L’île panorama é uma tragédia de enganos. Um escritor sem grande fortuna, económica ou editorial, Hirosuké Hitomi, que sonha com uma espécie de paraíso terrestre no qual o hedonismo e a sumptuosidade são lei, aproveita a morte de um antigo colega, o industrial Genzaburô Komoda, para se fazer passar pelo mesmo, aproveitando a sua fortuna para levar avante o seu tremendo projecto. Hitomi tenta realizar esse projecto ficcionalmente pelas suas histórias, uma das quais, “História de Ra”, vemos em curso de produção e de aceitação, mas ele na verdade nutre o desejo de a realizar no mundo. Uma vez que Hitomi e Komoda são parecidos, e costumavam mesmo confundir-se na juventude, e até chamados de “irmãos”, esse engano, pelo menos numa primeira fase, é fácil de levar a cabo.
Esta história é também uma fiada de citações encaixadas. Afinal, esta é uma adaptação de um conto de 1926 de Edogawa Ranpo, por sua vez decalcada de Poe. As citações ou influências do escritor Ranpo, apontado como um dos precursores, no Japão, da emergência de uma literatura “policial” ou “de mistério”, são claríssimas e tornadas explícitas, mesmo visualmente, no livro. A primeira dessas fontes é, então, Edgar Allan Poe (repare-se como o pseudónimo deste escritor, chamado Tarô Hirai, é uma corruptela do nome do seu ídolo norte-americano, apesar de significar literalmente, como explica o posfácio, “passeio ao longo do rio Edo”), e a ideia base de L’île panorama é baseada num conto de Poe intitulada “The Domain of Arnheim”, citada textualmente, no qual um homem com uma riqueza imensa se dedica à criação de um paraíso terrestre, e em que esse mesmo espaço e a viagem que permite agem enquanto exercício de exploração dos recessos da mente humana, das suas fantasias e os limites desta, e os seus preços morais, espirituais e até físicos. Como não poderia deixar de ser, o filtro de Baudelaire (a palavra francesa que traduzimos por “passeio” no pseudónimo é, na verdade, flânerie), pelos seus Paraísos Artificiais, está também presente, se bem que os delírios de Hitomi não sejam despertos por quaisquer drogas, mas essa sua obsessão criativa. Finalmente, um termo de comparação produtivo seria um outro conto, desta feita de J. L. Borges, intitulado “O impostor inverosímil Tom Castro” (em História Universal da Infâmia), na qual um homem também se faz passar por outro, mas cuja estratégia é simples e muito diversa da que ocorre neste livro: se em L’île panorama há uma parecença física entre Hitomi e Komoda da que o primeiro tira partido, no caso de Orton/Castro não há qualquer semelhança, mas é precisamente disso que ele tira partido, pela distância e estranheza que isso instala nessa situação extrema. A negociação a que Hitomi se entrega para ir disfarçando a sua verdadeira identidade é feita um pouco apressada e superficialmente, mas a economia do relato a isso obriga, sendo mais importante as consequências do seu projecto.
De certa forma, talvez o tema de L’île panorama seja precisamente a criação. Afinal, Hitomi sente que os seus projectos literários (mas é significativo que ele faça desenhos complexos e detalhados do seu paraíso, trazendo à superfície relações que tanto podem revelar da literatura ilustrada como da própria banda desenhada) têm um limite de aceitabilidade, e por isso não terão grande fortuna em termos editoriais, e esta oportunidade de usurpar uma personalidade, a de Komoda, não é feita em nome de um qualquer desejo mesquinho associado às mais comuns paixões (dinheiro, sexo, poder, etc.), mas sim a esse fito transcendente que é a criação da ilha (se bem que possam desembocar depois naquelas mesmas paixões “baixas”).
Como diz um dos trabalhadores, numa pausa, “Será que ele conta mesmo construir um parque de atracções? (…) Não sei bem o que será… mas em todo o caso é outra coisa” (pg. 125). Dos seus primeiros planos “amadores” à sua versão literária, e depois os primeiros encargos, os momentos da construção e a revelação das construções ilusórias, o contrato dos performers, a introdução de circos, espectáculos, cascatas, oceanários subaquáticos, orgias e cozinha radical (tubarão inteiro recheado de marisco no forno), é como se a Ilha Panorama emergisse sob o nosso olhar, com cada página mostrando mais um canto, mais um pormenor, mais uma maravilha e mais um fascínio.
Não conhecendo o conto de Edogawa, é impossível determinar que partes serão decalcadas do texto original e quais as adições de Maruo. No entanto, à medida que a construção e apresentação da ilha se fazem e esta inaugura, os prazeres a que os seus utilizadores se entregam parecem estar muito próximos do território habitual do autor japonês, o ero-guro que lhe é reconhecido.
Apesar da arte de Maruo (em termos não só figurativos mas igualmente a nível da composição de página, de elementos gráficos decorativos ou diegéticos, e até mesmo as onomatopeias - nesta edição muito bem adaptadas) ser em si mesma de uma elegância extrema, ofertando às suas splash pages mais dramáticas ou representativas dos delírios oníricos das suas personagens um peso e qualidade icónicos muito próximos da ilustração, quer dizer, insuflando ao longo da sua narrativa momentos de pausa visual que pedem ao leitor uma concentração e leitura paciente que será recompensada, e não a mais tipificada rapidez de leitura da mangá comercial, essa mesma elegância ganha com a própria matéria do livro. A moda dos anos 1920, um dos momentos altos da adopção da parte dos japoneses de costumes e modas ocidentais (mormente do que se entendia serem os centros da cultura e da indústria da época, Estados Unidos, Reino Unido e, em menor escala, França) encontra-se aqui marchetada ao conhecido e detalhado estilo do mangaka. E a própria sumptuosidade do projecto de Hitomi permite que se encontrem variadíssimas citações visuais que bebem um pouco de toda a história da arte, sobretudo europeia - de certa maneira, algo que corresponderia a uma forma de japonesisme invertido: o fascínio pelas “coisas da Europa” transplantadas e mistificadas. Assim, vemos pequenas peças escultóricas que tanto citam fontes de Florença como da estatuária clássica, como jardins, palacetes, fontes, e até artistas de performance espelhando composições de Böcklin ou de Bosch, e cruzamentos interculturais que parecem revelar tanto das 1001 Noites como do Decameron. Veja-se esta cena, da morte da mulher de Komoda às mãos de Hitomi, repetindo o tema da Ofélia de Millais.
Como é de esperar, o reverso da fortuna vem sob a forma de um desvendamento dramático, e às mãos de um detective (fechando o ciclo do escritor ficcional e citando, em mise en abîme, o género do escritor real). Uma vez que uma das composições citadas de Bosch é a fonte d’O Jardim das Delícias, o qual surge duplamente no Paraíso e no mundo terreno mas neste revelando falhas e deterioração, adivinha-se o mesmo para a grande ilha desta história. Os pormenores de abertura e fecho desta narrativa com a morte do Imperador Taishô, e uma cena num panorama da guerra na Manchúria, procura-se também identificar a decadência do Japão imperalista e colonialista de então, de uma maneira enviesada.
Se por um lado podemos ler L’île panorama como um conto de contornos simples, em torno desse engano e troca de personalidades, por outro a pesquisa operada por Ranpo/Maruo é mais produtiva, e versa o sacrifício a que um homem se pode entregar em busca da realização de um sonho. Se é um sonho verdadeiro, não terá realização possível, ou dissipar-se-ia no exacto momento da sua realização. Mas se não for procurada a sua realização, então é uma mera fantasia, passageira, e não algo que defina e mova essa mesma pessoa. Além do mais, é também uma questão colocada à moral mais profunda do ser humano, e até aos limites da sua liberdade: um homem ou uma mulher verdadeiramente livres são livres para fazer o mal (ou não seriam totalmente livres). Portanto, como sopesar o mal e a realização da obsessão?
Esta história é também uma fiada de citações encaixadas. Afinal, esta é uma adaptação de um conto de 1926 de Edogawa Ranpo, por sua vez decalcada de Poe. As citações ou influências do escritor Ranpo, apontado como um dos precursores, no Japão, da emergência de uma literatura “policial” ou “de mistério”, são claríssimas e tornadas explícitas, mesmo visualmente, no livro. A primeira dessas fontes é, então, Edgar Allan Poe (repare-se como o pseudónimo deste escritor, chamado Tarô Hirai, é uma corruptela do nome do seu ídolo norte-americano, apesar de significar literalmente, como explica o posfácio, “passeio ao longo do rio Edo”), e a ideia base de L’île panorama é baseada num conto de Poe intitulada “The Domain of Arnheim”, citada textualmente, no qual um homem com uma riqueza imensa se dedica à criação de um paraíso terrestre, e em que esse mesmo espaço e a viagem que permite agem enquanto exercício de exploração dos recessos da mente humana, das suas fantasias e os limites desta, e os seus preços morais, espirituais e até físicos. Como não poderia deixar de ser, o filtro de Baudelaire (a palavra francesa que traduzimos por “passeio” no pseudónimo é, na verdade, flânerie), pelos seus Paraísos Artificiais, está também presente, se bem que os delírios de Hitomi não sejam despertos por quaisquer drogas, mas essa sua obsessão criativa. Finalmente, um termo de comparação produtivo seria um outro conto, desta feita de J. L. Borges, intitulado “O impostor inverosímil Tom Castro” (em História Universal da Infâmia), na qual um homem também se faz passar por outro, mas cuja estratégia é simples e muito diversa da que ocorre neste livro: se em L’île panorama há uma parecença física entre Hitomi e Komoda da que o primeiro tira partido, no caso de Orton/Castro não há qualquer semelhança, mas é precisamente disso que ele tira partido, pela distância e estranheza que isso instala nessa situação extrema. A negociação a que Hitomi se entrega para ir disfarçando a sua verdadeira identidade é feita um pouco apressada e superficialmente, mas a economia do relato a isso obriga, sendo mais importante as consequências do seu projecto.
De certa forma, talvez o tema de L’île panorama seja precisamente a criação. Afinal, Hitomi sente que os seus projectos literários (mas é significativo que ele faça desenhos complexos e detalhados do seu paraíso, trazendo à superfície relações que tanto podem revelar da literatura ilustrada como da própria banda desenhada) têm um limite de aceitabilidade, e por isso não terão grande fortuna em termos editoriais, e esta oportunidade de usurpar uma personalidade, a de Komoda, não é feita em nome de um qualquer desejo mesquinho associado às mais comuns paixões (dinheiro, sexo, poder, etc.), mas sim a esse fito transcendente que é a criação da ilha (se bem que possam desembocar depois naquelas mesmas paixões “baixas”).
Como diz um dos trabalhadores, numa pausa, “Será que ele conta mesmo construir um parque de atracções? (…) Não sei bem o que será… mas em todo o caso é outra coisa” (pg. 125). Dos seus primeiros planos “amadores” à sua versão literária, e depois os primeiros encargos, os momentos da construção e a revelação das construções ilusórias, o contrato dos performers, a introdução de circos, espectáculos, cascatas, oceanários subaquáticos, orgias e cozinha radical (tubarão inteiro recheado de marisco no forno), é como se a Ilha Panorama emergisse sob o nosso olhar, com cada página mostrando mais um canto, mais um pormenor, mais uma maravilha e mais um fascínio.
Não conhecendo o conto de Edogawa, é impossível determinar que partes serão decalcadas do texto original e quais as adições de Maruo. No entanto, à medida que a construção e apresentação da ilha se fazem e esta inaugura, os prazeres a que os seus utilizadores se entregam parecem estar muito próximos do território habitual do autor japonês, o ero-guro que lhe é reconhecido.
Apesar da arte de Maruo (em termos não só figurativos mas igualmente a nível da composição de página, de elementos gráficos decorativos ou diegéticos, e até mesmo as onomatopeias - nesta edição muito bem adaptadas) ser em si mesma de uma elegância extrema, ofertando às suas splash pages mais dramáticas ou representativas dos delírios oníricos das suas personagens um peso e qualidade icónicos muito próximos da ilustração, quer dizer, insuflando ao longo da sua narrativa momentos de pausa visual que pedem ao leitor uma concentração e leitura paciente que será recompensada, e não a mais tipificada rapidez de leitura da mangá comercial, essa mesma elegância ganha com a própria matéria do livro. A moda dos anos 1920, um dos momentos altos da adopção da parte dos japoneses de costumes e modas ocidentais (mormente do que se entendia serem os centros da cultura e da indústria da época, Estados Unidos, Reino Unido e, em menor escala, França) encontra-se aqui marchetada ao conhecido e detalhado estilo do mangaka. E a própria sumptuosidade do projecto de Hitomi permite que se encontrem variadíssimas citações visuais que bebem um pouco de toda a história da arte, sobretudo europeia - de certa maneira, algo que corresponderia a uma forma de japonesisme invertido: o fascínio pelas “coisas da Europa” transplantadas e mistificadas. Assim, vemos pequenas peças escultóricas que tanto citam fontes de Florença como da estatuária clássica, como jardins, palacetes, fontes, e até artistas de performance espelhando composições de Böcklin ou de Bosch, e cruzamentos interculturais que parecem revelar tanto das 1001 Noites como do Decameron. Veja-se esta cena, da morte da mulher de Komoda às mãos de Hitomi, repetindo o tema da Ofélia de Millais.
Como é de esperar, o reverso da fortuna vem sob a forma de um desvendamento dramático, e às mãos de um detective (fechando o ciclo do escritor ficcional e citando, em mise en abîme, o género do escritor real). Uma vez que uma das composições citadas de Bosch é a fonte d’O Jardim das Delícias, o qual surge duplamente no Paraíso e no mundo terreno mas neste revelando falhas e deterioração, adivinha-se o mesmo para a grande ilha desta história. Os pormenores de abertura e fecho desta narrativa com a morte do Imperador Taishô, e uma cena num panorama da guerra na Manchúria, procura-se também identificar a decadência do Japão imperalista e colonialista de então, de uma maneira enviesada.
Se por um lado podemos ler L’île panorama como um conto de contornos simples, em torno desse engano e troca de personalidades, por outro a pesquisa operada por Ranpo/Maruo é mais produtiva, e versa o sacrifício a que um homem se pode entregar em busca da realização de um sonho. Se é um sonho verdadeiro, não terá realização possível, ou dissipar-se-ia no exacto momento da sua realização. Mas se não for procurada a sua realização, então é uma mera fantasia, passageira, e não algo que defina e mova essa mesma pessoa. Além do mais, é também uma questão colocada à moral mais profunda do ser humano, e até aos limites da sua liberdade: um homem ou uma mulher verdadeiramente livres são livres para fazer o mal (ou não seriam totalmente livres). Portanto, como sopesar o mal e a realização da obsessão?
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