25 de abril de 2012

La Famille. Bastien Vivès (Shampooing)

Quer certo sector conservador da nossa sociedade ver a família como o pilar da sociedade. Bastará essa mesma afirmação para começar desde logo a fiar os típicos argumentos de causa-consequência para a moralidade do tecido social, das pessoas, da cultura… Convenhamos que, por princípio nominalista, concordamos com essa ideia, isto é, ver na família o cadinho da educação do cidadão, a educação pelo exemplo, pelo diálogo e o confronto. Porém, estamos em crer que o próprio conceito de “família” pode ser bem mais elástico do que esse mesmo sector poderá querer compreender. Por exemplo, aceitar famílias como as de… Jesus da Nazaré? Se a entendermos como unidade social e afectiva entre pessoas, ligadas por elos ora de sangue ora legais ora de amor, é bem possível que esse tal alicerce possa ter muitas e diversas formas e, se quiserem, modelos. Existem alguns projectos de banda desenhada que exploram a multivalência dessas combinações possíveis, e destacaria Dykes to Watch Out For, de Alison Bechdel, como exemplo de excelência.

Mas mesmo tendo em conta essa descrição conservadora e hierárquica de “família”, ela nem sempre significa uma mesma narrativa e distribuição de papéis e manutenção de “valores”. Como já havíamos escrito a propósito d’A fórmula da felicidade, todas as famílias são, por necessidade, “disfuncionais” e instalam problemas. Este pequeno livro de Vivès explora precisamente o desequilíbrio permanente nelas, pela via do exagero ridículo e, por isso, cómico.
Toda a capa é já um programa. Debaixo do nome do autor, num tipo de letra discreto, o título apresenta-se numa bandeirola, com as cores da bandeira de França. Imagina-se de imediato uma ideia de oficialidade, de discurso peremptório, consolidado, ancorado em princípios modelares e altos, do tema que se apresenta: a família. A imagem parece confirmar isso mesmo: duas crianças desenhadas na característica pincelada fina e de punho ágil de Vivès, em contornos simples quase recordando uma mera ilustração convencional de brochura. Conforme os princípios de divisão sexual que devem depois repetir-se na divisão de tarefas, de expectativas, de papéis, de comportamentos, o menino brinca com um carro, a menina com uma boneca. A expectativa da divisão sexual mantém-se também no acesso aos seus pensamentos, que parecem ecoar, de maneira igualmente mecânica e algo caricata, os princípios edipianos que gerem a infância, os quais, recordemo-nos das lições de Deleuze e Guattari a propósito de Klein, se não forem claramente detectados, se necessário, serão impostos à força. Mas desde logo este casamento parece-me paradoxal: o aspecto visual, inclusive o título, para apresentar uma forma oficial, sóbria, séria, de brochura a fazer rondar os serviços educativos da nação, o texto abrindo a um ou dois graus profundos de exploração do si e fazendo desde logo as tensões internas também acessíveis (e visíveis, pois o texto são signos que se vêem).
La Famille apresenta toda uma série de curtas histórias de um punhado de vinhetas cada uma, todas elas flutuando no espaço largamente branco da página. Vivès parece criar estas imagens quase num estado de distracção, de rapidez dos pincéis, demonstrando a sua subtil virtuosidade com meia-dúzia de traços. Essa leveza gráfica ajuda ao mesmo tempo a cumprir a “velocidade” de cada sketch, pautado por diálogos curtos, simples, contundentes e hilariantes. O que vemos são pequenas discussões, diálogos, conversas entre pais e filhos, irmãos, pessoas recordando-se dos pais, tudo em torno sobretudo da sexualidade, mas também de outros temas. E sempre, sempre, com uma franqueza brutal das pessoas a falar umas com as outras, uma franqueza que não existe pois ultrapassa quaisquer ideias possíveis de decoro, mesmo entre os que decidem pela franqueza e a maior abertura possível.
Os pais não têm qualquer pejo em demonstrar o seu racismo, classismo, machismo ou exercer os seus poderes de decisão, económica, política, ou outra: um pai recusa-se que a filha saia a uma discoteca, explicando-lhe como poderá vir a ser embriagada, violada e filmada, e que os vídeos porno não ajudarão no seu currículo profissional; outro recusa que a filha faça uma operação de redução mamária apesar dos problemas físicos que o peito lhe causa, pois ficaria com pena de perder de vista o mesmo; um pai partilha um cigarro com o filho de oito anos ao mesmo tempo que lhe explica o que é uma mamada (a mãe apenas lhes pede que fumem lá fora); outros pais contam como se conheceram à filha, mas é uma história absolutamente idiota de conversas por chats, mensagens no facebook e tweeter; dois amigos querem ser homossexuais pois isso permitir-lhes-ia, nas suas cabeças, que ficassem juntos  para sempre desenhando bonecos, em vez de se terem de responsabilizar com uma família (ecoando a opinião de “bons pensantes” da “falta de utilidade” da homossexualidade?); uma tia oferece um revólver a sério ao sobrinho mais velho, e o mais novo fica com ciúmes; uma criança diz que não gosta de miúdas porque estão sempre a chorar e a fazer barulho e a avó diz-lhe que quando for ele quem chora por uma rapariga que as vai ver… Enfim: todas e quaisquer situações que são usualmente respondidas com compreensão e educação são aqui tratadas sob a forma de choques frontais.
O resultado é um exercício hilariante do que muitos pais, possivelmente, sonham fazer mas são impedidos pela máquina social (de certa forma, algo análogo ao projecto Go the F**k to Sleep/Vai dormir, f*da-se de Adam Mansbach e Ricardo Cortés).
Existem muitos momentos em que as menções ao universo da criação da banda desenhada, ou até mesmo a títulos anteriores de Vivès, aproximam algumas das anedotas à auto-ficção. Nunca as personagens de uma curta história se repetem (pelo menos, aparentemente), se bem que isso não seja importante: cada unidade narrativa é autónoma, e todas elas devem ser entendidas de uma maneira metonímica, senão mesmo alegórica. Mas essas tais referências fazem pelo menos imaginar que pode mesmo tratar-se de uma maneira de Vivès, na sua vida pessoal (imaginamos, não inquirimos), de expelir fantasmas que não poderá encaminhar à própria família em construção.
Pois parece mesmo ser esse o objectivo deste pequeno livro: apesar de sinais de descontrução, ele é um método de pensar a sua construção. Alternativa.
Nota final: agradecimentos à família Debaecque, pela oferta.

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