Nota inicial: conforme indicado quando falámos brevemente deste título, e recuperando uma experiência anterior, a resenha crítica deste volume académico fica a cargo de outro jovem investigador, Hugo Almeida, a quem passamos a palavra, e a quem agradecemos a atenção, naturalmente.
Esta
é uma colecção dedicada aos estudos francófonos de banda
desenhada, com o propósito de os traduzir para inglês e
providenciar alguma contextualização. É um projecto que se
justifica pelo inglês ser usado como língua franca no meio
académico, mas também pelas décadas de avanço que a esfera
franco-belga teve em matéria de estudos de banda desenhada. Nesse
sentido, é uma publicação necessária, que se sucede a outras,
como a tradução para inglês de obras de Thierry Groensteen, The
System of Comics (co-traduzida por Bart Beaty, um dos editores
desta antologia) e Comics and Narration (esta traduzida por
Ann Miller, também editora deste volume), ou The Origins of
Comics de Thierry Smolderen (também co-traduzido por Bart
Beaty). The French Comics Studies Reader difere destas três
publicações no sentido em que fornece uma perspectiva mais alargada
sobre o trabalho de autores francófonos. Para este volume foram
seleccionados artigos académicos completos, bem como excertos de
livros dos autores. É um esforço que gostaríamos de ver também em
relação à investigação escrita em japonês sobre banda
desenhada, na sequência de outros esforços, como um número recente
do International Journal of Comic Art dedicado à banda
desenhada asiática contemporânea. (Mais)
Projectos
desta natureza são a melhor maneira de evitar que se re-invente a
roda, ou seja, que se gaste tempo e recursos a redescobrirem-se
conclusões. A constituição de uma base bibliográfica comum também
permite que os resultados e discussões de cada lado possam ser
avaliados e desenvolvidos por toda a comunidade académica. Este
livro é um passo significativo nesse sentido, ao traduzir não só
textos contemporâneos, mas também uma série de análises iniciais
que podem servir de ponto de partida a muitas discussões que se
repetem na literatura de ambos os lados.
Tal
como é mencionado na introdução do livro, a literatura francófona
e anglófona constituem duas esferas de influência, que no caso dos
estudos de banda desenhada resultaram em práticas relativamente
distintas. Apesar de haver sempre sobreposição nos temas estudados,
o estudos de banda desenhada em França afirmaram-se principalmente
com a investigação de questões ontológicas e formais (os
mecanismos narratológicos, estéticos e convenções semânticas
várias da banda desenhada), ao passo que na literatura anglófona, o
desenvolvimento inicial e legitimação dos comics studies
fez-se através de ferramentas e objectivos relacionados com os
estudos culturais. Estas tendências não são de todo determinantes
e, por exemplo, do lado anglófono tem-se observado um interesse
crescente nos mecanismos da banda desenhada, que beneficiará dos
textos aqui presentes.
Sendo
que os textos seleccionados fazem parte de uma bibliografia extensa
que inclui os anos 60, a sua qualidade geral é elevada. Os textos
estão organizados em quatro secções temáticas: a origem da banda
desenhada e suas definições; estudo das suas formalidades; crítica
de banda desenhada; e comentários à indústria da banda desenhada
franco-belga. A organização dos textos dentro de cada secção
sugere um diálogo entre os vários autores e pontos de vista,
tentando reproduzir (imaginamos) a evolução que cada discussão
teve ao longo do tempo. Neste sentido, tem uma perspectiva histórica
que não se reflecte necessariamente numa organização cronológica
dos textos.
A
primeira secção do livro, dedicada às origens e definições,
inclui textos produzidos desde os anos 60 até à nossa década.
Destaca-se um texto de Gérard Blanchard de 1969, em que a
argumentação é, por vezes, pouco clara, mas que sugere uma série
de relações e pontos de partida, inaugurando uma discussão sobre a
relação da banda desenhada com outros dispositivos visuais. A sua
argumentação inicial sugere que a nossa capacidade de inferir
narrativas a partir de imagens é reminiscente das necessidades dos
nossos antepassados como caçadores-recolectores, que teriam que
seguir pistas visuais para descobrir o percurso ou posição de
potenciais presas. Este cenário seria explorado mais tarde por Neil
Cohn. Com acesso a desenvolvimentos conceptuais e metodológicos
posteriores, Cohn propõe que na base da banda desenhada não estão
apenas códigos estabelecidos por convenção (como muitos artistas e
investigadores sugeriram entretanto), mas também dispositivos
cognitivos fundamentais que regem a nossa compreensão narrativa de
sequências de imagens.
A
partir desta introdução, Blanchard situa a prática contemporânea
de banda desenhada num continuum histórico de actividades
humanas diversas, apontando para um cruzamento constante entre
imagens e comunicação verbal (escrita e oral). A sucessão
de formas narrativas neste continuum tem dois problemas: por
um lado, a existência de uma genealogia é sugerida ao longo do
texto, mas nunca fundamentada abertamente; por outro, o autor não
distingue o desenvolvimento de formas que integram texto e imagem, do
desenvolvimento de narrativas visuais (a distinção é feita mais
tarde num texto de Groensteen). Apesar de não estar explicitado, as
observações deste texto relacionam-se com uma discussão mais geral
sobre essencialismo nas artes. Ao apontar a ocorrência repetida (e
portanto “natural”) de cruzamentos entre modos de comunicação,
o autor enumera uma série de exemplos que contradizem a tendência
de regimentar e separar texto e imagem como se fossem modos
completamente imiscíveis.
Os
textos mais conseguidos desta secção são, a nosso ver, os da
autoria de Thierry Groensteen e Thierry Smolderen. Os dois textos com
que Groensteen contribui são abrangentes no seu tratamento da
questão ontológica na banda desenhada. O primeiro texto refuta
definições de banda desenhada taxativas ou prescritivas, e que
invariavelmente remetem a banda desenhada para a categoria do
sub-género literário ou da paraliteratura. No segundo texto,
Groensteen percorre cuidadosamente vários ângulos da questão
ontológica. Estes incluem a progressão histórica de definições e
nomenclaturas para as “imagens em sequência” (histórias aos
quadradinhos, comics, romances gráficos, etc.), mas também
os desafios levantados pela descentralização da sua produção, o
impacto do digital na sua difusão, e a exploração de novos
territórios materiais e conceptuais na banda desenhada, que
contestam necessariamente definições absolutas.
O
texto de Smolderen propõe re-situar o nosso entendimento de banda
desenhada na sua origem como meio “híbrido,” aqui entendido num
sentido lato não só como a integração de imagem e texto, mas
também como meio no qual se misturam e desenvolvem estratégias
gráficas de várias proveniências. As novas linhas de pesquisa que
sugere poderão ter repercussões significativas não só do ponto de
vista teórico, mas também na prática de banda desenhada, práticas
que encorajam a exploração de formas não convencionais de
representação.
A segunda secção, dedicada aos mecanismos da banda desenhada, segue
directamente das discussões sobre a sua definição. Aqui, podemos
ainda identificar a procura de uma “essência” da banda
desenhada, em particular a partir de comparações com a pintura. É
o caso do texto de Pierre Sterckx, cuja argumentação se sustenta em
observações relativamente superficiais sobre dinamismo e movimento,
e do texto de Jacques Samson que, ao defender a inclusão da banda
desenhada no cânone das artes visuais, acaba por sugerir também uma
ruptura entre a banda desenhada “moderna” e a tradicional, o que
poderia resultar numa espécie de branqueamento histórico.
Jan
Baetens e Pascal Lefèvre contribuem com dois textos sucintos sobre
as dimensões do texto e paratexto (elementos periféricos à
história presentes na capa, contracapa, lombada, etc.) na banda
desenhada, que informariam aprofundamentos posteriores sobre como
texto e paratexto influenciam leituras, ao dirigir os leitores para
interpretações e expectativas específicas.
Mais
uma vez, Groensteen contribui com um dos textos mais significativos
desta secção, em que desconstrói a noção de sequência como
veículo de narrativas e enumera uma série de processos
não-narrativos que podem ocupar uma colecção ou série de imagens,
sem que estas se tornem “narrativas”. Talvez mais importante,
parte destes processos para questionar a narratividade intrínseca da
banda desenhada, assumida em muitas análises e definições. Sem se
comprometer, deixa em aberto a possível qualidade contingente e
não-essencial da narrativa na banda desenhada.
Incluída
nesta secção está ainda um texto seminal de 1976 de Pierre
Fresnault-Deruelle, publicado no agora mítico número 24 da
Communications, a famosa revista de estudos semióticos das
décadas de 1960-70, dedicado em exclusivo à banda desenhada. Este
texto desenvolve algumas ideias gerais sobre forma e composição,
das quais podemos ver ecos em autores posteriores como Groensteen e
Benoît Peeters. Em particular, é referida uma ideia repetida por
muitos artistas e textos posteriores (mesmo em autores anglófonos
como Charles Hatfield), sobre a dupla função da página como
unidade compositiva que procura coerência interna, e como veículo
de uma sequência de unidades narrativas descontínuas.
A
terceira secção é dedicada à crítica e análise de obras
específicas. Destacamos um excerto de Bruno Lecigne e Jean-Pierre
Tamine que correlaciona o uso do preto e branco por Moebius e Tardi
com os movimentos hiper- e neo-realistas na pintura. Esta comparação
serve de pretexto para discutir o tratamento que estes autores fazem
de preocupações transversais na cultura, em particular questões
típicas do pós-modernismo como a referencialidade e a simulação.
Nesta
secção, ainda estão presentes três interpretações diferentes de
As Jóias de Castafiore de Hergé, uma das obras mais
estudadas por autores francófonos. De Michel Serres é traduzido um
ensaio cuja forma recapitula o ruído semiótico e a proliferação
de informação (verbal, visual, sonora) que o autor identifica como
temas da obra. Já Benoît Peeters e Serge Tisseron discutem, a
partir de pontos de vista opostos, o significado do elemento feminino
na obra de Hergé. De Harry Morgan e Manuel Hirtz, é traduzido um
excerto de The Apocalypses of Jack Kirby, onde relacionam
leitmotifs recorrentes na obra do artista com o pensamento
gnóstico.
A
quarta secção, dedicada a comentários à indústria de banda
desenhada franco-belga, é a mais curta da antologia e talvez a maior
surpresa de todo o volume. Destacamos um texto historicamente
importante de Luc Boltanski de 1975, que correlaciona as alterações
sociais que se sucedem no pós-Segunda Guerra com as transformações
observadas na indústria da banda desenhada e suas audiências a
partir dos anos 70. É um texto incisivo, que fornece uma série de
pistas para uma discussão mais alargada sobre a relação da banda
desenhada com normas culturais, e em particular o seu papel como
agente sociopolítico, desenvolvido noutras tangentes por autores
como Éric Maigret (2012), ou Michael Demson e
Heather Brown (2011). Ainda assim, parece-nos que o autor é
por vezes demasiado determinista na leitura que faz das
condicionantes sociais à volta de uma prática artística.
Destoando
de todo o livro, o texto de Barthélémy Schwartz presente nesta
secção é um comentário moralista e incoerente às relações de
poder entre editoras e autores.
Os
textos escolhidos para este volume retratam várias perspectivas que
se foram construindo ao longo de mais de quarenta anos no seio das
publicações francófonas. Por esse motivo, nem todos os textos
reflectem posições actuais na área. Essa é uma consequência
necessária para uma antologia que tenta reproduzir (ou sumarizar) a
evolução dos estudos francófonos de banda desenhada para um novo
público. Achamos que este modelo de curadoria de textos é
preferível a outro mais direccionado sobre perspectivas específicas,
pelo menos num gesto inicial como este. Muitos destes textos têm uma
importância estrutural para todo o corpo de conhecimento dos estudos
de banda desenhada. A sua divulgação para lá da esfera francófona
é, por isso, um passo importante na consolidação desta área de
investigação. Esperemos que gestos semelhantes, ou com direcções
mais específicas, se repitam.
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