Publicada
originalmente em 1977 de forma episódica numa revista periódica,
esta estranha saga onírica é o primeiro trabalho de grande fôlego
do artista italiano Andrea Pazienza, e aquele que o colocaria no mapa
da sua época, ainda que de uma brevíssima vida. Desconhecemos se
esta é a melhor introdução ao autor. Poder-se-iam escolher,
talvez, títulos mais normalizados (algo difícil de cumprir em
Pazienza), ora aqueles com a personagem recorrente Zanardi, ora os
que brincam com estruturas convencionais, como possivelmente o também
semi-autobiográfico Pompeo ou a curta humorística “Perchè
Pippo sembra uno sballato”. Le straordinarie avventure di
Penthotal é antes uma alucinação, um percurso automático numa
mente aberta, o que em nada aponta a existência de cartografias
nítidas e indubitáveis. (Mais)
Já
tendo sido alvo de várias reedições, ora em colectâneas do seu
trabalho ora mesmo individualmente, esta nova edição pela Fandango
(acompanhando outras pela Einaudi ou Coconino Press) pretende
reformatar o mesmo sob os auspícios da nova circulação cultural,
“literária”, da banda desenhada que tem sido permitida nos
últimos anos pelo advento daqueles objectos alvos já de uma
discussão anterior. Desta maneira, seja como for, criam-se as
condições para uma sua redescoberta, releitura, ou chegarmos a ela
em primeira mão.
Não
é possível de todo fazer uma sinopse deste livro. Como foi dito
acima, poder-se-iam angariar elementos de autobiografia, ou
autoficção, ou de escrita automática, ou de desenhos soltos, e
nennhum deles seria suficiente nem claro para compreender a
experiência de ler Pentothal. Apenas podemos ir procurando
aproximarmo-nos do livro, cujo cerne se desloca sempre a cada passo
dos leitores. Um crítico italiano usa mesmo a palavra “convulsão”
para a forma como as páginas – as imagens, as palavras, as
relações entre estas, os episódios diegéticos, as personagens, as
citações, as formas de composição - se sucedem. É muito exacta.
Não há propriamente uma fluidez ou acalmia que pretendesse uma
poesia de sossego, um ritmo apaziguador de elementos que depois,
tranquilo, o leitor faria coalescer num sentido coeso. É antes um
ataque febril de elementos heteróclitos que nos vão caindo em cima
e, ainda mal estamos a tentar compreender como encaixá-lo no tecido
até ali apresentado que já outra peça nova, tão enigmática como
as demais, se nos surge. Não há tempo para respirar, para ponderar.
Pentothal não nos convida à contemplação mas a uma
catadupa de sensações.
Essa
sequência caótica é corroborada pelo uso altamente variado de
técnicas de desenho a todos os níveis. Em termos de marcas
encontraremos desde a linha mais fechada e fluida, de figuras fluidas
e plásticas à la Moebius, contemporâneo, até ao mais obcecado
trabalho de tramas, a tracejado, ponteado ou redes mais orgânicas,
como se se aproximasse dos autores conterrâneos mais clássicos e
também mais ou menos seus contemporâneos, de Toppi a Micheluzzi. Em
termos de material há tinta-da-china aplicada a pincel, caneta, ou
lápis, ou aguadas. As mais das vezes, e numa mesma página, poderão
surgir todas elas, misturadas ou distribuídas em personagens
diferentes, ou planos distintos da acção. Nesse sentido, Pazienza
será um exemplo maior daquilo que, mais tarde, Thierry Smolderen e
Thierry Groensteen viriam, cada qual a seu modo, a chamar de
“heterogenia gráfica”, uma decisão em não conter a criação
de imagens numa mesma família ou coesão de marcas, mas explorar a
sua variedade possível numa mesma unidade visual. Em termos de
figuração, encontraremos na esmagadora maioria da prestação
formas mais naturalistas, mas não é raro encontrar opções mais
caricaturadas, ou abonecadas, ou simplesmente expressando-se através
de modos mais drásticos, ora minimais ora maximais. De resto, estas
flutuações ou potências seriam a assinatura de Pazienza durante a
sua curta vida mas alargada obra.
Quanto
aos episódios internos, também não é fácil propor um percurso
coeso. Se começamos enquadrados num contexto realista, de um jovem
artista em Bolonha envolvido na vida universitária, anti-fascista do
seu tempo, e que aceita os breves sonhos que testemunhamos,
rapidamente ele e outros companheiros que vão surgindo são lançados
em territórios mais hostis: desde o policial à aventura na selva
canibal, ao cruzamento com personagens à la Disney mas horríficas,
por momentos de intensa violência ou de entrega cósmica ao
universo. Talvez se possa mesmo pensar que Pazienza explora todos os
territórios plásticos passíveis de serem tratados pela banda
desenhada como elementos tangíveis e recombináveis para expressar a
ideia a qual ele quererá fazer passar nas mentes confusas e
surpreendidas do leitor.
A
própria língua, se não estamos em erro, não segue as mais férreas
regras gramaticais, e há todo um polvilhamento de expressões
idiomáticas, calão e provavelmente gritos inventados, no meio da
raiva nutrida por aquela época de revolução política, os anni
di piombo, mas também o mais singular círculo cultural de
Pazienza, marcada pelo niilismo jovem e sonhos regados de heroína. É
claro que nada nos permite fazer associações directas entre a
biografia de um autor e a sua obra, mas o protagonista partilha o seu
rosto com o de Pazienza, tal qual o de Zil Zelub partilhara o seu com
o do autor Buzzelli, apontando também a aqui a uma espécie de
autoficção desviada para um campo de pesadelo formal, mas que serve
para expressar um certo desalento, ou mesmo terror, social e
existencial. Pentothal é uma obra que tanto pode ser lida nos
seus contornos políticos, da associação histórica que faz com os
movimentos estudantis de esquerda da sua época, como com uma
exploração poética extremamente singular, mas também os sonhos
permitidos por outras vias.
O
penthotal, ou tiopentato de sódio, como se sabe, é um anestésico.
E mesmo que saiba que o “soro da verdade” tem mais de mito
televisivo do que de, bom, verdade científica, é algo difícil de
lavar esse sentido nesta alucinação épica. Falámos há pouco, em
referência breve, de Moebius. Este autor francês é elogiado pela
sua saga Garagem hermética, que começara nas páginas da
Métal Hurlant um pouco ao acaso, como exercício de escrita
automática, ou de sequência fantasma. Todavia, se Giraud
rapidamente subsumiria as primeiras páginas mais livres e alucinadas
a uma estrutura de clara coerência narrativa, e unidade de
personagens, espaços e acções, o mesmo não se passa jamais com
Pentothal. A presença da
palavra “aventuras” não é mais do que uma ilusão, a menos que
se a aceite como sendo totalmente desregrada das unidades
aristotélicas ou, porventura, as subsumamos nós a uma qualquer
centralidade da mente do protagonista, quiçá esfumada pelas asas da
pedrada que está a experienciar. Afinal, vemo-lo a dormir e sonhar,
a acordar do sonho e a voltar a deitar-se, até chegarmos a um ponto
em não conseguirmos discernir se estaremos num momento de vigília
ou numa travessia onírica ou, como dissemos, alimentada por
narcóticos. O próprio Pazienza falou de “sprazzo”, “flash”.
Um “romance gráfico” composto por “flashes”? Nada impediria
a que surgissem imagens e personagens recorrentes, e estruturas
temporais como flashbacks,
elipses, etc.
Originalmente
esta história havia sido publicada em episódios na revista
Alter Alter,
uma das linhas de fuga da Linus.
Encontrá-la-íamos lado a lado a autores italianos ou internacionais
mais convencionais, como Mario Siniscalchi, Marco Scalia, Sydney
Jordan, mas também cultores do que, na época, eram linguagens
gráficas inovadoras e arriscadas como as duplas Muñoz & Sampaio
e Forest & Gillon, Moebius, Filippo Scozzari, Luc e François
Schuiten, Guido Crepax, e ainda nomes famosos de linhas menos
arriscadas mas que eram garante de sucesso crítico por outras
razões, como Margerin, Corben, Nicollet, Palacios, Giorgio
Cavazzano, etc. Todavia, mesmo na economia diversificada e mesmo
madura dessas presenças, a obra de Pazienza não deixava de ser uma
estranha, acategórica, talvez mesmo incómoda questão. Não havia
dúvidas quanto à sua capacidade de desenho, mas a escrita levantava
questões de sentido, significado, direcção, ontologia mesmo.
Apesar
de ter sido largamente traduzido para várias línguas europeias,
sendo publicado num circuito relativamente independente, como na El
Vibora, por exemplo, os leitores de expressão portuguesa tê-lo-ão
descoberto porventura na brasileira Animal,
ao lado de outros seus companheiros de juventude da Cannibale
e depois Frigidaire,
e que se tornariam mais famosos, como Liberatore ou Mattioli, talvez
por trabalharem em territórios mais rapidamente enquadráveis em
categorias existentes. Mas também Scozzari e Tamburini, que convirá
redescobrir tanto quanto Pazienza, ainda que este viva uma
intensidade desigual, inoportuna, intempestiva, e por isso
imperativa.
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