Quando falámos de Sous le soleil du minuit, aventámos a toda essa prática
contemporânea no interior do contexto específico da banda desenhada europeia,
pautada sobretudo pela criação de “autor”, ou pelo menos de “personagens de um
autor”), a que a crítica Jessie Bi havia chamado de profaçon, que a autora, especularmente, descreve recorrendo a outro
conceito por ela assinado, a de uma plagionomia
legítima. Quer dizer, de uma forma
simples, a maneira como o “mercado”, de forma legítima, autoriza que uma obra, um
estilo, uma voz, procure ser continuada por outros autores que não o original. Para
nos atermos à história da arte ocidental, uma vez que outras estruturas
civilizacionais e culturais poderão seguir outros passos bem distintos, e até
ao longo da história práticas houve que sustentavam a “imitação do mestre”,
aquilo que seria considerado um mero plágio, imitação, derivação, pálida
sombra, etc. de um ponto originário na literatura, cinema, ou artes visuais, na
banda desenhada é vista como uma “nova vida” para as “queridas personagens”. Nem
sequer estamos a falar de pastiches, que são exercícios legítimos e sempre de
uma distanciação crítica em relação ao original, provocando sempre uma noção de
comparação automática. Mas de uma verdadeira “continuidade”, em que, apesar de
tudo, se particulariza a “biografia ficcional” das personagens como se fosse
verdadeira. (Mais)
A tese central de J. Bi reforça o papel individualista e
indivisível do acto criativo do autor, colocando de lado outras possibilidades,
mas que certos leitores abusam desde logo em jogos do que Umberto Eco chamaria
de sobreinterpretação. Para Eco, há uma tensão tripartida entre as
intenções do autor, do leitor e da obra. A primeira seria, em primeiro lugar
mas em última instância, insondável, mesmo que haja acesso ao autor através do
contacto directo (a entrevista, o diário, as notas, etc.) e, em segundo lugar,
irrelevante, uma vez que o autor não pode circunscrever as potencialidades
interpretativas da sua obra pelos leitores empíricos contemporâneos e
vindouros. Todavia, a intenção do leitor não poderá ser vista tampouco como o Graal
da interpretação, o que levaria não apenas a uma atomização da possibilidade da
argumentação em torno das múltiplas (infinitas, potencialmente) interpretações,
como ao mesmo tempo diluiria a própria responsabilidade do leitor em ater-se
aos parâmetros factuais e materiais do próprio texto, levando assim a eventuais
distorções impossíveis (o exemplo de Eco é ler A imitação de Cristo como se fosse um escrito de Céline). Resta,
portanto, a “intenção da obra”, entendo esta, ou o “texto” como “um dispositivo
concebido para produzir o seu próprio leitor modelo” (o qual não coincide nem
com um leitor empírico concreto nem com uma única e unívoca interpretação, mas
com uma interpretação que circularmente se apoia a si mesmo com e pelos
elementos presentes no texto).
Portanto, esta noção, corroborada por Bi, de que uma obra
pertenceria tão-somente ao seu autor original é, em si mesma, e desde logo, uma
construção ideológica que mereceria a sua própria discussão, vis-à-vis “a morte
do autor” e a sua “recuperação” conforme as lições de Blanchot em Michel Foucault tel que je l’imagine: “O
sujeito não desaparece. É a sua unidade, demasiado determinada, que a tal se
submete, pois aquilo que suscita o nosso interesse e pesquisa é o seu
desaparecimento (a saber, esta nova forma de ser que é o desaparecimento), ou
melhor ainda, a sua dispersão que não o aniquila, mas que nos oferece, em
relação a ele, uma pluralidade de posições e uma descontinuidade de funções”.
A máquina editorial Dargaud continuará a garantir a publicação
de um título por ano da série com as personagens originalmente criadas por
Edgar P. Jacobs, e cuja “sobrevida” tem sido assegurada por várias equipas de
há vinte anos a esta parte, de certa forma como o modelo central e canónico de Spirou, se bem que esta personagem,
recordemo-nos, é uma marca registada da sua própria editora, como é prática do mainstream norte-americano. No caso das
personagens britânicas do autor belga, estamos a falar de um contrato entre os
herdeiros e a máquina editorial que produz essa possibilidade. Haveria muito a
debater, equipa e equipa, livro a livro, sobre as diferenças e semelhanças
entre Jacobs e os seus “plagiadores autorizados”, mas remetamos novamente àquela
“pluralidade de posições” e “descontinuidade de funções” apontada por Blanchot
para prever que, em parte, muita da atomização temática, de tratamento e de
diálogo com os tempos contemporâneos, estavam desde logo previstas na própria
lavra do autor original.
Confessemos, desde logo e como justificativa, que não nos
subtraíamos aos leitores mergulhados numa visão nostálgica, regressiva, quase
de objecto transicional, em relação a Blake
& Mortimer. Esse fantasma existe, não pode ser negado e exerce um
fascínio que suspende quase sempre as defesas de uma leitura mais crítica que
deveria levar ao seu corolário principal: a não-leitura. Todavia, apesar dessa
moldura de consumo consciente, de mergulho voluntário numa “comodidade” que
fala a um passado que nunca existiu (um espaço de leitura infantil em que
Jacobs não morreria e as suas personagens continuariam a mover-se), o que
importa acima de tudo é não permitir que essa nostalgia tolde a compreensão de
que não apenas estes novos produtos não apenas
contribuem pouco para uma nova pesquisa da linguagem da banda desenhada,
como confirmam que a própria criação de
Jacobs se encontra ancorada de tal forma no seu contexto de produção que corre
o rico da irrelevância junto a um novo público.
O
testamento de William S. reúne mais uma vez a equipa de Sente e de
Juillard, os quais, a um só tempo, asseguram os elementos-chave da série
original, como também providenciam ligações directas aos álbuns pós-Jacobs
(deles e alheios), conforme o programa da tal “sobrevida ficcional” das
personagens. Nesse sentido, estamos longe de (alguns) dos projectos que o contexto
da banda desenhada comercial franco-belga tem produzido contemporaneamente com
os “Personagens x de” (que tem
ocorrido com Spirou, Mickey Mouse, Lucky Luke e outros), providenciando uma
liberdade material e temática (com balizas, certamente) com apenas uma matéria
mínima comum de partida, enveredando antes por um assegurar a “máquina
normativa”. Todavia, e pondo de lado a ideia mais básica de “não serem Jacobs”,
é provavelmente nas suas próprias fragilidades que o livro aponta algumas possibilidades
interessantes de renovação.
A intriga deste volume recolecta toda uma série de elementos
provindos de sectores variados do policial. Por um lado, há dimensões advindos
do “locked room mystery”, até de forma literal ou ao quadrado. Por outro, a
aura do mistério leva igualmente a uma espécie de périplo em busca de pistas
que, resolvidas, desembocam nas pistas seguintes mobilizando as personagens. Mas
acresce a isto a tensão que nasce das várias forças antagonistas em busca do “prémio”,
assim como todas as linhas secundárias que se vão desenvolvendo e que, de uma
maneira ou outra, estão ligadas ao novelo central. Em si mesma, a intriga é tão
pífia quanto útil à organização dos acontecimentos. Acrescendo a toda uma série
de teorias mais ou menos sérias, aqui suportadas e ali fantasiosas ao máximo,
de que Shakespeare não terá sido o verdadeiro autor da sua obra teatral e poética,
um grupo de burgueses endinheirados e cultos vêem-se defronte um mistério com
séculos, que os lançaria na hipotética identidade real do Bardo. No caso,
tratar-se-ia da colaboração entre um nobre italiano emigrado na Inglaterra
isabelina e um poeta e actor sem grandes meios. Juntando a cultura ao talento
poético, o instrumento físico do actor no palco ao imaginário erudito da
Europa, essa “criatura de duas cabeças” criaria toda a obra do Folio. O mistério central deste livro
seria a descoberta de um “testamento”, que não apenas apresentaria a última peça
escrita por este compósito “William S.” como ainda revelaria essa mesma
identidade de forma indelével. Para aumentar a carga de acção do livro, esta
revelação poderá ser coroada com um prémio, instituído no século XIX, para
aplacar mas resolver de uma vez por todas as rivalidades dos dois grupos que se
opõem: os que crêem na autoria de Shakespeare ele mesmo, e os que têm teorias
divergentes, coincidentes com aquela apresentada no volume.
É natural que os autores não mergulhem em demasia nos
elementos que poderiam defender esta teoria de uma forma acabada. Estamos no
campo da ficção, logo, a utilização reduzida e enviesada de dados e citações,
uma apresentação sofismática dos mesmos no interior de uma narrativa
unilateral, não perfazendo boa ciência historiográfica e literária, é pasto
para a história que se quer contar. Não deixa de ser algo superficial a maneira
como as pistas são lançadas e depois resolvidas, sempre com uma celeridade
digna do Reader’s Digest, e não
propriamente pela hermenêutica que com efeito está sempre em curso. Essa dimensão
apenas tem uma ilusão de “espessura” pela constante introdução de cenas
históricas, quer do tempo do “verdadeiro Shakespeare dual” quer de outros
momentos, mas raramente surgem como interrogadoras da própria formação da
história alternativa. Mas enfim, talvez seja um “efeito Dan Brown”, em reduzir as
grandes obras artísticas da traição europeia a “mensagens ocultas” que depois
os “decifradores-detectives” vêm revelar, e cujas soluções são sempre mais
débeis do ponto de vista filosófico e estético que as tais obras que cobririam…
O problema é que esta intriga emerge, ocorre e é resolvida
quase à margem dos dois protagonistas da série, tornados actores secundários
(como já havia ocorrido em títulos anteriores). Sobretudo Blake, que fica
relegado a um papel policial marginal, atreito a uma das linhas secundárias. Mortimer
acaba por servir tão-somente de apoiante e condutor de Elizabeth Summertown, a
verdadeira heroína “intelectual” da aventura, em companhia e colaboração com a
sua mãe, Sarah, que já surgira pelas mãos dos mesmos autores. Isso leva a que
haja ainda mais uma linha (uma hipotética ligação sexual entre Mortimer e Sarah
e a implicação da filiação). Haverá aí um jogo de espelhos e deslocação que já
aponta a um aspecto interessante a nosso ver.
Além disso, não deixa de ser curioso que seja esse enigma da
identidade dual do “Shakespeare”, afinal, o âmago temático do livro, que parece
precisamente jogar contra as teorias de Jessie Bi em relação à tensão entre “autor
original e uno” em Jacobs e a possibilidade de uma fantasmática substituição
por uma equipa de argumentista e desenhador, aqui, Sente e Juillard. Poder-se-ia
dizer que a frescura da ingenuidade e estranhezas históricas do original estão
ausentes, pois afinal, não havendo qualquer dimensão metatextual (ou muito
reduzida) nos dois autores contemporâneos, logo sem qualquer distância irónica
do período do pós-guerra britânico, não apenas dá azo a contradições políticas
na série, como a uma fraqueza maior destes
autores (pois não têm a desculpa da inscrição histórica de Jacobs). O efeito de
pastiche é diluído pela introdução de alguns aspectos de “avanço no tempo” – a
própria existência da filha de Summertown, a introdução de certos modelos de
carros, as referências a culturas eruditas e populares do início dos anos 1950,
etc., o que não invalida a existência de anacronismos, que farão o deleite dos
caça-borbotos.
A parte visual é bastamente competente sem ser brilhante.
Juillard é um autor com um currículo suficientemente forte quer no campo da
mais clássica das prestações (Les sept vies
de l’épervier) como na da novela contemporânea (Le cahier bleu), mas não consegue manter nem a elegância das suas
personagens vivas, surgindo aqui algo empedernidas, como não segue os mesmos
sistemas de complexas construções compositivas de Jacobs, antiquadas mas equilibradas
(como R. Chavanne havia tão bem lido). Há uma notória tentativa de imitar
posicionamentos das personagens, os efeitos de referência como objectos
realistas e históricos, a linguagem corporal das acções, mas mesmo na
teatralidade anti-natural de Jacobs havia uma perfeita osmose com os
instrumentos gráficos estilizados (os claros-escuros, o uso de manchas de cor
plana, as distorções quando necessária, o equilíbrio entre a pormenorização
doentia dos cenários e o sumário visual) e o realismo mais tranquilo e natural
de Juillard acaba por não estar suficientemente solto. Não há um trabalho
suficiente de “digestão” (por imposição editorial?), não se tornando estes o
Blake & Mortimer de Sente e
Juillard, mas os de Jacobs tentados pela
dupla.
Mas a tal (re)distribuição dos papéis não deixa de ser um
movimento inteligente. Talvez. Como se os próprios autores da
continuidade-pastiche da série se apercebessem da irrelevância destas personagens
não apenas no novo tempo do seu universo diegético como igualmente no nosso
próprio tempo de leitura. Há portanto uma subtil mudança do protagonismo
intelectual e cultural de Mortimer para Elizabeth, tal como a há na acção
física de Blake para Salman, o criado do Marquês italiano, em cujas caves do
palácio o enigma havia começado. Até Olrik surge para não fazer nada. Na prisão,
e jamais saindo dela, há como que uma tentativa de o retractar como Moriarty
havia sido descrito por Conan Doyle, a ideia do génio do crime no centro da
teia mas tudo controlando através de pequenos gestos. Porém, no fim, parece
simplesmente um homem pateta que pouco pode fazer ali fechado, e os seus
esbirros, cá fora, surgem um pouco como os brutos que são sem qualquer poder no
desenrolar da acção… É o problema de estar preso a um universo fechado, e não
se conseguir expandi-lo suficientemente para longe do original.
Leitura simples e passageira, não estamos perante a
revitalização das personagens ou sequer do género, mas penso que os próprios
Sente e Juillard saberão que essa é uma missão gorada desde a génese. Talvez por
isso elegeram aqui uma intriga que apenas cria a ideia de ser algo profunda,
mas que leva a pouco. Uns passeios pela Europa, uns bustos partidos (ecos de
Doyle, naturalmente, do conto “The Adventure of the Six Napoleons”, há pouco
adaptada igualmente na série televisiva
Sherlock), uma “múmia” (eco de Hergé, triplo, da A orelha Quebrada, O tesouro de Rackham o terrível e ainda As sete bolas de cristal)… Mas talvez
sejam estes os gestos que preparam o terreno para as reinvenções necessárias
nestas personagens comerciais.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume,
assim como do envio dos ficheiros de ambas as capas alternativas. Estas
permitiriam igualmente um pequeno ensaio de interpretação: uma delas mostrando
uma cena que não tem lugar no livro, a outra quase apresentando, em enigma
visual, a própria matéria do livro, incluindo o nível da discussão autoral a
própria série.
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