No blog da Ruru Comix foi apresentada parte de uma autobiografia do autor e editor dos projectos associados a essa chancela, Rudolfo, e que será publicada no próximo número da Lodaçal Comix. Nela aprendemos vários pormenores, mas sendo o mais significativo, para nós, agora, o momento em que ele confessa que essa mesma publicação pretende ombrear outros projectos internacionais (cita-se a Garo e a Kovra), de maneira a “reflectir os meus gostos esquizofrénicos ao lado do amor pela banda desenhada”.
Aquela palavra, “esquizofrénico”, é escolhida não por uma exactidão clínica, mas como desejo de transmitir aos leitores a verve com que Rudolfo da Silva (seu pseudónimo artístico, mas para todos efeitos nome para toda a obra) se dedica à sua produção. Na mesma veia, o apodo que outros seus leitores lhe deram, de “hiperactivo” (recordando, sem dúvida, o refrão dos Dead Kennedys: “You’re a hiperactive child/You’re disruptive, you’re too wild”), seria imediata e explicitamente adoptado pelo mesmo. De facto, olhando para a sua produção no campo da banda desenhada, de que estes títulos são apenas uma amostra, encontramos trabalhos para outros editores, os seus próprios fanzines e o esforço editorial da antologia.
Mas além disso acrescenta-se outra dimensão que, não sendo obrigatória conhecer para a leitura destes trabalhos, ajuda a moldar o mundo de que partem e em que se inscrevem. Essa dimensão é a da música, já que Rudolfo da Silva (página no myspace) é uma das referências contemporâneas do que se faz por cá do chamado “chiptune” ou “Nintendocore” ou “8-bit punk” (confessemos que não estamos nada seguros no uso destes termos). Os concertos bebem da música de jogos de computador, do nu-metal, dos Ministry, das canções de abertura de séries de desenhos animados (Navegantes da Lua!), do pimba nacional, e até de canções provavelmente cantadas nas tendas de evangelistas… um caldeirão sem nenhum tipo de hierarquia ou preocupações de fronteiras de género para criar um comboio de referências, empregue somente numa queda livre de ruído, atitude e um real marimbanço para muitos dos limites que são sempre empregues em sociedade, mesmo por muitos dos cultores do anti-social. A experiência de um concerto de Rudolfo da Silva é uma imersão libertina numa energia pós-adolescente que vive num equilíbrio precário entre o sério e a brincadeira: não se percebe se é uma brincadeira que deve ser levada a sério, ou se é algo de sério que se deve levar a brincar. Talvez as duas.
Esse manancial de referências (Nintendo, animé, metal, etc.) encontra-se também estilhaçado e depois recomposto nos trabalhos de Rudolfo enquanto autor de banda desenhada. É como num universo paralelo Mike Diana fosse um autor sociável e conhecedor da cultura basura do youtube e tivesse “cool” como parte do seu vocabulário.
666 Hardware parece começar a meio de uma aventura, mas desconhecemos se pertence de facto a um épico maior. Uma personagem que se parece muito com o avatar da banda desenhada do próprio Rudolfo noutros trabalhos, mas armado de dois cornos e chamado de Satan, penetra num mundo diabólico com o seu imenso companheiro diabo Catumba, o qual se pode transformar numa espada, obviamente demoníaca, empunhada pelo mestre. Ambos procuram um skate que pertenceu a um legendário Natas Slayer. Lutam contra hordas de demónios, incluindo um gigantesco Vaginoroth, até conquistarem o seu prémio. E depois vão para casa.
Esta última frase pode parecer ridícula, e é-o sem dúvida na descrição, mas é justa. O que é curioso nisto tudo é que apesar de começar a meio, atravessar páginas de acção frenética, e morte, termina de uma maneira calmíssima, sem fanfarra, e Satan e Catumba volta para onde vieram… É como se tivéssemos atenção ao que acontece antes ou depois das cenas representadas nas capas de discos de metal. Um pormenor gráfico é que todos os “ts” são desenhados de maneira a parecerem cruzes invertidas, dando continuidade a toda uma série de clichés satânicos das capas de discos de heavy metal e derivados (mas para além da referência directa aos Slayer, a banda sonora só poderia ser mais frenética, talvez Anaal Nathrakh?).
Musclechoo é também uma espécie de festa rija de violência, utilizando uma espécie de Pikachoo schwarzenggeriano como personagem principal, lutando contra um exército de lutadores mexicanos (com as costumeiras máscaras), a soldo de um demónio. A missão é salvar a sua namorada, e apercebemo-nos de que a história vem de longe, como se este número fosse parte de uma série maior (uma estratégia análoga à de Alan Moore e companhia com 1963). Essa missão é cumprida, não sem um preço grande pago. Depois disso, Musclechoo dirige-se no seu jipe para uma fortaleza muito parecida com aquela de Hardware.
Se a descrição pode parecer muito idêntica à de 666 Hardware é porque a cultura de que o trabalho de Rudolfo emerge está menos preocupada com explorações de originalidade e psicologismos do que por uma dedicação quase exclusiva à conquista de pontos, à superação da prova, à chegada ao fim da missão. Desde os primeiros Game Boys dos anos 1980 às X-Box e ao que se seguirá, pode haver transformações de memória, capacidade de informação, velocidade de acção, número de níveis, de personagens, de habilidades, de cores, etc. mas as instruções serão sempre as mesmas:
Os modos de produção e desenho são algo diferenciados, com Hardware mostrando uma mais controlada arte final, provavelmente com tinta da china e artpen, uma maior cobertura dos fundos com preto, contornos mais grossos, e um trabalho de volumes e sombras com tramas mais consistente e paciente. A própria estruturação das páginas é cuidada, e regular, ainda que variada ao longo da história. Musclechoo parece ser feito mais depressa e mais despreocupadamente, talvez a esferográfica ou com uma caneta fina, as tramas criadas mais ao acaso, todos e quaisquer “erros” gráficos incorporados no desenho final, e apesar de haver uma idêntica variedade na composição de página e das vinhetas, estas são desenhadas à mão.
Lodaçal Comix é uma antologia viva, atenta e electrificante, que tira partido dos vários circuitos internacionais existentes numa rede underground de publicações, artistas e locais, sobretudo europeia, mas não só (Rudolfo parece ter aprendido muito com Marcos Farrajota e a Chili Com Carne, mas tem trilhado um caminho seu). Essa é uma das razões pela qual os zines de Rudolfo são em inglês, permitindo logo uma distribuição imediata nesses circuitos. É difícil, talvez mesmo indesejável, querer procurar características comuns entre os trabalhos e artistas aqui reunidos, quer portugueses quer internacionais. Talvez a única seja mesmo a disponibilidade em se encontrarem num mesmo espaço de expressão, e partilharem uma despreocupação - lá estão as afinidades de Rudolfo - por géneros narrativos, instrumentos de expressão, limites de possibilidade do que se diz e mostra, etc. “Lodaçal” é um termo muito correcto, não em relação à qualidade de algo informe, mas antes de experimentação total, barro moldável e parede dura - a publicação - à qual se atiram bocados ainda por secar…
Não é de surpreender, portanto, que encontremos aqui, unidos nessa tal verve, escolhas que oscilam tanto entre o cute e o grotesco, o onírico e o mais desesperado dos realismos, o estilo mangá e o metal/fantasy, o minimalismo e o virtuosismo, o poético e o escabroso, o character design e as capas de disco, o J-pop e o black metal, e o que mais for possível. Uma salada indigesta, sem dúvida, mas para que tomemos maior consciência, até física, do processo da digestão cultural. Tendo em conta a maneira como o “mercado” das publicações de banda desenhada são geridas em Portugal, não deixa de ser sempre motivo de curiosidade dos seus gestos mais amplos e contemporâneos e informados sejam encontrados fora dos circuitos mais institucionalizados. E provavelmente votados à desatenção permanente dos mesmos elementos que compõem essa institucionalização.
Os artistas que participam - neste número “fora de série” - são os seguintes (com links activos, providenciados no fanzine): Weja, Luiz Berger, Jesse Balmer, Jack Hayden, Tiago Araújo, Ricardo Martins, Zach Hazard Vaupen, Bruno Borges (com Christina Casneille), Nick Edwards, Marco Mendes, Laurent Albert, Tagas, Leah Wishnia, Michael Deforge e Natalie Andrade.
A partir daqui, os leitores poderão eles mesmos procurar que tipo de afinidades conseguirão criar entre eles ou que tipo de subsunção sofreram sob a perspectiva, frenética esquizofrénica, hiperactiva, de Rudolfo.
18 de março de 2012
Vários títulos. AAVV (Ruru Comix)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:36 da tarde
Etiquetas: Antologias, Portugal, Zines
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2 comentários:
Gostei muito da crítica Pedro.
Acho que percebeste bem as coisas todas sem grande problema. (até a parte do épico que está guardado no segredo dos deuses... )
Novas BDs pessoais vão sair no futuro ( juntamente com mais LODAÇAIS ), e tratarei de reencaminhar-te isso.
Enquanto essas novidades editoriais não surgem ( tirando o LODAÇAL #5 já ter saído... ), vai dando uma olhadela no webcomic do MUSCLECHOO. Uma página nova todas as quartas e sábados aqui: www.musclechoo.smackjeeves.com
Continua onde o #1 do zine ficou. Numa outra altura conto-te os e-mails que tive a chamar-me misogene e homofóbico relativo a esse mesmo #1.
Obrigado.
Abraço,
R
Mas que és misógino e homofóbico não pode haver dúvidas, Rudolfo! É tudo uma pouca vergonha sem eira nem beira, e uma apologia à violência o que tu fazes. Por isso, deves estar quase, quase a ser contactado pela Marvel!
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