15 de abril de 2012

Systema Naturae. Catarina Leitão e José Roseira (Orbius Tertius)

Este é o primeiro volume de um projecto dos autores [cuja numeração elucida e confundo a um só tempo], fundado este ano, adivinhando-se futuros gestos que poderão ou não passar pelas mãos dos mesmos, mas que seguramente auscultarão as potencialidades, limites e zonas de contaminação entre as artes visuais e textuais, como ambos explicitam nos materiais de divulgação do projecto editorial. Como seu primeiro passo nesse património, então, temos este pequeno volume, objecto autónomo e independente, mas mesmo assim relacionado intimamente com a exposição do mesmo nome, de uma série coordenada de desenhos e instalação, de Catarina Leitão: ele foi lançado ao mesmo tempo que os desenhos originais eram alvo da sua exposição e comercialização galerística, portanto, mostrando-se um conjunto de mais de uma dezena de desenhos em formatos gigantescos, alguns dos quais emoldurados e outros montados em rolos e pendurados, e trinta desenhos menores, quadrados, metade dos quais emoldurados e outra metade disposta numa espécie de atril alongado, e ainda com uma espécie de armário onde se “repetiam” os desenhos em pequenas lâminas de cartão, alguns exemplares deste mesmo livro, etc., uma peça que tinha como nome “Museu Portátil” e que faz emergir as preocupações da artista pelas zonas de convergência entre objecto de galeria e objecto de leitura, portabilidade e performance, intimidade da leitura e desdobramento espacial e público da obra de arte, numa franca transversalidade conceptual e prática que revela ecos benjaminianos (e de que a sua “peça” anterior, Invasive Species, tinha dado igual conta).
De facto, o trabalho de Catarina Leitão apresenta-se como um contínuo pautado pela coerência e a coesão. A prática artística é demasiado extensa, livre e multifacetada para que se possa tipologizar os seus processos, mas se podermos identificar dois desses modos, de uma forma antinómica, e por isso falsa, mas esperemos que produtora, teríamos aqueles autores cujas várias explorações em cada disciplina artística - ou seja, que à partida assumiriam as distinções disciplinares - diriam respeito somente a cada campo exclusivo, nos seus contornos históricos, materiais, processuais e sociais., e aqueles outros em que todas elas corresponderiam a uma mesma construção do mundo. É neste último modo que interpretamos o lugar de Catarina Leitão.
Systema Naturae não é somente de Catarina Leitão, porém. Se se pode adivinhar ou arriscar a ideia de haver uma primazia na produção do seu projecto expositivo dos desenhos, a consideração autónoma do livro tem de operar um corte radical dessa circunstância, e aceitar que a criação de um texto de José Roseira, neste objecto, transforma retrospectivamente os desenhos em ilustrações - num seu sentido quase de complemento - da narrativa apresentada. Contudo, veremos que é mais complicado que isso.
O texto intitula-se “O Jardim das Dúvidas” e, de uma maneira a que poderemos chamar borgesiana - já veremos a razão mais substancial, se é que não é desde logo visível pelo nome da editora, mas sendo este mecanismo em particular também prática de outros autores -, trata-se de um texto atribuído a uma pessoa chamada António Alto, que o assina e data de 2016, e o deixa nas mãos de Roseira, que surge aqui como seu editor, apensando ainda uma tradução de uma obra citada no interior desse texto e um posfácio. O texto principal, de Alto, é como se fosse um relato autobiográfico, e que ronda em torno de uma série de desenhos recebidos de modo misterioso - e que são, na nossa esfera de referência, de Catarina Leitão, mas na ficcional, têm outra origem - e que o obrigarão a uma viagem. Entendemos, desde logo, a complexa tessitura de níveis hiper- e hipotextuais, e de vários níveis encaixados uns nos outros ao ponto de formar metalepses e mapas que colapsam sobre eles mesmos. Apesar da quase obrigatoriedade da análise literária e narratológica em respeitarmos a destrinça entre autor empírico e implícito, narrador e narratário, pacto autobiográfico e ficção, essa busca pela metalepse ontológica também nos permite, ou até obriga, a fazer flutuar as atribuições autorais e de vozes.
A criação desse mundo fictício, mais a construção da possibilidade da sua intersecção com o nosso, é patente no próprio nome da editora, como apontávamos, e que é uma claríssima referência àquele famoso conto de Jorge Luís Borges, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” - citado no interior do texto, de uma outra maneira ainda -, no qual a invenção (conspirativa) de um mundo ficcional acaba por começar a emergir na realidade. Quer dizer, a lição última desse conto, a da manifestação real das ideias (que é explorada quase sistematicamente por Grant Morrison na banda desenhada), pode ser o motor desta obra de Leitão e Roseira. Recordemo-nos ainda de que o conto de Borges apresenta-se como uma caixa chinesa: Tlön é um mundo ficcional e imaterial existente em Uqbar, ela mesmo uma cidade ficcional, e Orbis Tertius o selo editorial, ficcional, da Enciclopédia sobre Tlön. E n’“O Jardim das Dúvidas” visita-se uma estranha companhia (de pesquisa genética? Então qual a razão dos foguetes lançados? Se nos é permitida a referência popular, lembra-nos o fim elusivo da Iniciativa Dharma) que o narrador imagina ser “uma sociedade secreta que conjurava o fim do real” (pg. 74). A ficção dentro da ficção emerge, portanto, na própria intersecção desejada entre arte e literatura deste projecto. Porque se trata de uma ficção, ou porque, pelo contrário, quer mostrar a ficção que constituem as diferenças estabelecidas historicamente entre essas (e outras) áreas? Como reza um livro apócrifo citado: “trilhamos a fronteira difusa entre o mundo das formas e o das ideias” (85). Não poderíamos, ainda assim, imaginar que se trataria não de uma fronteira, divisória, absoluta diferenciação, mas de um toque perpendicular? Algo de entrelaçado, como n’A Invenção de Morel (outra referência “borgesiana” por contágio)? Essa é, desde logo, uma das interpretações gerais possíveis para o projecto editorial, ainda que seja cedo para ir além da mera suposição. Isso faria sentido em relação à narrativa se tomarmos em conta que António Alto toma o lugar do pai em mais do que uma instância, e vai cumprindo gestos que, fantasmaticamente, não lhe pertencem e, por isso, nunca se encaixam no sentido claro das coisas. Alto é como se fosse uma marioneta, sem consciência dos actos a que se vê mecanicamente obrigado, tais como as plantas que ocupam as suas formas, mas não os papéis.
Como dissemos, em termos de condições e ordem de produção, serão seguramente os desenhos de Catarina Leitão aqueles que surgiram em primeiro lugar, e, no que diz respeito à diegese de Alto/Roseira, são eles também que desencadeiam em primeiro lugar as memórias de infância de Alto e depois a sua acção de partir para Mombaça, e dar de caras com um projecto científico (ou para-científico) que jamais é descortinado totalmente ao leitor. Que mostram eles? Plantas, numa descrição sumária e superficial.
Contudo, as plantas que se nos apresentam têm como seu primeiro plano de inscrição a ficção orgânica - elas seguem a taxonomia binomial de Lineu, como o próprio título do projecto aponta, mas seguindo regras fictícias -, mas outros reinos e domínios são visitados, desmontados nos seus elementos, os quais são depois integrados nessas mesmas plantas: a animalidade, a mecanicidade, o onírico. Estas plantas são, no seu sentido etimológico (e ideológico, político, moral), monstros: remetendo para o acto de “avisar”, mostrando visivelmente, isto é, algo que serve de exemplo contrastante em relação a um modelo ideal. Elas cultivam, portanto, o único, e a ficção vai sublinhando essa natureza, como podemos depreender das várias tentativas da descrição - não física e técnica, que também tenta, mas sobretudo moral (“breve apontamento moral”, cita-se no texto) - que o protagonista vai fazendo: “seres paradoxais” (54), “quimeras” e “jardim excêntrico” (58).
Fala-se de um “código”, que jamais é desvendado, de resto, como todo o sentido pleno da trama, da origem e fito dos desenhos e dos projectos científicos desvelados de leve, dada a tremenda ignorância do próprio narrador, ou a sua qualidade de narrador “suspeito” (como Massaud Moisés traduz o termo “unreliable narrator”). “O leitor usará melhor o seu tempo se o gastar na análise dos desenhos em alternativa a maçar-se lendo as minhas descrições” (52-54), “Não posso senão desculpar-me pela minha inaptidão face à tarefa que o acaso me confiou em mãos” (58, nosso sublinhado). Mas nesse troço em que essas descrições são tentadas, encontramos também um balbuciar em relação às plantas presentes nas lâminas que acompanham o texto (a Mombasae anemophila, a Inanis cuneiforme, etc.) e igualmente menções a outras dessas espécies fantásticas que não estão presentes (Solanoides trichophylla), fazendo adivinhar, mais uma vez, uma expansão para além das fronteiras do projecto.
O texto, tendo um tom autobiográfico da parte de António Alto, também é possível que ecoe alguns traços autobiográficos de Roseira, mas isso só poderá fazer parte das suposições demasiado abusivas. Há um ancoramento claríssimo num imaginário português contemporâneo, com remissões para a guerra colonial, uma certa tensão entre o silêncio do pai, também chamado António Alto, e a curiosidade do filho, a dupla inscrição política de esquerda e desinscrição social no papel familiar da parte do pai, e o desencanto político pós-25 de Novembro do filho, tudo tão típico de uma certa massa demográfica/geracional do nosso país. A viagem a Mombaça, por exemplo, é feita usurpando o papel e a pessoa do pai, e uma “viagem em lugar do pai” terá uma repercussão psicanalítica, cultural e política muito forte. Tudo isso, embrulhado neste invólucro de falsa ficção científica de antecipação, torna Alto-o-protagonista na “pessoa errada no sítio errado, no tempo errado” (60).
Existem níveis metalinguísticos mais claros, como quando o protagonista, ao visitar a biblioteca da tal companhia em Mombaça, declara: “o bibliotecário responsável por aquela colecção era um imbecil. Não havia senão banda-desenhada [sic], ficção científica, policiais e outros géneros de ficção” (68). Imaginamos que Systema Naturae se escondesse numa das prateleiras mais desarrumadas, numa mise en abîme recorrente. Há momentos no texto em que Alto/Roseira parecem estar a descrever o acto possível de ser experienciado quer pelos visitantes da exposição de Catarina Leitão quer para aqueles que vislumbrarem os desenhos no livro sem os associarem à narrativa, isto é, ao processo cognitivo implicado nesse acto de conflito com algo que parece ser, a um só tempo, ou numa rápida sequência, referencial e fantástico: “Enquanto fazia os desenhos desfilarem sob os meus olhos florescia em mim um jardim de dúvidas que esporeavam a minha paciência e inflamavam a minha curiosidade” (14).
É possível que a interpretação final de Systema Naturae seja, tal como o propósito do protagonista na sua história, fútil: “Convencendo-me de que a expedição seria infrutífera - assim o desejava - …” (38). “O leitor, livre dos meus preconceitos, talvez seja capaz de elaborar melhores conjecturas” (62). Tentemo-las. Uma associação imediata, quase epidérmica, a este projecto de Catarina Leitão é aquela proporcionada pela colação ao Codex Seraphinianus, do artista italiano Luigi Serafini. Também se poderia pensar na Nonsense Botany, de Edward Lear, com as suas Guittara Pensilis e Phattfacia Stupenda, mas não estamos no território do humor absurdo, ainda que haja humor e absurdo. Encontramos na obra de Serafini e na de Catarina Leitão uma mesma preocupação na fabricação de um mundo dois ou três níveis afastado do nosso, onde menos que uma hierarquia entre eles se estabelece antes uma diferença paralela. No entanto, onde o Codex Seraphinianus é mais variado, acompanhado por um sistema de escrita inventado, atento a toda uma panóplia de existências, formas de vida, modos de viver, etc.; todavia, a maior concentração de Catarina Leitão permite que este projecto seja mais coeso e visualmente mais apurado. Todo o trabalho de desenho e de coloração é de uma delicadeza exímia, mas que não aproximaríamos da ilustração científica, porém. Aliás, a falta de emprego das várias estratégias de perspectiva ou visualizações analíticas (cortes, secções, esquemas de desenvolvimento, contextualizações biológicas ou ecológicas, etc.) afasta estes desenhos dessa outra disciplina da ilustração, mas como se fosse uma torção interna a partir dele. Para além daquelas complicações de níveis de criação e resposta a que aventámos acima, algo mais se desenrola aqui. Afinal, qual o propósito destas plantas compósitas? O texto oferece-nos pistas, mas sempre incompletas: citando-se um texto que cremos ser apócrifo, uma tradução em corruptela de uma das fontes da ciência biológica, o Physiologus, diz-se que esse “é apenas sobre o reino animal, enquanto este fragmento [e por antonomásia todo este projecto] parecer querer incluir todos os seres” (32, subl. no original). Nos desenhos, é de facto como se todos os seres, ou melhor, tudo o que existe - vegetal, mineral, animal, humano, maquínico -, se pudesse conter nestas novas formas de plantas.
Trata-se menos de um bestiário ou de um herbário fantástico, ou de uma enciclopédia chinesa (de novo uma referência a Borges), do que uma pesquisa sobre formas e como é que essas formas, mesmo trabalhando sobre referências banais, podem ser empregues para objectivos e sentidos do “estranhamento familiar” (unheimlich). Sentimos uma ligeira afinidade com o filme Asparagus, de Suzan Pitt, se bem que sem os mesmos ecos feministas, sexuais, mas seguramente que as mesmas invasões oníricas.
Uma outra afinidade possível, ao nível complicado texual-visual, tendo em conta o carácter enciclopédico-apócrifo, ou sugestivo-incomodativo, o tom rotineiro sobre uma matéria fictiva, é com algumas das descrições de uma antropologia extraterrestre de Henri Michaux, como nas descrições dos “emanglões” ou a “Viagem na Grande Garabanha”, ou outros (veja-se a edição portuguesa O retiro pelo risco, Fenda). É ele quem escreve nesse mesmo livro a seguinte frase, que pode sumariar o gesto de António Alto, mas também o literário de Roseira, o artístico de Leitão, o editorial de ambos e talvez mesmo o final dos leitores: “Traduziu também o mundo, querendo fugir dele. Quem poderá fugir do mundo? O vaso está cheio a transbordar”.
Nota: agradecimentos à artista-editora, pela oferta do livro).

2 comentários:

Anónimo disse...

Bullshit! Esta mania intelectoalóide dos nossos artistas e restante comunidade rastejante do "mundo das artes"... Tudo descêndencia malformada duchampiana - Ver "Boîte-en-valise" de Duchamp quase com 100 anos e ainda com carradas de plagiadores intelectoalóides. Minha nossa...!

Pedro Moura disse...

Car@ anónim@,
Não compreendo muito bem a sua mensagem. Uma vez que não apresenta nenhuma ideia particular sobre este projecto, ou o seu texto, e apenas um ataque generalista aos artistas portugueses - cuja diversidade não conhecerá, certamente -, e atira-se para uma ideia relativamente óbvia (a paternidade da cena moderna, senão mesmo pós-moderna, e toda uma série de processos e métodos de prática artística em Duchamp), só me resta convidá-lo a expor melhor o que pretende dizer.
A propósito, em breve poderemos rever a "Boîte en valise" no Museu Berardo num novo contexto, e de facto reitero o seu bom conselho em estudar a história da arte.
Obrigado e até breve.
Pedro Moura