24 de agosto de 2012

Buraco #1-4. AAVV

Uma vez que “demorámos” na leitura dos três primeiros números desta publicação, a sua leitura agora à luz do quarto número não pode deixar de fazer revelar algumas interpretações retrospectivas. É possível que, fosse ela feita noutro momento anterior, o nosso discurso procurasse outros instrumentos, delimitasse os gestos de outra forma, mas essa não é mais uma possibilidade. Seja como for, a vertente interventiva, política, de comentário social, é por demais evidente nos trabalhos reunidos nas suas páginas, e que simplesmente se exacerba - inclusive na sua “explosão” ao nível material - no quarto número. (Mais) 

De uma forma superficial, poderíamos descrever Buraco como mais uma publicação antológica que reúne os esforços de alguns artistas que têm continuamente colaborado em vários projectos, mas que pretendiam trazer um qualquer grau relativamente diferente em termos da forma de o fazer. Associando-se a muitas publicações contemporâneas, mas que pretendem a um só tempo remeter, complicar e associar-se paradoxalmente a práticas passadas, Buraco pode ser descrito como um “jornal”. O seu formato (25 x 35 cm, fechado), a sua paleta cromática (a preto-e-branco no miolo, capa com uma segunda cor, por vezes dispensando o preto, e repetindo esse padrão na folha central), até a sua periodicidade (mais desejada que cumprida), o tirar partido de toda a folha para os trabalhos (com excepção do quarto número), entre outros descritores, permite-nos o uso dessa palavra (e, assim, associá-la a coisas como Paper Rodeo, Kuti Kuti, ou Diamond Comics). Não obstante, a agregação destes autores a  uma linha de fanzines não é de todo deslocada, tendo em conta se tratarem - o núcleo duro, que coordena o projecto - de Miguel Carneiro e Marco Mendes (do projecto A Mula), Nuno Sousa e Carlos Pinheiro (do Senhorio), Bruno Borges (do Monteravi) e ainda uma nova autora (em termos de exposição pública) do Porto que assina como usurpária, e cujo emprego dos lápis, sem tinta, é desde logo consabido (mais - e agora com informações corrigidas - o autor que assinava como cumulonimbus, apesar de ser parte activa em termos editoriais do núcleo, não voltou ainda a produzir trabalhos de banda desenhada no seu interior). Além destes, a ideia é existirem “convidados” em cada número, mas os nomes de André Lemos, Jucifer, André Ruivo, José Feitor, José Smith, Joaquim Vieira, entre outros, remetem para um universo de criação e edição relativamente coeso, coerente e contínuo no nosso país.

Os primeiros três números são bastante similares na sua distribuição de trabalho, com uma média de 2 páginas por autor, mas nalguns casos ultrapassando-as, ora com histórias maiores (Carlos Pinheiro com 4) ora com trabalhos de diversa natureza (como Marco Mendes, com uma  ilustração maior). Quase todos os autores participam com trabalhos facilmente integráveis nas suas obras contínuas, seja pelas mesmas preocupações temáticas seja pelas abordagens formais, se bem que se encontrem nalguns casos, sobretudo no de Miguel Carneiro, mudanças mais significativas. Porém, e ainda no caso de Carneiro, estas mesmas alterações fazem já parte da sua própria linguagem, composta por “fases” bem diferenciadas entre si, mas que ao mesmo tempo não deixam de compor uma pesquisa continuada.

Porém, não estando seguro se existirá alguma programação explícita da parte deste núcleo e os seus convidados, não deixa de ser notável, senão mesmo óbvio, que todos os trabalhos estão unidos por preocupações sociais muito atentas ao que se passa no nosso país neste momento. Quer dizer, todos eles elegem a banda desenhada não enquanto veículo para a construção de histórias que respeitem géneros expectáveis, e o seu papel social mais usual (nada de negativo existe quer numas quer no outro, todavia procurar-se-á uma complexidade social maior, sem dúvida), nem somente como meio da expressão pessoal e de pesquisa artística que é possível, mas como claro instrumento de intervenção social e política, reforçando portanto a função e forma do “jornal” de uma maneira moldada.

Independentemente de os autores continuarem com os seus “programas habituais” - Marco Mendes revisitando a sua vida ou a vida do seu avatar pessoal, Nuno Sousa explorando um estranho mundo de arte contemporânea, solidão e geriatria, Bruno Borges as relações humanas no seu mais reduzido esquema, Carlos Pinheiro e uma revisitação de uma espécie de commedia social e cultural (Chaplin et al.) - todos eles abrem esses mesmas questões a realidades mais imediatamente ligadas ao nosso entorno actual. Os discursos dos políticos, as relações económicas e o custo de vida, o desemprego ou a sua precariedade, memória e tradições de miséria no país, a falta de habitação, as relações entre o poder oficial e projectos alternativos de vida (o tema do projecto Es.Col.A já se encontra in ovo, no terceiro número, pelo trabalho de usurpária), ou a imposição de discursos e comportamentos à população, ou mesmo a imbecilidade de certos actores públicos, enfim, tensões que se sentem cada vez mais nos nossos dias. Até alguns títulos das peças remetem, sob a forma de citação ou expressões feitas, a nomes próprios ou conceitos específicos, a essas mesmas realidades: “Tempos modernos”, “A vida acima das suas possibilidades”, “Amanhã é outro dia”, “Merkel”, “Recessão”, já para não falar da maneira como alguns autores (Borges, Sousa, Pinheiro e usurpária, sobretudo) empregam toda uma retórica “oficiosa” e tipificada, de um “vai andando” de comiseração. Quer dizer, de uma forma, ou outra, todos estes trabalhos tentam ser uma resposta à gritante injustiça de certos acontecimentos que medram por Portugal, ou a desequilíbrios nas formas como os vários poderes tentam responder à crise que se atravessa. Mas acima de tudo, concorde-se ou não com o posicionamento destes autores e dos seus trabalhos, creia-se ou não nas responsabilidades até agora apuradas ou nas soluções apresentadas, penso ser-se complicado não concordar que o discurso unificado desta publicação é a de uma resistência, um contra-discurso àquele que mais se vê propalado na esfera pública, sobretudo pelos media tradicionais, quase todos sem excepção integrados numa qualquer malha de interesses e de influência política que impede, não tanto a “objectividade” (quiçá utópica), mas pelo menos algum grau de transparência em relação a esses mesmos discursos lavrados. Isto é, Buraco, é, acima de tudo, uma outra resposta, que mobiliza todos os seus instrumentos editoriais (veja-se o blog do projecto para descobrir mais), verdadeiramente alternativos, no sentido mais social da palavra.

“A presunção insolente que nenhuma resposta poderá alguma vez ser livre… tem a ver com o facto de que a resposta pretende estar à altura do discurso do outro, situá-lo, entendê-lo, ou até mesmo circunscrevê-lo ao responder ao outro e face ao outro”. Estas palavras são de Derrida, em Sauf le nom. Entender-se-á a forma como se relacionam com os assuntos trazidos a lume pela publicação. Os poderes estatais, institucionais, corroborados pelos meios de comunicação social, que não pretendem de forma algum ter mais trabalho do que lhes dá terem relações directas com as mesmas fontes oficiais, impõem sempre a regra de ouro do desequilíbrio do diálogo que é estipular essas mesmas regras e declarar toda e qualquer comunicação fora do seu âmbito como “não-existente”. Isto é, qualquer resposta que exista fora do enquadramento do que está previsto e tipificado por quem o cria não pode jamais ser visto como resposta sequer. Esta situação vê-se multiplicada numa série de situações (as relações do Estado com a banca, o papel da cultura e da educação, a malha industrial, etc.), e tem no episódio do projecto Es.Col.A na Fontinha, no Porto, um exemplo mediático (no tempo a que teve direito antes do próximo tema) acabado. Aliás, é nessa aliança que Buraco aprofunda a sua relação com essa cidade, não apenas por parte do seu núcleo ser dessa cidade (Carneiro, Mendes, Pinheiro, Sousa, usurpária), mas um pouco naquele sentido - hoje talvez banalizado - do “pensar globalmente, agir localmente”. Como escreveu Sara Figueiredo Costa, Buraco não é meramente, ou sequer, panfletário. Estará mais próximo de uma subversão rude, que, num contexto escolar, recorda o grito de revolta do pequeno Tabard em Zéro de Conduite, de Jean Vigo: “Monsieur le professeur, je vous dis merde!”.

Se no 3º número, usurpária já havia criado uma espécie de “carta aberta” sobre a situação desse projecto, com ilustrações aparentemente simples e infantis, de pequenos porquinhos sofrendo às garras dos proprietários e seus sequazes lobos, o 4º número do Buraco faz explodir a relação com a defesa desse mesmo projecto, dando voz e presença aos seus agentes, envolvidos e defensores, elaborando trabalhos de ilustração referentes à ocupação do projecto, ao seu (desnecessário e pouco inteligente) violento despejo pela parte da polícia, bandas desenhadas reportagem-comentário, documentos impressos (de cartas de parte a parte, posters), fotografias, tudo num movimento de construção de arquivo e subsídios informativos em torno desse “episódio”. É preciso notar, desde logo, que parte desses mesmos documentos, mormente gráficos, foi construída por membros do próprio grupo do Buraco, via atelier Arara, por exemplo, como os cartazes do Zé Povinho e Rui Rio espalhados pelos muros da cidade, para que fossem “intervencionados” pelos cidadãos, e mais uma vez remetendo a experiências históricas destas linguagens, como os cartazes parisienses espalhados durante o Cerco de 1870; e não se poderá falar de um certo “Cerco” nos nossos dias?). Pouco nos importará agora aqui discutir esse projecto em particular, por nem sequer estarmos munidos com todos os instrumentos que seriam necessários a isso, e por nem ser esse o papel desejado.

Não nos coibiremos porém de entender esse entrosamento entre o Buraco e o projecto Es.Col.A uma aliança, no mais profundo e integrado sentido da palavra “política” (associando-a à polis, à cidade, ao envolvimento dos cidadãos de uma forma directa no seu exercício de poder), como uma opção consciente, vincada e significativa. A escrita de uma resposta que nos pretende fazer (re)pensar seriamente sobre a maneira como as notícias são, não dadas, mas construídas, eliminando a ilusão de uma vez por todas de que “contra factos não há argumentos”, uma vez que os factos são eles mesmos argumentos, por serem construídos de uma certa maneira, e não de outra. O problema é que estas questões hoje são feitas de uma forma que as impedem de serem mais claras, ou de serem apresentadas de uma forma mais cabal. Tudo o que parece estar fora das “expectativas” ou das “tipificações” previstas pelo poder são necessariamente vistas como “problemas” e, logo, algo a erradicar, apagar, anular, vergar. Se há, pelo menos a nosso ver, alguma dificuldade em impor um fascismo militarista sobre um estado moderno europeu (ou assim querermos acreditar), já não estamos seguro sobre a forma como a relação democrática pode ser minada, em termos participativos, através da distracção e da manipulação da informação, e através de uma espécie de “opressão diluída”, em que os receios estão mais distribuídos (perder o emprego, não conseguir pagar a conta, progredir na carreira, ser elogiado por um círculo, etc.). Por exemplo, pense-se como a eleição da “droga” (reificada usualmente como um todo absoluto e sem quaisquer qualificações e, mais importante, sem contexto social específico e múltiplo) como o inimigo a abater apenas reforça o discurso simplista, moralizante e económico-politicamente interesseiro da oficialidade (“que não é contra o flagelo da droga?”). Como escreve o investigador Luís Fernandes, do “combate à pobreza” prometido (noutros círculos igualmente, não só na cidade do Porto), passa-se ao “combate aos pobres”. Outros pensadores contemporâneos, como Brian Massumi, também sublinham a directa relação existente com estes sistemas de opressão diluídos. Escreve ele, em The Politics of Everyday Fear: “se somos incapazes de nos separar do nosso medo, e se o medo é um mecanismo de poder para a perpetuação do domínio (…) a nossa participação inevitável na cultura capitalista do medo [é] uma cumplicidade com a nossa própria opressão, e a dos outros”. E contra o medo só pode haver uma resposta. [nota adicional, após discussão com uma leitora: Ficaremos na dúvida se este apoio é apenas nominal, já que um movimento desta natureza tem de estar revestido de acções mais consetâneas, e a dimensão romântica associada à banda desenhada, mesmo este círculo "alternativo" poderá nunca assumir o peso que pretenderia ter; por outro lado, não temos uma tradição nem muito espalhada nem eficaz destes movimentos, que lutam contra uma incompreensão alargada da parte do resto da sociedade, mas que eles mesmos se subdividem muitas vezes em mais desejos e gestos intelectuais e não tanto de diálogo e acção directa com as populações locais; falei de Vigo, e de filósofos, mas existem outros instrumentos mais prementes nestas acções, sem dúvida].

Dissemos “diluídos”, acima, mas no caso desta resistência portuense, poderemos dizer que o “inimigo” é, na verdade, mais nítido: os claros interesses camarários num processo de centrifugação violenta da cidade do Porto, na qual estão envolvidas outras realidades, do mercado do Bolhão às Torres do Aleixo, passando por toda a baixa (deprimida) da cidade. Sem dúvida que estas questões são de uma complexidade assombrosa, e que implicam factores económicos que não podem passar somente pela preservação do típico e do mesmo, mas tampouco pela fuga na transformação gentrificada mais tipificada (bairros de luxo, centros comerciais modernos, e empurrão dos problemas para zonas suburbanas), e que tanto têm redes políticas como sociais. Por outras palavras, não haverá qualquer solução simples e incontroversa. Todavia, também é seguro que não é na falta da sua discussão que se conseguirá conquistar um espaço de solução. Ora o Buraco é um contributo para isso, mormente o último número.

É, portanto, não apenas uma questão de curiosidade mas de força e alegria vermos num projecto português - usualmente alheio a um tão claro envolvimento político directo, ou com uma  realidade controversa - a empregar a banda desenhada como um possível instrumento (se o reduzir ou instrumentalizar da pior forma) de mobilização social e política, sem com isso perder as características formais e estéticas de cada um dos autores envolvidos. Demonstra-se assim como a banda desenhada não é apenas uma “máquina de fantasia” ou de “construção de mundos”, mas de resposta, mais uma vez, àquilo que Erving Goffman chamava de “desatenção civil”… Não é que não haja nestes trabalhos algum tipo de outras linhas de força, como o humor. Aliás, os trabalhos de Miguel Carneiro, mais no interior da publicação do que nas suas capas altamente estilizadas, apresenta ilustrações que remeterão para uma longa tradição que provém das revistas de caricatura e imprensa ilustrada francesa do século XIX (Daumier e seguidores) e XX, não sem fazer alguma menção a um humor de “baixo-ventre” tantas vezes elemento de autores portugueses (uma espécie de mistura entre Topor e Vilhena, portanto?). O humor mais ou menos desbragado de Marco Mendes (e seus personagens) são também um retrato do tipo de defesas, por mais fracas que sejam na verdade, que se conseguem desenvolver face a apatia e o desânimo dos nossos tempos.

Para todos os leitores que acompanharam o processo da Es.Col.A, seguramente que a pena imposta a alguns dos voluntários do projecto, a fazerem trabalho de voluntariado, talvez seja a mais divertida consequência, não fosse a terrível e bafienta justiça que isso implica: a que apenas há espaço para o voluntariado no interior de regras precisas (a “tipificação”, de que Mário Moura zomba com razão). “Numa sociedade do consumo em que a esfera pública se tem tornado incrementalmente co-extensiva ao mercado”, como escreve Sianne Ngai (Ugly Feelings), impõe-se cada vez aquela palavra de ordem de Bernard Noël (também citado por Ngai): “A revolta age, a indignação procura falar”. Ora não podemos deixar de ver em Buraco um gesto que “procura falar”, mas que num determinado momento - o quarto número - se entrosa, pelo menos parcialmente, com aquela parte de revolta protagonizada pela Es.Col.A. Se apenas fala, pelo menos é um “je vous dis merde!”.

11 comentários:

Anónimo disse...

apenas uma nota: o autor que assina cumulonimbus nunca desistiu e esteve (e está) sempre presente, nas melhores discussões e em todas as respostas.

u

Pedro Moura disse...

Olá. Já corrigi a informação, mas depois da conversa com o autor, tinha ficado com a impressão que, não deixando de estar associado ao núcleo, tinha deixado a banda desenhada (apesar da menção ao trabalho de design).
Obrigado,
Pedro

Marco Mendes disse...

Belíssimo texto, Pedro, parabéns!Estas reflexões serão sempre fundamentais para pensar (e repensar) o próprio projecto. A diluição da opressão em todos os quadrantes das nossas vidas e o medo que sentimos em arriscar seja o que for para mudar a situação, são como tu dizes o resultado da política de quem usa o poder ( local\global). Esta publicação reage contra a situação como um cão acossado por um bando de delinquentes - rosna e procura morder-lhes. Grande abraço!

Pedro Moura disse...

Mas, Marco, se notamos sem dúvida que se "rosna", a pergunta é, "mordem mesmo?".
Abraços,
Pedro

Anónimo disse...

essa informação está correcta, mas o texto falava em colaboração (participação), daí a "anotação", pois ela existe e o projecto não pretende hierarquizar tipos de participação, quanto muito responsabilizar um núcleo concreto.

como o marco disse, toda a reflexão externa é importante para quem o trabalha, não pela mediatização (do projecto ou dos autores), mas porque o distanciamento é um bom conselheiro. obrigada portanto.

aproveito e ponho o dedo (pessoal) no ar: o marco diz que "procura morder-lhes", o pedro pergunta depois "mordem mesmo"? penso que o marco respondeu antes da pergunta. se procura (como em pretender), só o trabalho no tempo poderá responder. por mim, espero que consiga atingir sensibilidades várias (um mesmo mosquito pode fazer pequenos, médios ou grandes estragos, dependendo sempre da sensibilidade do hospedeiro à sua saliva), mesmo sendo certo que não existe para converter os lugares cativos.

na minha perspectiva, o mínimo expectável seria transformar-se o amador na cousa amada, ou uma espécie de ouroboro. já mordia um bocadinho - pelo menos um punhadito de pessoas.

abraço,

u



Pedro Moura disse...

Olá, u,
A minha pergunta era retórica e, por um lado, gostava de partir de uma perspectiva convencida de que estes gestos são eficazes em termos de, pelo menos comunicação e transformação. Quer dizer, face à forma absolutamente manipulada como os meios de comunicação social "montaram" as notícias em torno do projecto Es.Col.A, formatando desde logo a "opinião" da esmagadoria maioria das pessoas, que toma o que é veiculado pelos media como "verdadeiro" e "objectivo", e por compararem o que é aparente apenas às suas expectativas sociais - na qual a "solidariedade Swatch" ou a "caridade" tem mais cabimento do que a "acção", o "Buraco" mostra como é possível à banda desenhada, e outros meios, serem um meio de intervenção política. as por outro lado, há um olhar meu algo descoroçoado, cínico até, ou então cómodo-burguês (aceito o apodo), que estas batalhas estão perdidas à partida, se não se somarem as forças e os esforços, e mais acções ainda. Que viva o Buraco, sem dúvida, e que morda quem deve morder, mas os que deveriam ser mordidos estão como que imunizados. Basta ver a displicência, por exemplo, com que António Borges despachou a questão dos trabalhadores da RTP que eventualmente estarão "a mais" no enquadramento fantasioso que inventou. Cada vez mais me convenço que na expressão "classe política" a ideia de que há "classe" (elegância, sensibilidade, equilíbrio, capacidades de diálogo e ponderação, tacto, até mesmo inteligência) é errónea.
Obrigado eu.
p

Marco Mendes disse...

Percebo o que queres dizer, Pedro, mas não será um pouco niilista acreditar à partida na ineficácia de qualquer gesto "artístico" para mudar a situação? A força deste jornal vem do facto de ser o esforço de meia dúzia de líricos, talvez, mas existe, e de número para número torna-se mais conhecido pelo público em geral, e motiva outras pessoas a fazer coisas idênticas, ainda que em pequena escala. E mesmo sabendo que nada muda, daquilo nos interessa, pelo menos estamos aqui para barafustar e nos sentirmos vivos. Abraço!

Pedro Moura disse...

Não é bem isso, Marco, não quero parecer niilista. Sinto é que não há hipóteses sequer de uma coordenação de esforços que leve a consequências mais eficazes. No Maio de 1968, estudantes e agricultores descobriram um momento de lutas comuns. Hoje a atomização é muito maior. No dia em que os utentes das Scuts, artistas plásticos e desempregados da indústria têxtil descubram como trabalhar junto, era um ver se te avias!
pedro

Marco Mendes disse...

Verdade. Um dos problemas aqui é a divisão entre grupos de pessoas. Os partidos de esquerda, por exemplo, parecem odiar-se mais entre si que aos de direita, e os anarquistas ainda pior, conseguem odiar-se entre as várias facções anarcas. Já a malta de direita coliga-se à fartazana, desde que dê para ganhar dinheiro... Abraço

Anónimo disse...

Discordo parcialmente desse ponto de vista: ele é fruto precisamente dessa atomização. O derrotismo é o resultado do engenho da crise actual. As estratégias do poder - mais vinculadas a uma certa direita, mas não totalmente A direita - organizam-se com fim a esse tipo de reacção (também) e a sociedade será assim muito mais permeável à imposição de novas regras. Concordo que as lutas precisem encontrar pontos comuns e trabalhar sobre eles, no entanto posso já garantir que não acredito na sua durabilidade (e pior, na consciência da necessidade de uma mudança de paradigma que nos levará para fora do ciclo) - mas não é por isso que não tento a sorte neste lado da barricada (que não é tão fixo assim, na verdade). Talvez seja uma cegueira ou uma negação da realidade - essa que o poder (sem rosto humano) nos encenou, esse espelho viciado que nos diz nada podermos fazer, que é tudo em vão. Em vez de esperarmos que os desempregados da indústria têxtil, os utentes das Scuts, os artistas plásticos se unam, unamo-nos nós àquilo que acharmos nos retira dessa espera infindável (e cómoda). Se estivermos ocupados com isso, decerto ocuparemos positivamente alguma coisa. O importante mesmo é deixarmos de pertencer (a rapidez é questionável) ao engenho canibalesco. Como? Ele há tantas formas de dizer “este leite está azedo!”

u

Pedro Moura disse...

E este leite está mesmo muito azedo, como sabemos. Espero que o Buraco #5 esteja para breve, para dulcificar por nem que seja um momento.
Obrigado!
pedro