O grupo ACME tem caminhado
a passos largos para se vir a tornar numa referência incontornável
dos estudos de banda desenhada, dada a forma como têm apresentado os
seus trabalhos. Se os seus membros, em termos individuais, são já
ensaístas e investigadores com trabalhos bastante significativos
(como Christophe Dony, Gert Meesters, Erwin Dejasse, etc.), é a sua
coordenação conjunta que leva a que os seus gestos editoriais
ganhem uma importância maior, uma vez que apresentam os objectos de
estudo sob perspectivas variadas e múltiplas, (quase) completas. Já
havíamos falado sobre o volume dedicado à L'Association, esperamos
vir a falar de um outro projecto futuro sobre Spirou, encontramo-los
agora nesta obra mais lata, que importa ler com algum rigor (ao
contrário das passagens mais superficiais dos últimos tempos). (Mais)
Dizemo-lo “lata” pois
o objecto, desta feita, não é uma editora, personagem ou autores
específicos, mas um “território”. Este livro reúne algumas das
comunicações havidas numa conferência em 2011 dedicadas às
“figuras independentes da banda desenhada mundial”, apresentadas
em francês e inglês, o que explica o título duplo das mesmas, do
livro, e o facto de encontrarmos ensaios nessas línguas no volume (6
em francês, 4 em inglês). Para além dos investigadores-membros da
ACME, houve participações de peso (Thierry Groensteen e Charles
Hatfield à cabeça), entre outras comunicações, todas elas vogando
em torno de palavras-chave, tais como “alternativo”,
“independente”, “dissidente”, etc., em relação à produção
de banda desenhada. De facto, essas palavras são muitas vezes
empregues como taxonomias ou categorias que cartografam um
determinado trabalho, uma referência que ajuda a compreender uma
certa relação com o tecido económico, um posicionamento ideológico
e estético, etc., mas as mais das vezes são termos também fluídos,
vagos, ambivalentes demais e os quais ou levam a mal-entendidos ou a
incompreensões no seu uso. Todos os ensaios aqui reunidos
compreendem a dificuldade dessas distinções, e procuram ser exactos
quanto ao seu uso, tomando em conta contextos geográficos
específicos e outros factores.
Dever-se-á
considerar este volume um contributo excelente para uma sociologia da
literatura, tal como é aplicada a este território de criação. Uma
sociologia matizada, que nos ajuda a compreender certos objectos de
maneiras mais precisas e que convidam a análises mais cuidadas. De
facto, há uma dicotomia que parece ter surgido há já largos anos,
advindo da literatura, mas que rapidamente influenciaria outras
áreas, tais como as do cinema, da música e da banda desenhada. Num
livro como L'institution de la
littérature, de Jacques Dubois,
extremamente influente e citado por um número dos ensaístas,
encontraremos os instrumentos para introduzir esse enquadramento
geral. Essa primeira dicotomia trata-se daquela que cria os pólos,
por um lado, da produção textual,
isto é, todos aqueles factores que dizem respeito aos autores
eles-mesmos (e que usualmente são estudados por análises igualmente
textuais, como a crítica estética), por outro, todas aquelas
condições
do seu surgimento, da sua realidade, factores sócio-culturais,
económicos, políticos. Sem querer criar qualquer tipo de analogia
ou correspondência entre estes termos e os próximos, é ainda em
Dubois, na esteira de Bourdieu, que encontraremos uma segunda
dicotomia: a existência de como que duas esferas de produção
literária, as quais delimitam os bens simbólicos delas advindos.
Por um lado, teríamos a esfera mais restrita da criação literária
“cultivada”, que se pauta por princípios estéticos, e uma
esfera de produção mais massificada, a qual obedece a normas das
leis económicas. No que diz respeito à banda desenhada, a
transposição dessa espécie de dicotomia é, pensamos, clara. Ainda
hoje se pautam muitas discussões quando se transpõem esses termos
para uma realidade menos consolidada como a portuguesa. Todavia,
conviria ter em conta que mesmo a comparação directa dos termos em
França e os Estados Unidos levaria a algumas diferentes aplicações
e considerações.
Já quanto à noção
de dissensão,
apresenta-se de uma forma pouco clara no início, e levaria a pensar,
talvez, que se trataria de uma noção mais politizada. Mas é
Groensteen que nos recorda que Menu, em Plates-Bandes,
havia empregue, a propósito de editoras tais como L'Association,
Fréon, Cornélius, Amok, etc., a palavra “dissidência” “por
oposição a uma edição esclerosada” (168), dos ubíquos 48CC no
espaço francófono. Mas, como se verá, o escopo de atenção, ainda
que vogue em torno dessas editoras (ou da Fantagraphics, Drawn &
Quarterly, etc.), é mais alargado.
Vejamos cada ensaio
individualmente, não antes sem dizer que a ordem pela qual são
apresentados é muito bem pensada, criando-se uma espécie de
progressão dos instrumentos e das questões apresentadas, que se vão
complementando mutuamente.
O capítulo de Erwin
Dejasse procura demonstrar a continuidade das experiências de edição
alternativa, associando a tendência dos anos 1990 (todas aquelas
plataformas associadas à la Autarcic Comix) à Futuropolis e à Raw,
assim como a movimentos literários. Também Tanguy Habrand está
interessado na história da edição, logo, e bebendo dos
instrumentos sociológicos de um Dubois, de um Bourdieu, de um Howard
S. Becker, tenta compreender qual é o posicionamento da edição
“independente” em França, num ambiente em que se cria uma
dicotomia entre “a edição estabelecida e a edição selvagem”,
analisando formatos de edição, mas sobretudo questões legais,
económicas, estruturais, caminhos de profissionalização, apoios
institucionais e integração num tecido maior cultural.
Charles Hatfield,
por sua vez, produz um exercício muito curioso. Partindo de uma
posição antropológica embebida, ele utiliza os exemplos de quatro
comic books
que comprou num mesmo dia para explicitar a forma como ele entende o
termo “alternativo”, nos Estados Unidos, para dar conta de algo
que tem mais a ver com “conteúdos” e “atitudes” do que com
um posicionamento económico. Essas revistas eram Optic
Nerve no. 12, de que falámos, Love
& Rockets: New Stories no. 4,
Treehouse of Terror no.
17 e o jornal pood
no. 3. De um ponto de vista estritamente económico, todas elas são
“independentes”, ainda que expressem a sua relação com a
cultura popular e/ou erudita de formas drasticamente diferentes, e se
procurem integrar no “mercado” de formas também ela distintas,
levando Hatfield a afunilar o termo de alternativo
para aquelas criações que “oferecem alternativas ao consenso
acrítico [unthinking]
que a cultura de massas supostamente encoraja” (73). A análise
multidisciplinar de cada uma destas publicações é uma das provas
pelas quais Hatfield é uma referência do campo.
Alguns dos ensaios
apresentam casos de estudo muito específicos, concentrados,
procurando que a explicitação atomizada permita uma visão de campo
mais sólida. É o caso de Jean-Matthieu Méon, que discute o
trabalho individual de Dan Nadel, quer no seu próprio selo, a
PictureBox, tendo publicado através dele Frank Santoro, Brian Chippendale, C.F., entre muitos outros, inclusive autores
internacionais como Takeshi Nemoto, e livros de arte (para
simplificar), quer noutros projectos como a revista Ganzfeld
ou os dois projectos-irmãos editoriais, Art Out of Time e Art in Time. Méon descreve cada um destes
passos ou episódios na vida profissional de Nadel integrando-a no
enquadramento profissional maior, no seu contexto nacional e
económico e contrastando com outros projectos, como os da
Fantagraphics ou da Drawn & Quarterly, numa abordagem
gráfica-estética, para demonstrar a forma bem distinta de trabalhar
deste editor. Quer demonstrando como a sua recontextualização da
banda desenhada na cultura visual do século XX é muito alargada,
que o seu olhar sobre géneros e períodos da banda desenhada é
muito menos restringido que o dos seus colegas e, a lição
principal, a que ele estabelece “a necessidade de poder pensar
separadamente a independência económica e a criação alternativa”
(85), levando a que se possa estipular uma “independência
estrutural (quer dizer, o grau de dependência da estrutura em
relação às lógicas económicas) e a independência formal (o grau
de dependência estética em relação a códigos preexistentes ou de
valorização da inovação)” (90). De certa forma, são essas as
teclas principais que são assinaladas igualmente por Dony, Hatfield,
Groensteen, Meesters, etc.
Christophe Dony,
precisamente, elege o selo editorial Vertigo como exemplo de um
híbrido entre o mainstream
e o alternative
nos EUA, para mostrar como essa plataforma avança uma “poética de
demarcação e diferenciação em relação a essa dialéctica”
(pg. 104, e que Dony sempre apresenta como heurística, aproximativa,
e não uma “realidade”). Apresentando títulos que nascem dos
géneros para os questionar através de mecanismos de “auto-reflexão
[e] experimentalismo formal” (94), o investigador analisa o
trajecto da Vertigo desde o seu início, a relação com a casa-mãe
(a DC) e a forma como dialoga com os tais “pólos”: por um lado o
mainstream,
que regra geral considera a Vertigo demasiado complexa, madura,
estranha, e o círculo dos alternativos, que a trata como um todo
associado a um grau de escapismo genérico e manchado pelo
mainstream. Apesar
da boa vontade do autor, porém, a concentração em análises
textuais das capas de apenas três antologias especiais desta editora
(com First Taste,
First Offenses
e First Cuts)
e a ausência da consideração textual dos títulos propriamente
ditos (que de facto são mais devedores de fórmulas genéricas e
plenamente integradas nas categoriais expectáveis mais do que
totalmente dirigidas por vontades autorais), e apenas uma espécie de
coda final sobre o “fim” da Vertigo (isto é, a saída de Karen
Berger, a alteração da relação legal com os autores, e a
re-integração de muitas das personagens “principais” no
Universo DC post-New 52),
leva a que grande parte do encómio do artigo encontre um
significativo abalo.
O artigo de Rudi De
Vries emprega uma teoria específica a um exemplo específico. A
teoria específica é “a teoria de sistemas de selecção”, dos
estudos organizacionais. De uma forma sumária, trata-se de entender
como é que um determinado objecto (autor, obra, instituição, etc.)
é integrado, ou não, num dado ambiente, no contexto. No caso da
banda desenhada, como é que um dado autor é reconhecido e garante a
sua sobrevivência crítica e económica? O exemplo é do percurso de
Joost Swarte e a editora holandesa que ele próprio co-fundou, Oog &
Blik. O percurso de Swarte é extremamente interessante e rico, se
considerarmos que o seu papel não se deve somente à sua própria
obra de banda desenhada, rapidamente adoptada internacionalmente
(graças à projecção em França, numa primeira fase e, numa
segunda, à primeira vida da revista Raw),
mas também aos seus esforços editoriais (antologias, a editora,
lançar autores holandeses internacionalmente), expositivos (fundou o
melhor festival da Holanda, em Haarlem, a exposição em torno de
Hergé que cunharia o termo “linha clara”, etc.). Não deixa de
ser curioso que neste caso se está a falar de um autor que, tendo
fundado uma linguagem e atitudes bem diferentes daquelas correntes no
seu tempo e espaço, conquistaria depois um posicionamento que agora
consideraríamos “institucional”. Mas na verdade, bastará pensar
naquelas estéticas que quando surgiram eram vistas como
“incongruentes, originais, transgressivas, anti-comerciais” (E.
Dejasse, 37) e que, passado uma dezena de anos passaram praticamente
a uma assimilação total para termos exemplos similares. É o que
sucedeu com o estilo caligráfico de um Joann Sfar, ou uma
estilização à la Blutch, Trondheim e Blain, às melancolias
urbanas de um Clowes e Ware, etc. Dejasse, aliás, havia já
acrescentado que se trata de um fenómeno idêntico àquele que
ocorrera em relação a autores como Hergé, Caniff, Franquin e
Kirby, cada qual a seu modo visto hoje como “pilar de referência”,
mas num momento das suas carreiras como operando uma transgressão em
relação às normas anteriores.
Gert Meesters também
escolhe dois casos concretos, duas editoras de banda desenhada belgas
de expressão flamenga, a Bries e a Oogachtend, para demonstrar, de
uma forma muito cuidadosa (que envolve uma análise dos títulos, dos
formatos, dos modelos económicos, e até da biografia dos editores,
segundo aquilo que o investigador chama de “poéticas das pessoas”,
pg. 138) que mesmo que dois selos possam seguir os mesmíssimos
caminhos em termos estruturais e até de formas de escolhas
editoriais, ele seguirão “lógicas” diferentes, ora “inspiradas”
ora “do mercado” tornando-as, respectivamente, “editoras
culturalmente independentes” e “editoras independentes de
facto” [isto é, de um ponto de vista
financeiro-económico, não de motivações ideológicas] (cf.
132-137). Ao ler este artigo, pensámos que uma abordagem semelhante
no nosso país poderia surtir os seus efeitos, estudando-se, por
hipótese, casos como a Chili Com Carne, a Polvo e a Kingpin Books
(já para não falar de projectos que, entretanto, se evaporaram),
apesar da diferença de longevidade das editoras e respectivas
contextualizações históricas. Fica a nota.
Sylvain Lesage
estuda o caso da auto-edição francesa nos anos 1970-80, focando não
tanto a questão dos fanzines ou aquilo que seria entendido como
edição alternativa num sentido mais imediato, mas bem pelo
contrário todos aqueles “grandes” autores (ou pelo menos de um
sucesso comercial considerável e uma circulação significativa)
que, por uma ou outra razão, optaram por se lançarem na edição da
sua própria obra. Fala-se assim de Claire Bretécher, de Philippe
Druillet, de Jean Graton, de Fred, de Régis Franc, de René Goscinny
(ora para Astérix
ora para Iznogoud).
Trata-se portanto de uma constelação muito específica, ao ponto de
se angariar a expressão difusa de “mono-edição” (cunhada por
Jean-Yves Mollier), e a qual, no fundo, “não é uma alternativa à
edição industrial senão em aparência”, já que “a autonomia
editorial conduz ao reforço das limitações dos géneros criadas no
seio da edição industrial” (147), levando, por exemplo, à
necessidade de aumentar a produção de um dado título. Porém,
quase todas essas experiências foram sol de pouca dura, tendo todos
regressado a estruturas maiores e mais comerciais. Simplificando a
questão apresentada por Lesage, é curioso entender que o maior
problema é precisamente aquele que mais mói a publicação em
Portugal e em todo o mundo: a distribuição. A dificuldade não está
em dar o grito do Ipiranga, nem em fazer (belos ou não, inovadores
ou não) os livros propriamente ditos, mas em garantir que eles
cheguem ao público.
Essa questão
assenta que nem uma luva ao ensaio seguinte, de Benoît Berthou.
Partindo de uma dimensão usualmente arreigada da maior parte dos
estudos de banda desenhada (mas eles existem!), Berthou discorre
sobre estratégias comerciais e de marketing
específicas, estudando a Comptoir des Indépendants, que durante os
anos 1990 foi a distribuidora de quase todas as editoras francesas e
belgas francófonas alternativas (L'Association, Amok, Atrabile, La
Cinquième Couche, Ego comme x, Les Requins Marteaux, Six pieds sous
terre). A análise dessa estrutura de longa vida mas que também
chegaria a um (previsível?) fim, e o seu catálogo, a Gazette,
leva Berthou, no seio das suas considerações acutilantes, a
concluir que a comercialização da banda desenhada ganharia
substancialmente se circulasse como livros tout
court, e não subsumida a um campo
artístico específico (lojas da especialidade, no meio de
brinquedos, t-shirts, etc.). Salvas as distâncias e compreendendo a
necessidade de existirem casos de charneira ou totalmente exteriores
a esse mecanismo, esta é uma posição que partilhamos: o mais
interessante seria ver uma banda desenhada lida como “mais um
livro”, e não tanto como um campo específico de “leitura
febril” e “de fãs”. Dito isto mesmo contra este nosso próprio
espaço, “especializado”.
Thierry Groensteen,
finalmente, apresenta um texto relativamente curto e simples, já que
se tratam “apenas” de algumas notas reminiscentes do seu trabalho
de editor, em primeiro lugar na sua editora L'An2 e depois como
director na colecção integrada na Actes Sud, depois da falência e
absorção do seu projecto por aquela prestigiante casa literária.
Porém, como se espera deste incansável actor – no pleno sentido
da palavra - da banda desenhada francófona e não só, o seu curto
texto é contundente, já que, “sendo a situação da edição
móvel e evolutiva, a noção de editor alternativo obedece
necessariamente a uma historicidade” (168). É também, em muitos
aspectos, uma resposta ao livro de J.-C. Menu, Plates-Bandes,
na medida em que o fundador da
Association havia acusado muitas editoras comerciais de tomarem de
assalto muitas das estratégias criadas por essas editoras
alternativas, sobretudo a Casterman, a qual com a colecção
Écritures tentava ocupar o mesmo espaço da dita banda desenhada
“literária” que havia sido fundada pelos editores de L'ascension
du haut mal, Livret
de phamille, Persepolis,
entre tantos outros. Mas, diz Groensteen, e com ele concordamos, se
Menu tem razão até certo ponto de se irritar com essa
“recuperação”, a verdade é que a abertura de agentes é
inevitável e a “vanguarda” pelos editores menores para depois
ser seguida pelos maiores é muito expectável (veja-se o que foi
dito acima a propósito de estilos heterodoxos que depois se
tornariam “escola”). Groensteen vai mais longe, porém, para
assinalar a sua própria primazia em duas frentes. Em primeiro lugar,
a de projectos patrimoniais da banda desenhada, com volumes que não
apenas recuperavam a memória desta arte como a expandiam (com A.B.
Frost, Cliff Sterett, Miné Okubo), antes de L'Association o fazer
ela mesmo, e com um escopo francamente menos alargado (ainda que
interessantíssimo e válido). Em segundo, na dimensão ensaística,
bastando apontar para Principes des
littératures dessinées, de Harry
Morgan (2003), e Un object culturel nonidentifié, do próprio Groensteen
(2006), para conquistar um espaço incontornável, contra a colecção
ou série Éprouvette, cujo primeiro volume surgiria apenas em 2005.
Groensteen, de certa forma, está a fazer um ajuste de contas, no
sentido de “justiça”, apresentando o seu trabalho –
economicamente ruinoso, como se viria a provar – como “uma
alternativa à alternativa” (171).
A leitura deste volume,
ainda que pareça muito concentrada em termos de tempo – a dita
“cena alternativa” dos anos 1990 quer em França-Bélgica quer
nos Estados Unidos -, cria na verdade um tecido contínuo entre as
mais variadas experiências históricas, transdisciplinares e mais
integradas na cultura como um todo. Dejasse demonstra claramente como
as estruturas da edição alternativa se associam a mecanismos que
existem desde o século XIX, e como a ligação ao passado, sobretudo
através da criação da própria tradição em que os autores se
desejam integrar, é um factor determinante do seu trabalho (se bem
que Groensteen, correctamente, não deixa de associar muito desses
“olhares para o passado”, como os da L'Association, a uma
nostalgia muito própria; diferente de mais usual e massificada das
nostalgias, é certo, mas nostalgia ainda assim).
Apesar das conquistas
“estéticas”, “cultivadas”, etc., que aconteceram nas últimas
três décadas – a emergência de uma banda desenhada “literária”,
a de experiências, passe o pleonasmo, experimentais mas que
asseguraram a realidade de um campo expandido, a multiplicação de
vozes, a discutível maior circulação e exposição, etc. - em
termos comerciais nem tudo é líquido. E num país como Portugal, as
coisas são ainda mais cinzentas, senão mesmo deprimentes, já que
não nos podemos comparar a mercados como o francês, o americano, o
japonês, ou mesmo o espanhol, o brasileiro e o coreano. É ainda
Groensteen que, de uma lucidez magnífica, escreve o seguinte:
“contrariamente àquilo que um epifenómeno ilusório como o
triunfo de Persepolis pode levar a fazer acreditar, o mercado
não estava na verdade tão evoluído assim” (172). Transponha-se
isso para o caso português, em que o sucesso de vendas de títulos
tão importantes no avanço ou uma certa maturidade desta disciplina
expressiva como Maus (em um só volume), Fun Home,
Rugas, Blankets, Persepolis, Cachalote, O
homem que caminha, O gato do rabi (para ficarmos por
títulos internacionais), não é de forma alguma garantido, para
demonstrar que o conservadorismo intrínseco dos círculos da banda
desenhada não são conducentes a uma sua maior expansão crítica,
comercial e até mesmo referencial. Parte dos problemas poderão ter
a ver com canais de distribuição (escasssos), estratégias de
divulgação e publicidade (ou a sua ausência, na maioria dos
casos), integração cultural (inexistente), autonomia da edição
(por vezes diluída), recepção crítica (risível), ou por serem
vítimas de “invisibilidade” face a projectos de maior “ruído
fanático”, mas o futuro o dirá, confirmando isso ou não, assim
como novas experiências prometidas criarão inflexões, e apenas um
estudo específico e sociológico o demonstraria.
Contudo, e para concluir,
independentemente dessas continuidades e integrações, e dessas
crises perenes, fará sentido em utilizar o termo “alternativo”
(ou “dissidente”) para falar de obras, autores, e até mesmo de
plataformas editoriais que procuram um caminho distinto daqueles que
se integram desde logo em géneros pré-existentes, estruturas
narrativas expectáveis, papéis sócio-culturais padronizados? Claro
que sim. Talvez até mesmo com alguma urgência, face precisamente à
expectável “recuperação” ou até mesmo “comodificação”
de todo e qualquer bem cultural... No artigo de Habrand, cita-se um
texto assinado pelo colectivo da La Cinquième Couche, parte da
Autarcic Comix, no qual eles garantem que aqueles movimentos
editoriais não pretendiam “fazer contra-cultura, mas exprimir a
sua cultura com meios que escapam aos clichés, de se exprimir no
seio da cultura, e não nas suas margens” (54). Nem mais.
Nota final: agradecimentos
aos editores do livro, pela oferta do mesmo.
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