A importância deste projecto reside mais na sua importância editorial do que nos seus frutos efectivos. A editora Barba Negra tem um catálogo atento à contemporaneidade no que diz respeito à linguagem da banda desenhada, quer em termos da produção nacional (brasileira) quer à internacional (com Debeurme, Amir e Khalil, Vivès, David B., Killofer), e de uma maneira variada em relação a géneros, estilos, escopos. Esta colecção ou revista, que dá pelo nome de 1000, é um encontro entre esta editora relativamente institucionalizada e o autor/empreendedor Rafael Coutinho, através do selo Cachalote. Trata-se da criação de um espaço de possibilidade de edição e circulação de novos autores, e valerá a pena citar o texto-súmula de todos os volumes, que serão alvo da nossa análise: “1000 possibilidades narrativas. 1000 dinheiros no bolso. Assim é a revista 1000, uma publicação de poucas páginas, sem palavras, mas com muito espaço para a experimentação”.
O projecto apresenta-se portanto de uma maneira formal - uma revista de formato aproximado ao A4, com um caderno em papel de cor e impresso a preto, com 16 páginas de história, com uma capa de gramagem superior -, financeira - supostamente os lucros são distribuídos directamente aos autores -, editorial/económica - com uma tiragem de 100 exemplares (mas cada exemplar tem a numeração das provas e parece chegar aos 300) - e estética - ausência de texto ou matéria verbal, abertura de temas ou géneros ou estilos gráficos.
Porém, quando o projecto reza querer atingir “possibilidades narrativas” ou “experimentação”, os projectos dados até agora a lume mostram-se algo contidos nessas mesmas possibilidades e abertura. Em princípio, o projecto continuará, mas os seis títulos surgidos até agora deram origem a este volume colectânea. Logo, somente o tempo dirá que tipo de experimentações viremos a testemunhar deste cadinho. Contudo, olhando somente para o que de facto se produziu, parece-nos ser algo limitada essa mesma abertura prometida.
Mesmo havendo a busca por significados abertos e não totalmente submetidos a um sentido unívoco e simples, todos os projectos apresentam protagonistas bem definidos (todos homens, se bem que Drink também tenha uma personagem feminina de importância) num enquadramento narrativo relativamente convencional, identificando-se um eixo temporal no qual a acção se desenvolve, o espaço ou espaços que se percorrem, e os eventos que se atravessam e fazem com que a situação inicial da personagem se altere. Se há casos em que parece haver uma pesquisa sobre um universo referencial “normal”, ainda que transformado por filtros de um imaginário externo - como no caso de Drink, de Rafael Coutinho, que poderia passar-se em qualquer cidade ocidental servida de bares, parques e estradas, ou Desvio, de Daniel Gisé, que parece beber de uma imagética cinematográfica e publicitária fixa nos Estados Unidos da década de 1950 -, ou em que se procura uma saída desse mesmo universo para encontrar um mundo de fábula ou fantasia - como La Naturalesa, de DW Ribatski, que abandona as ruas da sua pequena cidade para encontrar uma espécie de paraíso infernal, ou de O Plexo Holístico, de [Diego] Gerlach, que tem lugar num beco urbano para se testemunhar a batalha entre um aparente super-herói e um lobisomem - há um caso que cita o fundo comum dos contos tradicionais europeus - Bebê Gigante, de Tiago Elcerdo, parece dever-se a um conto dos Grimm - e outro que se abre a um mais livre cruzamento de referências díspares - Sim, de Gabriel Góes, é uma mini-saga num universo próprio.
Não há propriamente nestes projectos uma procura por novas soluções (ou desafios) em termos de figuração, composição, referencialidade, organização narrativa, relações axiomáticas entre os vários elementos passíveis de integração nas bandas desenhadas, técnicas ou metodologias. Algumas das histórias são até convencionais e referentes a géneros relativamente comuns - Drink e o humor, mesmo que adulto, Bebê Gigante e o conto folclórico, mesmo que atravessado por uma melancolia moderna, O Plexo Holístico e a “cena de briga” de super-heróis, mesmo que pós-modernos, Desvio e o melodrama, mesmo que psicológico. Mas num quadro alargado de referências, até mesmo Sim recordar-nos-á a tendência dos “art comics” contemporâneos norte-americanos, que têm sido construídos por colectivos como Fort Thunder, publicações como Diamond Comics e uma miríade de artistas. Desvio, por exemplo, se bem que jogue com toda a uma série de citações do cinema, publicidade e televisão norte-americana, explora uma plasticidade das figuras e das cenas à la Hernandez Bros., e um “surrealismo leve” à la Clowes.
A pequena história de Ribatski é aquela que parece abdicar da ideia de confronto psicológico ou físico entre duas personagens antagónicas, mas a verdade é que acaba por se tornar um exercício de confronto do si consigo mesmo: um homem atravessa uma cidade, e, numa igreja, encontra uma passagem subterrânea que o leva a uma floresta, onde uma mulher lhe oferta uma maçã e seguem-se delírios em torno de imagens sexuais e reflexos… O simbolismo é tanto estruturado como banal. A paginação simples e o desenho solto de Ribatski, que nos recorda pessoalmente a abordagem de André Lemos, serve bem o seu propósito, tornando esta narrativa afinal linear num bom exemplo de catarse, possivelmente.
Gabriel Góes apresenta uma espécie de aventura de uma personagem que se transmuta e entra num diálogo de trocas e expectativas com outras criaturas num ambiente fantástico, e é como se Brinkman e Chippendale encontrassem aqui um discípulo lançando as bases de um universo similar, ainda que graficamente utilize técnicas aparentadas de Charles Burns e companhia. Gerlach parece empregar de novo os mesmos instrumentos de reapropriação e remistura presentes em A.D.B., e apesar de ser a história que menos transformações internas apresenta, é aquela que parece mais solta na sua “experimentação”, precisamente abraçando um género convencional e desdobrando-o por dentro.
Voltamos a repetir que o valor do projecto 1000 estará decerto em agregar num mesmo espaço editorial toda uma série de autores contemporâneos brasileiros que têm trabalhado em plataformas independentes e alternativas, de fanzines a locais online, de antologias e concursos, e que poderão não estar interessados jamais em cumprir regras e expectativas em relação ao “grande mercado”, o que não significa que não tenham em si instrumentos para criar HQs que melhor respondem aos ritmos e respirações dessa arte no nosso tempo.
(Sem interesse qualquer em alimentar controvérsias desnecessárias, é curioso ver o tipo de oportunidades, por mais limitadas que possam parecer, que uma editora associada ao grupo Leya no Brasil está disposta a dar aos autores mais novos e menos convencionais, trazendo à tona um tema interessante, que é a da “expectativa de mercado” e a do “espaço a experimentação”, questão que, entre nós, parece estar sempre votada a uma ignorância mútua.)
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta das publicações.
30 de abril de 2012
1000-1. AAVV (Barba Negra/Cachalote).
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:21 da tarde
Etiquetas: Brasil
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Boa análise! Só uma correção, Pedro. O primeiro nome do Gerlach é Diego e não Daniel. Abraço!
Diacho! E até tinha ido ler a publiação anterior dele. Obrigado, já alterei.
Enviar um comentário