Recordar-se-ão os leitores, da recensão a The Dragon and the Dazzle, da menção a um modelo comercial e cultural de multimedialidade entre determinados produtos, estando no centro a mangá e/ou o animé. Death Note faz parte desses projectos, no sentido em que a sua circulação mundial se fez através de vários canais ao mesmo tempo (e não simplesmente a sua versão de banda desenhada), se bem que tenha havido alguma distância entre os seus sub-produtos, o tempo costumeiro de auscultação do público para viabilizar novos desdobramentos/investimentos. A banda desenhada em si foi publicada entre 2003 e 2006, na famosa e central Weekly Shonen Jump, e perfaria 12 tankonbons (volumes em formato de livro de bolso que coleccionam as séries, e que este volume da Devir segue), e seria uma questão de meses que a versão animé estrearia nas televisões, estendendo-se em duas partes num total de 37 episódios durante um ano. Ainda daria lugar a dois filmes ditos de imagem real, um romance, jogos de computador e de cartas, já para não falar de todo o tipo de merchandising, começando pelas figuras em PVC. (Mais)
O aspecto popular assegurado por essa multimedialidade não pode ser de forma alguma descurado. Este mesmo espaço de discussão de banda desenhada é por vezes visto como elitista, no sentido em dar mais atenção a certos circuitos de produção menos comerciais e habituais, e isso não é de todo falso, já que operamos num contexto específico em que nos parece que a atenção para com esses outros objectos é diminuta, e a discussão do mainstream é o que pauta mais a recepção activa da banda desenhada contemporânea – mormente nos canais da internet. Todavia, se isso não é falso, deve-se sublinhar a existência de vários circuitos, o que em nada implica valorizações apriorísticas nem subalternizações nem tampouco direitos de cidadania. Seja como for, Death Note inscreve-se de forma centralíssima nesse domínio da banda desenhada comercial, de grande sucesso e distribuição e circulação (com todas as qualificações necessárias numa subcultura de uma subcultura), do vulgo “mangá”: é ela “a vingança de uma banda desenhada popular, de publicação frequente, debitada em edições substanciais, e em tiragens enormes. É a vingança de um estilo rápido, propositadamente arredondado, facilmente assimilado quer pelos autores quer pelos fãs, adeptos à vontade com o pincel; a vingança de um meio quente [no sentido mcluhaniano], convivial, participativo” (Harry Morgan, “Second Souffle, (etc.)”, um artigo na Mangazone).
A mangá - isto é, uma determinada classe complexa de uma tradição específica de banda desenhada, a do Japão, também ela complexa e multimodal - entendida como um fenómeno global, ou glocal, comercial, imaginativo, economicamente poderoso, tem um impacto que não pode ser de forma alguma desprezado, mas bem pelo contrário compreendido nos seus contornos precisos. Uma das dimensões muito curiosas notadas por alguns estudos sociológicos-históricos (como algumas das lições num volume recente intitulado La bande dessinée: une médiaculture, de que falaremos em breve) é que a mangá ocupa hoje em certos círculos o papel de “influência negativa” que parece ter de obrigatoriamente existir no contínuo “choque de gerações”, ou “incompreensões mútuas”… mas mais curioso ainda é notar que muitas vezes o desprezo para com a mangá parte precisamente de defensores de determinadas classes de banda desenhada - por hipótese, a “bd franco-belga” ou os “comics de super-heróis” - que já ocuparam esse mesmo papel. Mas qual a razão pela qual a mangá parece ecoar de modo tão vincado junto a uma determinada geração? Bom, são muitos os autores e investigadores que se debruçam sobre essas questões, mas esperemos que, por ora, nos baste citar Dominique Véret, ainda que se trate de um dos mais activos directores editoriais da banda desenhada japonesa em França (pela Tonkam e Akata). De acordo com a súmula de Véret, estas bandas desenhadas chegam aos adolescentes de uma forma mais acabada uma vez que abordam “grandes” temas que lhes são caros: “procura da acção e demanda espiritual, pesquisa do si e dos outros, conflitos incontroláveis e poder dos sentimentos, metamorfoses do corpo e autoridade das emoções”. Isto poderá parecer algo estranho para os não-leitores destas mangás, decerto, mas a sua descoberta e confronto com outras tradições de banda desenhada popular ocidentais (a saber, sobretudo, a banda desenhada de aventuras franco-belga e a de super-heróis norte-americana) revelará muitas vezes diferenças de natureza, e não somente de grau. Onde nas “nossas” tradições, esses tratamentos são feitos superficialmente, através de modos facilitistas e rápidos e estereotipados – bastará pensar no papel das figuras femininas na economia diegética, na integração da “vida comum” dos adolescentes nessas mesmas histórias, etc. -, na mangá comercial japonesa isso é mesmo parte dos seus elementos estruturais.
Vejamos esse aspecto do entrosamento entre o quotidiano e a fantasia. Death Note trata do quê, ao princípio? Que vemos neste primeiro volume? Um jovem estudante, excelente aluno, dedicado e inteligente, com uma vida aparentemente tranquila ou rotineira, interrompida por um acontecimento banalíssimo: o encontro, no pátio do seu liceu, de um caderno escolar (note é a expressão de inglês em corruptela para “bloco de notas” ou “caderno” no Japão, por isso não é Death Notebook ou algo assim). Depois, ao se aperceber que se trata de algo mais estranho que isso, procura compreender o que é, traduzindo as regras que surgem em inglês, etc., até ao momento em que dá de caras com o deus da morte Ryuk. A primeira página mostra-nos os dois mundos em contraste, e na verdade começamos por acompanhar Ryuk na sua missão de ultrapassar o seu spleen [que se poderia eleger com tema de todo o livro, e da sociedade japonesa ou global do mundo pós-tecnológico e pós-democrático?], deixando cair esse tal caderno no mundo dos humanos…
Esta premissa é perfeita para as fórmulas gráficas da mangá mais tipificada, a que os instrumentos de Obata se prestam: cenários mecânicos, simplificados e quase fotorealistas e personagens estilizadas (as personagens têm todas proporções alongadas, quase no estilo “sensual” do bishounen, com um equilíbrio entre personagens de rostos mais estilizados/simplificados, como o protagonista Light Yagami - recordando a estratégia de Tintin -, e outras mais realistas, como o seu pai, o inspector principal da polícia japonesa), composições de página ora regulares ora angulares, utilização de tramas pré-fabricadas, etc. Mas alguns dos clichés histriónicos da mangá/animé não estão presentes em Death Note, quer em termos de acções desabridas, quer em termos de expansão do tempo diegético, quer noutras dimensões, afastando-se por exemplo dos aspectos cinéticos de Gantz, mais tardia e ainda em curso. O sobrenatural está presente deste o início, mas não criando o seu próprio universo, como no caso de títulos para leitores mais jovens, como Dragonball, Naruto ou One Piece. Se esse elemento surge, ele atravessa um quotidiano banal, tornando assim a fantasia aos seus leitores mais significativa (e com consequências específicas, como veremos).
Além disso, esta série é, de pleno direito, uma obra elegante do género policial, com o xadrez complexo, exuberante e subtil entre Light e L, o seu némesis (e reflexo?). É claro que esse é um elemento estrutural, que nada diz da construção das personagens, da densidade ou grão de inscrição na realidade, nem como reflecte eticamente o mundo, mas não é um aspecto técnico de somenos importância. Não é por acaso que Light e L são muito parecidos quer em termos físicos - inclusive o tratamento gráfico com as claríssimas diferenças - quer em termos comportamentais, mas em vez disso constituir uma clara, redutora e pateta simetria invertida de moralidades, isso é explorado de uma maneira inteligente.
O ofício de construção narrativa é também muito elegante, espelhando essa outra, com todos os elementos adicionais de informação a serem dados aos leitores de forma paulatina, surpreendente, sem nunca se esgotar o ritmo e contribuindo para uma crescente tensão que só se esgotará no final. Esse é um dos aspectos em que a serialização típica da mangá comercial, com curtos episódios em cada publicação - este volume corresponde a uma agregação de 7 episódios -, conduz a estrutura, e informa parte do sucesso de uma obra. Na verdade (e o mesmo acontece na versão animé, apesar de ter sido produzida depois, pois em nada altera a ordem e estrutura original), a primeira parte é tratada de maneira extremamente controlada, mas a segunda parece retomar uma estrutura idêntica, e torna-se menos interessante, algo que foi assinalado por outros críticos.
Mas a dimensão de Death Note que é impossível de não mencionar, e alvo de muitas discussões, é a sua ética. Como saberão alguns leitores, existem muitos casos um pouco por todo o mundo em que jovens fizeram as suas próprias versões caseiras do Death Note, para preocupação dos seus pais e educadores, e até mesmo autoridades. Nesses cadernos, imitando em maior ou menor grau os aspectos gráficos, textuais e regras de funcionamento do objecto original, anotavam-se os nomes de colegas, professores, membros da família, imaginando-se assim a ideia da sua morte. Ora, não nos é possível - até por não termos conhecimentos suficientes - discutir os contornos dessa situação, se deve ser realmente alvo de actos disciplinares, policiais ou piores, como tem sido corrente, ou se simplesmente visto como um fenómeno “corrente”, ou até “normal”, entre os adolescentes (ou crianças e adultos). Mas em países como os Estados Unidos, onde o acesso a armas de fogo é comum e os crimes de homicídio dentro de escolas são constantes, a situação é seguramente diferente do que em Portugal, onde a violência tem outros contornos. Sem querer reduzir todos os casos à nossa experiência pessoal, aquilo de que fomos testemunhas directas - alunos criando o seu próprio caderno ou decorando os seus blocos de nota como se se tratasse de um caderno deixado por Ryuk - quase sempre era uma fantasia inócua, idêntica à de usar t-shirts com imagens, palavras ou cenas controversas. E quem, de entre nós, não fantasiou na vigília algo de cruel e doloroso a uma qualquer outra pessoa? Essa é uma das liberdades curiosas de uma obra que mistura fantasia e vida quotidiana: gestos absolutamente reais e possíveis de cumprir neste mundo podem imitar os daquele (o momento em que Light explica como cria o seu esconderijo e mecanismo de segurança do caderno quase parece uma instância de faça-você-mesmo, até às imagens instrutivas), algo que seria difícil em relação a actos como voar, praticar jutsu ou transformar-se num super sayan (se bem que não falte quem tente).
Mas sem querer sequer imaginar poder resolver ou contribuir para essas controvérsias ou confrontos disciplinares, que consideramos necessárias à discussão pública sobre o papel da banda desenhada, da cultura popular, do imaginário, mesmo que violento, no desenvolvimento das crianças e adolescentes e no entrosamento com a vida real das pessoas, voltemo-nos para o texto em si. Na tal “pesquisa do si e dos outros” de que se falava acima, Light atravessa toda uma série de considerações éticas das suas decisões. Ao princípio pensa que o caderno é uma brincadeira, e experimenta-o somente em relação a uma ameaça real: um assassino que tem como reféns crianças numa escola (a escolha moral não é difícil, mesmo que não se acredite na pena de morte ou em intervenções radicais da parte da polícia). Depois experimenta-o num outro caso mais complicado, e sente imediatos remorsos ou conflitos internos por isso, para logo imediatamente sentir uma espécie de epifania à la Travis Bickle, decidindo que ele é a pessoa ideal para ser responsável por aquela arma, pela sua inteligência, sentido de justiça e superioridade moral [o que se vai sublinhando pela forma como Light tenta contornar as "leis" do pacto, e o modo como o deus da morte se surpreende com ele]. Quantas vezes ouvimos cidadãos a emitir juízos sobre a necessidade da pena capital em relação a certos crimes? Quantas vezes não sonhamos nós com uma justiça violenta, sobretudo agora em que muitos direitos são coarctados aos cidadãos em prol de uma “produtividade” que teima em chegar? E o contraste que se faz no livro entre a opinião pública (reuniões de trabalho, divulgação na televisão, o governo e a polícia, etc.) e a opinião anónima (sobretudo através da internet) é um retrato muito justo. O surgimento de um instrumento fantástico, que há partida não deixaria pistas sobre a responsabilidade da vontade - repare-se que a arma é um desejo e uma acção simples, mas não o puxar de um gatilho, ou melhor, é a realização efectiva de um desejo -, como é que seria empregue na vida real? É essa a questão colocada, e a através do seu mecanismo ficcional, por Death Note.
No entanto, será aceitável que se explore um universo que dá acesso a um poder tão bárbaro como este? Afinal de contas, nunca sabemos quem são as vítimas de maneira exacta. As palavras “assassino”, “violador”, ou até “chunga” podem surgir, mas serão elas suficientemente fortes para justificar o novo crime perpetrado por Light? Estas são questões que fazem parte do b-a-ba do início do estudo do direito, onde podem surgir aquelas perguntas hipotéticas - adolescentes, lá está - de “e se você chegasse a casa e encontrasse o assassino da sua família, etc.?” Lei de Talião? É nesse sentido que esta união entre uma justiça violenta, a centralidade em personagens jovens, a separação desses protagonistas de um mais produtivo diálogo no seio da família e da sociedade torna-o, tal como Dragonhead e Gantz, obras “frias” em termos emotivos e pouco conducentes a uma educação que integre as pessoas na rede humana em que deverão existir. Ora aqui está o problema eterno. Acusar a obra? A sua circulação? A falta de educação de alguns dos seus leitores? Os pais? Os professores? A sociedade em geral? Já se dizia num sketch dos Monty Python: Assassino: “Sim, fui eu, mas a culpa é da sociedade”, Polícia: “Muito bem, prendam-na também”.
A nosso ver, pensamos que esta, como outras obras, são mecanismos que levantam questões prementes nos seus leitores-alvo, mais jovens, e que poderão ser pasto de conversas muito produtivas.
E antes que se faça uma acusação de maniqueísmo a Death Note, leia-se com atenção essas mesmas implicações. É verdade que enquanto título dedicado a adolescentes, não é seu caminho uma maior complexidade ou ancoramento num realismo duro, mas antes alegórico (o que não impede adultos de tirarem prazer da sua leitura, bem pelo contrário). Não é que as crianças ou os adolescentes não sejam capazes de lidar com a realidade; em certos contextos, são até vítimas de um realismo demasiado duro. Mas cognitivamente é apontado por certas escolas da psicologia do desenvolvimento de que é esta fase do seu crescimento que começam a tomar consciência de noções abstractas, a projectar situações conjuntivas e hipotéticas, utilizando-se as ficções desses “ses” para ponderarem formas de resolução, conflito, resposta emocional, etc. Death Note é precisamente um mecanismo dessa possibilidade, e que envolve questões éticas e morais bem complicadas e, claro, passíveis de fazer emergir sentidos controversos como os apontados acima. O mesmo poderia ser dito das séries Gantz, Dragonhead, e Mirai Nikki (uma colagem à premissa de Death Note, na verdade).
Afinal, o que os leitores de Death Note experimentam - e que podem fantasiar fabricando um fac-símile dele - é perguntarem-se “que farei com este livro?”
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do volume.
7 de abril de 2012
Death Note # 1. Tsugumi Ohba e Takeshi Obata (Devir)
Publicada por Pedro Moura à(s) 4:37 da tarde
Etiquetas: Japão, Mainstream
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1 comentário:
Amo death note!! se existisse continuação eu ia adorar
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