4 de fevereiro de 2015

Pontas Soltas, Lisboa. Ricardo Cabral (Asa)

A abertura editorial que a Asa propicia a Ricardo Cabral encontra neste volume a sua continuidade, mesmo que os projectos agregados neste volume sejam bem distintos em termos de cronologia, de peso no seu percurso, e até de nível de complexidade. Se os volumes anteriores demonstravam um autor interessado em construir uma linguagem algo desimpedida e nova que mesclava o diário de viagem a uma pesquisa visual, Pontas Soltas, Lisboa ganha de forma mais nítida a ideia de repositório de trabalhos desirmanados e sem coerência transversal. (Mais) 

Este volume reúne histórias que datam de 2005 a 2013, remontando portanto quer ao “princípio” da sua carreira, ainda enquanto aspirante de autor de bandas desenhadas mais convencionais, até à de ilustrador plenamente integrado no nosso circuito mais comercial, de maneira a que conquiste espaço num projecto de grande perfil mediático.

Em relação às primeiras histórias, é como se estivéssemos “de regresso” ao Ricardo Cabral que apresentara trabalhos na Blazt magazine e na Sketchbook, ainda com as visíveis marcas de influência – expressas textualmente na introdução – de autores japoneses como Otomo e Masamune, as quais ainda se manteriam na sua “estreia” com Evereste. De certa forma, estavam ali em semente as possibilidades de Cabral ter desenvolvido um caminho ficcional pautado pela fantasia, o feérico, a ficção científica e outras categorias genéricas mais ou menos bem-comportadas, que o colocariam na mesma senda de todo um rol de autores, japoneses mas não só, cultores do conto curto, ou de sagas episódicas.

A História, porém, não é feita de “ses”, e o autor enveredaria por outros caminhos que se revelariam de uma maior maturidade, uma constante ainda que desarmante procura por uma identidade – sem a gravitas de um Marco Mendes ou a politização de um Ricardo Baptista ou a fragmentação de um António Monteiro Ribeiro –, as mais das vezes associadas aos questionamentos proporcionados pelas viagens, o diálogo com os outros, e algum número de colaborações ou “encontros”.

Porém, mesmo as histórias que cria aqui em colaboração, como O Caso Doca 21, criado no seio de uma campanha publicitária da Samsung, numa história escrita por Francisco Chatimsky e Mafalda Quintela, e Webtrip, nascido de um convite do Festival de Lyon, são bem mais leves e “despachadas” que o usual.

Uma certa paixão pelo encontro paradoxal entre o movimento e a inércia são marcas do autor mesmo sob os dois projectos bem diferentes, permitindo-lhe fazer pequenos retratos locais (de Lisboa, precisamente, elemento comum entre todas as histórias), observações específicas, mais ou menos identificáveis, e os momentos de “quadro”, nas pausas de grandes haustos, fazendo Lisboa brilhar com uma luz gráfica que, sendo-lhe própria em certos dias límpidos, ganha no processo de criação de imagens de Cabral um outro nível de clareza.

Existem elementos muito variados, alguns curiosos e que tecem linhas internas à sua obra (será o elefante rosa de Webtrip o mesmo que habitara as páginas da história que havia feito na Polónia?), outras que parecem acenos a um certo tipo de humor actual no nosso país que deixa algo a desejar (como o polícia de Doca 21, que parece partilhar a facies com um “humorista” nacional).

Para além do fito mais óbvio deste volume – o de coleccionar num objecto comercialmente mais acessível e de maior circulação de trabalhos “soltos” -, e o do segundo mais imediato – a possibilidade de “ver” uma espécie de curva de aprendizagem da sua criação de composições, figuras humanas, expressividade humana, explorações cromáticas, capacidade de observação e detalhe – talvez um outro ponto importante seja o de entender que o caminho do autor é de facto reforçado, por tais trabalhos mais “leves”, na direcção da sua pesquisa mais central.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

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