é confundida com uma estrela pornográfica e todas as suas relações, amorosas ou de amizade, se pautam por esse mal-entendido, colocando-a à margem de uma “integração” social total, tal como muitos dos jovens personagens deste autor, desde 32 Stories. A primeira história, porém, é sobre um homem mais velho, casado e com uma filha – mas incompreendido -, o que poderá ser um eco também da maturidade do autor e da sua própria vida pessoal que passou por essas fases (e é alvo de atenção em Impending Marriage e, enquanto cena visual, da curta história final deste Optic Nerve). Interessar-nos-á menos analisar as questões diegéticas de cada uma destas histórias do que avançar com uma possibilidade de interpretação, que tem tanto de generalista como de óbvia, na verdade.
Em "Hortisculpture", Harold, um jardineiro de uma trintena de anos, começa a manipular árvores e arbustos no interior de tubos contorcidos de gesso, “esculturas (…) com uma planta viva a crescer no interior”. Chama-lhes “hortisculturas”, e aos poucos sente que pode ser uma oportunidade não apenas de negócio, mas de auto-expressão, de ser o seu chamamento, e procura apoios ora junto à família ora a parceiros, mas falha em todos os passos… Anos passam-se e não há maneira de vingar esta nova “forma de arte”, apesar de um brevíssimo episódio em que Harold revela a sua fantasia de “vingança do vencedor”… Todos acham que as suas peças são horrendas, mas ele vai insistindo, até um momento final. A história em si é algo leve, cómica, apesar de atravessar a crise criativa de Harold, e as lutas diárias do seu quotidiano.
"Amber Sweet", como se disse, é uma história em que uma jovem universitária, nunca nomeada, é confundida com uma estrela porno da net, e quando o descobre, não sabe muito bem como se defender disso, com as amigas a gozarem-na sobre o quão difícil lhe é ser confundida com uma “estrela famosa da pornografia” (isto é, que se encaixa nos padrões expectáveis da beleza feminina, e até mais do que isso, da sua disponibilidade sexual), e com os namorados ora não aguentando a pressão da comparação ora possivelmente fantasiando estarem com Amber e não com a rapariga. Esta história coaduna-se mais com os ambientes habituais de Tomine e até a forma como é contada – em retrospectiva, numa narração da protagonista a um possível novo namorado, e com um grande salto no tempo revelando uma mudança radical de visual e de vida e, até, o felizardo encontro casual com a tal estrela – recorda-nos as primeiras histórias curtas presentes na Optic Nerve na sua vida através da D&Q.
No entanto, pensamos ser claro onde se chegará: quer uma quer a outra história parecem ser espelhos levantados em relação ao próprio autor em relação a este mesmo projecto. Afinal, temos num caso um artista que insiste numa forma de arte relativamente inaudita, que mistura duas disciplinas reconhecidas numa terceira forma bastarda e não particularmente apreciada, e que encontra obstáculos financeiros, estéticos, legais e até conceptuais a cada passo. Apesar de insistir, como Tomine insiste no comic book, é possível que esteja votado ao fracasso. O outro caso é a do engano de identidades, quer dizer, pensar que uma pessoa é outra e, mesmo quando se sabe que não o é, haver uma qualquer expectativa em que esta seja como a outra (uma das razões pelas quais as pessoas, em geral, detestam ser comparadas com outra – “és tão parecido com x!” – por julgarmos sermos irrepetíveis ou, mesmo que fisicamente haja parecenças, haverá decerto diferenças abissais na personalidade… ou não?). Ora, Tomine é de facto colega de Brown, de Seth, de Ware, de Clowes, etc., mas não é eles, e a opção de trabalho daqueles autores não tem necessariamente de ser a dele: a escolha pelo comic book revela isso mesmo, e a incompreensão que se segue parece ser explorada nesta personagem feminina.
É possível, claro está, que tudo isto não passe de biografismo barato e colações demasiado fáceis.
4 de abril de 2012
Optic Nerve # 12. Adrian Tomine (Drawn & Quarterly)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:09 da manhã
Etiquetas: EUA
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