Gostaríamos
de começar por dizer que a resolução narrativa deste livro não é,
de forma alguma, satisfatória. Em muitos aspectos até, é uma
narrativa falhada. Os elementos que a comporiam e que preparariam uma
estrutura unitária, no que diz respeito à coordenação das suas
três “linhas de intriga”, são dissolutos, e jamais se coalescem
numa forma final, e a explicação cabal dos misteriosos eventos que
testemunhamos nunca surgirá. Todavia... o problema está
precisamente nesse ponto de partida. É que Celeste não é
totalmente uma narrativa. (Mais)
Em
termos de trama, o novo livro de Culbard, que desta feita se
responsabiliza globalmente pela “história” e a sua forma visual,
ao contrário da série The New Deadwardians, com D. Abnett,
ou as adaptações de Lovecraft e outros autores, segue três
personagens. Um jovem japonês (que apenas subtil e extratextualmente
saberemos que se chama Yoshi e é um mangaka)
que se decide suicidar na floresta de Aokigahara, perto do monte Fuji
(a famosa “floresta dos suicidas”), uma jovem mulher albina
londrina que se apaixona, em coup de foudre,
por uma outra rapariga que encontra no metro, e um homem chamado Ray,
que se encontra num engarrafamento em Los Angeles quando recebe um
telefonema da polícia com um qualquer recado sobre a mulher.
Mas
o telefonema a Ray é subitamente interrompido, e quando Ray se dá
conta, em seu torno todas as pessoas desapareceram. A estrada está
cheia de viaturas, mas não uma única alma. Com a excepção de
outro homem, que encontra agredido, ferido, atado e fechado no
porta-bagagens de outro automóvel. O mesmo sucede às duas raparigas
no metro, como se fosse o seu olhar cruzado a extinguir os traços
dos outros seres humanos num repente. E o suicídio de Yoshi falha,
fazendo-o tombar e, ao atravessar a floresta, a ir-se cruzando com
cada vez mais criaturas fantásticas tiradas do folclore japonês, os
yokai. Esse aparente
evento global coloca estas personagens nos espaços familiares que
sempre habitaram, mas com esse efeito de imensa estranheza: as
estradas de Los Angeles e as ruas de Londres totalmente desprovidas
de presença humana (e também animal), a floresta de Aokigahara
prenha de formas fantásticas que incessantemente fogem de um
qualquer perigo inominável.
A
estrutura do livro convida precisamente a uma leitura rápida, mas
complexa, onde o suspense
está presente como um moto contínuo. Ou mais do que isso, como
veremos. As histórias jamais se cruzam. Não há nenhum ponto de
contacto entre estas personagens. Diegeticamente falando, pois em
termos de composição visual, existem momentos em que as três
linhas convivem na superfície das páginas, sobretudo no início e
no fim das acções, procurando criar “ecos” simbólicos entre
elas. Ou uma frase de uma personagem é dita e continuada sob a forma
de legenda na “linha” visual da história de outra. Mas em termos
de encontro das personagens, isso jamais sucede.
Uma
cena inicial faz-nos atravessar o sistema solar até “aterrarmos”
no sopé do Fuji, acompanhando uma pétala rosa, que cai ao pé de
Yoshi. Depois veremos outras pétalas, caindo na mesa de cabeceira da
mulher albina, e na boca de Ray, que está a dormir no carro, num
deserto em L.A. No “fim” das histórias, veremos as pétalas
evolando-se novamente em direcção ao espaço sideral. O
acompanhamento de cada história, então, é feito de forma
intermitente, criando um ritmo incessante de (três) acções
paralelas. Estas são quase sempre, por princípio estrutural,
apresentadas em cada duas páginas em spread,
em que o autor experimenta todas as soluções, de vinhetas
horizontais a verticais, a outras combinações. Nenhum dos segmentos
ultrapassa o máximo das 6 páginas seguidas, mas a esmagadora
maioria delas fica-se pelas 2, o que leva a “saltos” entre as
linha narrativas bem rápidos, e incutindo uma certa urgência e
velocidade à medida que lemos o livro. Dessa forma, portanto, é
como se cada pequeno cliffhanger
(em cada segmento) fosse um som percutido na malha inteira do livro,
aumentando essa ideia de suspense.
Do
ponto de vista da produção, é muito possível que Culbard tenha
construído este seu projecto a partir de fragmentos textuais que
desejaria empregar, fragmentos os quais podem ser identificados como
pertencentes a vários géneros familiares. Afinal de contas,
encontraremos aqui uma dimensão mágica e fantástica algo próxima
do que experimentara nas suas adaptações de Lovecraft. Haja a
presença de “monstros” ou não (no caso da “linha” de Yoshi
há mesmo algumas criaturas que estão próximas da indecibilidade
biológica típica de Lovecraft), o afecto do horror está presente
em muitos dos breves episódios das personagens. Mas no caso de Ray
há ainda elementos típicos da novela policial ou do thriller,
com identidades erróneas, súbitas revelações, e mistérios. E no
das duas mulheres jovens, há sem dúvida uma subtil homenagem a todo
um historial de romances de amor urbanos, em que as personagens, ao
se apaixonarem, atravessam os espaços totalmente “alheias” do
resto do mundo, como se este desaparecesse...
Em
termos visuais, não há muito que queiramos acrescentar face ao que
foi dito já no livro anterior. Talvez importe dizer que o desenho
das figuras se encontra aqui ainda mais simplificado, os objectos e
espaços reduzidos a breves linhas, como se uma estenografia se
tratasse (“isto é um carro”, “esta é uma cozinha”, etc.),
recordando algumas das formas de “apagamento” de pormenores que
um Steve Yeowell também cumpre nalguns dos seus trabalhos. Há por
vezes posições perras, ou expressões menos claras, mas tudo é
feito no interior de uma economia, digamos assim, que deseja uma
maior celeridade na combinação das personagens, e no avanço dos
acontecimentos.
Na
ânsia da necessidade que os seres humanos têm em reduzir tudo
aquilo com que se confrontam em categorias familiares, padrões
naturalizados – em dois momentos, alguns personagens falam do(s)
fenómeno(s) conhecido(s) por apofenia/pareidolia – os leitores de
Celeste
poderão empregar alguns dos elementos propostos por Culbard para
encontrarem “uma solução”. Afinal de contas, a escolha em
pautar as três histórias com um movimento de aproximação e
afastamento da Terra pelo espaço, as continuas cenas extra-histórias
que remetem ao espaço, à Lua (recordando precisamente a Lua das
Dreamlands, habitada por Nyarlathotep), e a presença das pétalas
poderia ajudar-nos a interpretar esta história como uma ficção
científica em que as pétalas seriam criaturas capazes de poderes
extraordinários, como os de fazer desaparecer as pessoas e criar
situações fantásticas junto às personagens – há momentos em
que o “universo” da história aumenta, revelando outras
personagens isoladas algures. Mas se o ponto de partida parece ser
uma premissa fantástica relativamente plausível (e que informa
tanta ficção dos nossos dias, com vilas isoladas por redomas,
mortos que regressam à vida, zombies que isolam comunidades, eventos
que dão capacidades extraordinárias a algumas pessoas,
sobreviventes de um acidente de avião numa ilha, etc.), Culbard vai
aumentando o grau do fantástico, misturando então, aos géneros já
indicados, elementos que nascem no psicadélico, surreal, onírico,
etc., que se torna particularmente relevante à luz das maneiras como
cada uma das três histórias é “resolvida”, isto é, como é
que cada uma das personagens “regressa” às suas vidas usuais
(sobre as quais nada diremos). De uma forma simplista, no fim o
leitor colocar-se-á a questão, “aconteceu mesmo ou foi um sonho
ou ilusão”?
Se
se aceitar essa ideia, porém, começaria uma nova bateria de
questões. Por qual razão essa suposta “espécie extraterrestre”
faria esta experiência? Tratar-se-ia de uma forma de observar os
limite do comportamento humano? Compreender em que medida é que as
pessoas, desprovidas das alianças sociais a que se vêem obrigadas
no dia a dia, resolveriam conflitos, aproximações e descobertas do
outro, situações extremas, do ódio ao amor, dos medos mais
profundos à absoluta perplexidade? Pois esses são na verdade os
“temas” principais de Celeste,
para além dos elementos objectivos que ocorrem no livro. Estas três
intrigas narrativas, sobre a relação amorosa nascente de duas
mulheres, de um estranho e violento antagonismo entre dois homens e o
mergulho de um jovem homem num mundo de fantasia servem sobretudo
para explorar os limites dos afectos (sobretudo mais eficaz na
história de Ray e da mulher albina, uma vez que existem discussões
verbais mais complexas, afectando as emoções e a experiência da
memória, ao passo que a de Yoshi centra-se mais em sequências de
acção). No cômputo final, então, Celeste
é menos uma “narrativa”, do que uma espécie de discurso em
“corrente de consciência”, mas em vez de termos uma única
consciência humana, seria distribuída por três personagens num
enquadramento exterior, estranho e fluido.
Ainda
que não estejamos no território experimental e ambíguo, poético,
de um Dino Buzzati, de uma Aidan Koch, Warren Craghead III, ou
outros, há em Celeste
um peso suficientemente impressionista que o convida a uma leitura
sob a óptica da “poesia em banda desenhada”.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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