É Michel Foucault a referência fundamental sobre a emergência da loucura enquanto discurso da modernidade. Isto é, uma consideração atenta para as especificidades culturais e civilizacionais do processo histórico alertarão de imediato para o facto de que a “loucura” não é, precisamente, um facto em si mesmo, um númeno, uma realidade objectiva. E ela constituirá os próprios sujeitos (os “loucos”). A lição principal de Foucault é demonstrar como ela apenas surge, no seu entendimento moderno, no seio de uma cultura que começa a ser ocupada pelo discurso da racionalidade, uma normatividade que reduz o espaço de realidades mágicas, religiosas, místicas, começam a desaparecer de todo, em que a razão pretende lançar luz sobre todos os recantos da existência humana. Se o “louco” numa determinada sociedade seria considerado como um veículo da voz de Deus ou dos Fados, trazendo mensagens enigmáticas mas às quais era imperativo pagar tributo – repare-se como o companheiro do protagonista articula uma espécie de aforismo com “Acho que a maioria das pessoas que existem têm almas que estão a viver pela primeira vez”, de maneira a que os seus discursos têm de ser lidos à luz de uma outra forma de entender a demência - , nesta nova configuração social da modernidade as mesmas declarações (mas não o mesmo contexto, o mesmo papel, etc.) levaria antes à exclusão da estrutura social (com tudo o que isso implicaria de negativo: fisicamente impuro, moralmente reprovável, sexualmente indesejável, socialmente perigoso, e por aí fora).
Ora a literatura gótica dos séculos XVIII e XIX, cadinho complexo de géneros como o fantástico, o horror, a ficção científica, a que David Soares indubitavelmente se associa (na verdade, deveríamos antes falar com mais rigor sobre o “maravilhoso” ou mesmo a “fantasia”, mas em qualquer dos casos nenhuma destas inscrições reduz o poder de Soares da plasticidade sobre a língua, de liberdade de movimentos de relação com vários factores políticos, de atenção para com várias facetas da condição humana), só pode surgir enquanto movimento correctivo, digamos assim, dessa inexorável conquista da razão. E, conforme esse mesmo projecto literário-artístico, aquilo que ocupa o lugar central do palco iluminado é a negra alegoria que mergulha os punhos no inconsciente indomável, no estranho selvagem que nos habita a nós mesmos, no ingovernável outro que pulsa em nós mesmos. Por outro lado, o confronto do leitor, dito “normal”, com estas outras experiências, mesmo que fictícias, deverão obrigá-lo a olhar um espelho que poderá reescrever a sua própria inscrição. Nesse sentido, é Arno Gruen, com A loucura da normalidade, que nos alerta para a criação dessas mesmas dicotomias. Palmas para o esquilo pretender precisamente caminhar sobre o finíssimo raminho que separa esses territórios, e que tanto poderá balançar-se com o peso, como vergar-se suavemente ou quebrar.
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Se esse espaço parece querer criar aqueles espaços de suspensão das acções (como sucede em títulos lidos há pouco como El arte de volar e Rugas, por exemplo, ou Jimmy Corrigan), faz-nos também regressar a uma outra noção de Foucault, a dos espaços ditos “heterotópicos”. De um modo sucinto, são esses espaços que se constroem de facto (não são imaginários, mas de pedra e cal), para funcionarem como “contra-sítios”, isto é, tendo uma “posição geográfica na realidade”, são diferentes de todos os outros, porque põem em causa esses mesmos outros espaços “normais”, reflectem-nos, discutem-nos. Os espelhos, os cemitérios, e os manicómios, mas também os teatros e os cinemas e até Daath, de A conspiração dos antepassados), cada um a seu modo, constituem-se como heterotopias, um espaço que se cria para “depositar” aspectos indesejáveis ou radicalmente diferentes da corrente social, mas que concentram em si forças que nos obrigam a reconsiderar os nossos próprios espaços, os nossos próprios papéis. Nas palavras do narrador, “fantascópio” ou “eixo do mundo”, paradoxalmente confundindo e servindo de norma. A árvore, umbigo desse pequeno universo fechado (jardin clos), é apenas a heterotopia dentro da heterotopia.
Os autores criam uma estrutura dúplice, em que uma voz de narrador atravessa toda a narrativa, quase sem ligações directas ao nível diegético visual, e esse mesmo nível, onde têm lugar os acontecimentos representados visualmente, com as suas analepses (fragmentos curtos mas que permitem reconstruir uma ideia geral da sua “biografia”), acessos aos mundos internos do protagonista, os diálogos veiculados pelos balões de fala. O primeiro nível, todavia, assemelha-se a uma espécie de ensaio poético, ou de um longo poema em prosa que tenta descrever o arco que, como insiste em perguntar, separa e aproxima a imaginação da loucura. E, de facto, qual é a resposta? O que as separa? Qual é o ponto de passagem ou fronteira? É a árvore do mundo, que faz subir desde a mais baixa matéria (um ânus exposto) ao inalcançável sol? São os espelhos, que permitem que as sombras atravessem ou que os seus estilhaços libertem? São as sucessivas grades e barras que denotam o mundo estratificado (no berço, no portão do manicómio, o quadriculado da folha escolar)? Se bem que a resposta não possa jamais ser irrevogável, uma possível ideia é avançada pela própria estrutura do livro: uma finíssima película, que permite trânsitos constantes, travessias súbitas ou mesmo impossíveis de sentir, ao mesmo tempo mantendo de uma forma ou outra os territórios separados.
Como em diversos outros projectos de David Soares, a esfera zoomórfica (e suas variações teramórficas) assume um papel central, decisivo. A par de Cerasta, de Fúria de Maio, da Salta-Pocinhas, do Ouriço, o dragão d’O pequeno deus cego, e muitos demónios, junta-se agora um pequeno esquilo, também sem nome e sobretudo, sem voz. No projecto de David Soares, inclusive literário, como já tivemos várias oportunidades de o escrever, a emergência destas criaturas maravilhosas, mais ou menos monstruosas, mais ou menos familiares, acabam sempre por assumir um papel paradoxalmente de reestruturação e recalibração e retorno da “conveniência social”, do equilíbrio desejado por uma qualquer perspectiva da ordem. Não pode ser por acaso, mas por ser tronco comum, que as narrativas de Soares tenham sempre um animal ou monstro totémico assumindo o papel de espelho dialogante com os seus protagonistas (recordemos o monólogo do dragão). Contudo, em Palmas para o esquilo, o animal não fala, não estabelece diálogos com os protagonistas que assombra, auxilia, ou usa.
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A impermanência é uma das poucas constantes da natureza humana, mas no caso do protagonista a grande âncora, o seu fio vermelho que lhe dá um arco na vida é a figura do esquilo, o qual, se numa primeira fase lhe surge como acesso a uma forma de ter sucesso e atenção junto aos seus, rapidamente se torna fruto de uma obsessão que o afasta dos padrões costumeiros (se bem que o episódio da escola tenha um tratamento algo caricato e exagerado, rompendo com a exactidão realista que lhe incutiria maior peso) e, finalmente, seu derradeiro ardil. O modo como essa figura totémica parece ser herdada pelo companheiro, aumenta o grau de mistério do linguajar secreto dessa criatura que é a loucura, encerrando igualmente o enigma das duas mortes. Se ela é “deslaçada da matéria”, como está escrito, porque não permitir esse trânsito? Não há solve, somente coagula.
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Essa última frase pode ser lida também como se se referindo ao modo do livro, isto é, à aliança intrínseca e inalienável entre a tessitura criada pelas palavras e aqueloutra pelas imagens, apenas destrinçável pela mortificação necessária da tarefa da crítica, como queria Walter Benjamin. Se bem que o estilo narrativo da história remeta para todo um conjunto de histórias do fantástico, no seu sentido mais alargado, afectas a plataformas tais como a Caliber Press (Negative Burn), ou a série Hellraiser da Marvel Epic, já a dimensão visual é radicalmente distinta. Mesmo que tenham atravessado esses outros títulos autores com estilos mais “claros” ou pouco associados aos “dark 90s” (Marc Hempel, James Owens, Scott Roberts, Ted McKeever, e até Kevin O’Neill e Brian Bolland na sua fase cómica), nenhum deles atravessava os domínios de ingenuidade, cores vivas e nitidez limitada de Pedro Serpa. Na verdade, mais rapidamente irmanaríamos Serpa a autores tais como Paul Hornschemeier ou Shaky Kane, cuja expressividade constrita partilham, ainda que os desenhos do artista português titubeiem um pouco mais neste volume do que em O pequeno deus cego. E se nesse outro projecto de ambos os autores o estilo pueril e quase inocente de Serpa se coadunava com a “fábula” orientalista, aqui provoca um desfasamento que nos obriga a pensar a sua razão, ou melhor, o seu resultado. A plasticidade, quase deselegante, destas figuras, não possui a coerência interna que se desejaria (repare-se na página 30 onde se vêem pelo menos 4 registros diferentes - e se poderia argumentar-se essa flutuação por haver momentos diferentes, efeitos de realidade versus imaginação, ou mesmo episódios emotivos, neste e noutras passagens isso não poderia ser dito), e a manipulação digital de cores tem é extremamente desarmadora para tornar mais efectivo os momentos de grande choque (revelatórios, desviantes, violentos, terminais) que a narrativa vai espoletando ritmicamente (a impressão nas primeiras páginas faz com que as linhas dos contornos apareçam algo difusas, mas esse é um problema técnico que será reparado numa segunda edição, seguramente, e em nada implica a prestação estilística). Já a composição - prevista nos conhecidos full scripts de Soares - é altamente regrada, e sempre significativa, como havia sucedido no livro anterior. De sequências à Kurtzman a pontuações de tressage, passando por splash pages e cenas recursivas, há aqui um pequeno catálogo de efeitos, todos eles eficientes e pertinentes.
E tudo isto não é senão um punhado de migalhas acumuladas num gavetão escuro, esperando que sejam provisão suficiente para o voo final da interpretação.
Nota final: agradecimentos a David Soares, pela oferta do seu livro.