A história do livro enquanto objecto, e para mais associado à narrativa e à ilustração, é de uma complexidade extrema. Mesmo que abdiquemos de considerar todo e qualquer livro e até “pré-livro”, no seu sentido histórico, como um objecto passível de estudo em termos materiais - dadas as flutuações de suportes, formatos, materiais riscadores, e por aí fora - e nos concentremos numa “história” simplificada do advento do codex ocidental na Alta Idade Média, ainda assim teríamos de olhar toda uma série de experiências havidas
nesses mesmos objectos que tentavam ultrapassar a lisura das páginas
para aceder a outras dimensões. Por vezes teria a ver com a composição
de página e a disposição dos elementos textuais, ou as imagens ou os
ornamentos, supostamente secundários, ou o arranjo e disposição entre
elementos de página para página, ou entre cadernos, etc. fosse a
micrografia hebraica, o Liber figurarum de Joaquim de Fiore, as lamelas e círculos de Raimúndio Lúlio, o Hypnerotomachia poliphili, etc., muitas foram as tentativas de transformar os livros em objectos não-inertes (um livro nunca o é, na verdade, mas simplifiquemos). Nessa perspectiva, ainda que redutora, é preciso esperar pela consolidação sobretudo no século XX do livro enquanto livro de reprodução maciça, popular e industrial, para encontrar experiências que pretendem incutir-lhe, de novo, uma dimensão artesanal, de algum grau de singularidade, de diferença, de desvio das expectativas mais formatadas. No campo da banda desenhada e ilustração, mesmo no Portugal contemporâneo, temos encontrado várias abordagens, que podem encontrar vários graus - passíveis de análise - de entrosamento com o “sentido”, de materialidade objectual que pretende insuflar novos ou diferentes sentidos: garrafas de cerveja, um frasco, pequenos blocos de papel colocados num envelope, caixas com o formato de singles no interior dos quais se descobrem vários fascículos (este último sendo precisamente a descrição de um outro projecto do mesmo autor).
Desta feita, o que temos aqui é uma edição limitada (a 100) de uma caixa de fósforos em cuja face está agarrada uma pequena publicação, de algumas páginas, as quais ilustram com desenhos ocupando a página inteira o poema de Fernando Pessoa. A sua fabricação é relativamente simples, as ilustrações são coloridas, coladas em páginas de uma cartolina preta, criando alguma elegância com a caixa (os fósforos estão intactos, e podem ser usados). Os desenhos de Pinto são relativamente simplificados, também, nos quais a figura humana, a qual, fora duas mãos, aparece apenas uma vez, sob uma forma longilínea, como um boneco de borracha, apontando para uma dimensão fluida, plástica, que todos os corpos têm ou podem ter nesta transfiguração. Humberto Pinto faz distribuir cada verso ou cada dois versos por página, quebrando-os ou não no interior de uma linha desenhada ou mesmo de um balão de fala, não procurando porém que haja uma continuidade narrativa/representativa (já que o poema parte de uma só voz central). O emprego de letras mecânicas, e não “da mesma mão” que o desenho (ou assim o aparente), retira alguma da fluidez que poderia estar presente, mas ao mesmo tempo obriga-nos a ler a distribuição que o autor tenta (as fontes são diferentes se flutuam no campo de composição ou se estão no interior de um balão) e procurar pelo ritmo que traz, visual, àquele já existente no texto.
Se o poema fala de uma vida que é toda ela composta de um esperar por algo que jamais chega, mas nessa mesma espera inglória essa vida se constitui, e portanto uma maior concentração nessa mesma sensação de esperar poderá revelar alguma fonte de prazer, a constituição de um suporte feito de fósforos por acender - não sendo fisicamente possível que fossem “inda acesos”, eles encerram porém essa mesma potencialidade, essa promessa, essa esperança, mesmo que jamais seja cumprida, pois ao cumpri-la, eliminar-se-ia igualmente a sua potencialidade. O ilustradorr opta ainda pela criação de novas metáforas visuais, transformando os fósforos em barras de uma prisão, oferecendo-lhes asas, mostrando pontas de cigarros acumulando-se no chão mas como se se tratassem de suicidas ou mortos por meios violentos (quedas), ou optando pela representação literal do “dado” do verso (que terá dois sentidos distintos) de maneira a permitir-se um jogo de contagem decrescente. Todos estes jogos sublinharão sobretudo uma interpretação “negativa”, ou pelo menos melancólica, tristonha, abandonada, dos versos de Pessoa, mas também permite, mais uma vez, uma paradoxal construção “positiva”, vendo por exemplo o fósforo “inda aceso” queimando um isqueiro - o gesto de “vingança contra o fado” é afinal a resposta da vida verdadeiramente vivida, e não apenas esgotada na espera, contra a mecanicidade dos destinos - como representação da resistência possível.
Nota final: agradecimentos a Humberto Pinto, pela oferta da sua publicação. Através do blog do autor poderão conhecer outras experiências, consumos, desvios e modos de adquirir este objecto.
20 de setembro de 2013
a esperança como um fósforo inda aceso. Humberto Pinto (auto-edição)
Publicada por Pedro Moura à(s) 1:18 da tarde
Etiquetas: Territórios contíguos, Zines
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4 comentários:
Eu tenho um desses raros exemplares!
Deixo-vos aqui vídeo de lançamento do dito... de muito bom gosto, a minha opinião. Declaração de interesses: sou amigo do autor.
A música é original, do Leonel Mendes, e a gravação, ao que sei, foi ao prmeiro take, sem preparação ou ensaio.
http://www.youtube.com/watch?v=GnM1l3x52PU
Caro Gabriel,
Obrigado, o vídeo deixa os leitores verem muito mais.
Pedro
Obrigado pela sugestão deste objecto curioso e interessante. E obrigado pela sugestão do video.
http://kariguergous.blogspot.pt/2013/10/o-que-e-bom-tem-que-ser-partilhado.html
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