Depois do sucesso estrondoso, a nível
comercial mas também crítico, de Scott Pilgrim (para
o qual terá contribuído sobremaneira a adaptação cinematográfica
exemplar de Edgar Wright, tendo nós falado de ambos anteriormente),
O'Malley parece ter querido trabalhar temas um pouco mais graves, sem
abdicar porém do seu registo visual de “mangá-via-Ocidente”,
numa espécie de linha clara, aqui ainda mais sublinhada pelo uso de
cores planas para a maior parte das superfícies, gradientes nos
momentos certos, linhas coloridas para cenas específicas, e um
equilíbrio exímio entre a abordagem estilizada, os momentos chibi,
e os pormenores realistas e pormenorizados. Seconds,
ou na tradução aqui lida, Repeteco,
reitera um tema recorrente do autor – a personagem ligeiramente
deslocada de uma certa ideia de “normalidade”, mesmo que dentro
de um contexto onde todos afirmam diferenças dessa suposta “norma”,
a qual acaba muito diluída. No caso, trata-se de uma jovem chefe de
cozinha, Katie, embrulhada numa complexa encruzilhada da abertura do
seu novo restaurante, as suas relações profissionais e amorosas e,
o que perfaz o cerne da intriga, o seu encontro com uma dimensão
fantástica. Nesse “crescimento”, quase faria pensar em Jeff
Smith, mas onde Bone é
uma obra quase perfeita e RASL
menos conseguida, por ser um salto que se move entre géneros mas não
entre concentração dos instrumentos, a relação entre Scott
Pilgrim e Seconds
é a de um desabrochar de uma linguagem interna. (Mais)
Com
mais de trezentas páginas num formato conciso (bem distinto da saga
mais alargada e folhetinesca da personagem mais famosa), o autor
permite-se a criar ambientes de forma paulatina e completa. Há
“espaço”, portanto, e usado da melhor das formas, para
estabelecer as personalidades de todos os intervenientes de maneira
clara, inclusive a do próprio restaurante, que se tornará uma
personagem por direito completo. E nenhuma das personagens é
particularmente perfeita. Bem pelo contrário, e sobretudo a
protagonista, é construída com todos os defeitos de uma pessoa
real. Egoísta, por vezes mesquinha, confusa, impulsiva. Quando a
dimensão fantástica entra em vigor, é feita de forma consistente e
num crescendo sempre pertinente. Essa dimensão tem a ver com os
espíritos do lar (precisamente como os lares e os penates latinos),
com quem Katie entra em contacto directo, e uns cogumelos mágicos
que permitem a Katie “corrigir” acontecimentos passados e tentar
linhas de desenvolvimento diferentes. Todavia, como se espera, a
possibilidade de corrigir torna-se uma solução recorrente, e onde
superficialmente essas correcções parecem funcionar, elas não
apenas se revelam desastrosas noutros aspectos como o seu uso
repetido levará a consequências cada vez mais catastróficas.
Repeteco
não deixa de seguir uma linha narrativa algo clássica, tradicional,
até, do conto moral folclórico ocidental. As roupagens hipster
das personagens (inclusive a ideia de cuisine d'auteur)
são como que um factor de actualização desses temas, confirmando a
possibilidade do seu uso. Mesmo no interior de alguns
desenvolvimentos expectáveis ou elementos-chave que reconheceremos
de outros contos há sempre uma dimensão de interesse. Isto é,
mesmo o emprego de clichés serve um propósito ulterior e elegante.
Talvez essa actualização deva ter até menos importância no
aspecto do contemporâneo do que na compreensão de que somos ainda
os mesmos humanos de há séculos (reflectidos nos tais contos
tradicionais). Todavia, o charme de O'Malley estará menos nas
surpresas diegéticas ou na suposta originalidade total do que no
tratamento tranquilo e inteligente destas mesmas personagens. Mesmo
no seu registo quasi-infantil, de bd de consumo automático, elas
vibram com uma vida própria, identificadas, e consequentemente
capazes de despertar uma recepção emotiva junto aos leitores. De
facto, muitas das personagens farão lembrar um registo à la
Maurício de Sousa, se essa produção integrasse com mais sabedoria
e sofisticação visual elementos de outros sectores da banda
desenhada.
Uma dimensão que sempre achámos
divertida na recepção de alguns livros é julgar a “sofisticação”
ou “cultura” de um autor ou autora pela quantidade de referências
explicitamente citadas nos seus livros. Quando se citam referências
literárias, artísticas ou cinematográficas (e as mais das vezes
dentro de um universo relativamente restrito de referências), ou se
expõem teorias científicas, etc., isso é o único elemento directo
dessa erudição. Tudo o resto, desde a forma como as personagens se
comportam ou falam, ou que podem demonstrar uma capacidade de
observar e mimar os comportamentos humanos, à maneira de resolver
conflitos internos e emocionais ou criar zonas de incerteza em torno
dos conhecimentos, etc., é varrido. Que é precisamente onde se
encontram as forças do autor coreano-canadiano. Ora, um dos aspectos
curiosos é que O'Malley povoa todo o livro com “pistas”, digamos
assim, dos elementos culturais que influenciam a estrutura e acção
de Repeteco, mas sem nunca expor essas mesmas ideias como
explicações directas dessas mesmas estruturas e acções. Por
exemplo, numa das conversas entre Katie e o gerente do restaurante,
este último fala dos kalpa, uma medida de tempo da cosmologia
hindu-budista que equivale ao éon ocidental. Essa referência não
serve para grande coisa de maneira imediata, apenas “abrilhanta”
essa conversa. Porém, a sua citação abre um espaço imaginário na
narrativa que nos permitirá depois integrar todos os acontecimentos
fantásticos que testemunhamos, que implicam linhas divergentes do
desenvolvimento da causalidade, de universos paralelos, para
percebermos que essa fantasia, sendo a coluna vertebral do livro,
serve tão-somente para reforçar a questão da identidade das suas
personagens, o seu centro nevrálgico. Noutro momento, essa
discrepância é até jogada, quando a personagem “aprende a sua
lição”, para ser confrontada que essa lição estava desde a
partida explícita numa dessas fórmulas feitas de motivação, num
poster do escritório.
É nesses cruzamentos adiados, por
assim dizer, que a maturidade de O'Malley transparece, acima de tudo.
Mas a nível formal isso é igualmente visível. A composição das
páginas, com uma generosa margem inferior que “arruma” as
vinhetas, dispostas estas em complexas variações de pranchas
semi-regulares, tirando partido de sub-divisões das secções, leva
a uma fluidez e ritmo, quando necessário, tão intensas como
transquilas.
Traduzido de Seconds, o próprio
título em português, Repeteco, aponta para o registo de
linguagem oral, familiar e até de gíria que atravessa toda a
tradução. Em alguns momentos, poderá provocar uma pequena
distância, uma vez que este nível de linguagem tende a ser
rapidamente substituído ou, no caso da recepção portuguesa (ou,
quem sabe, mesmo no interior do Brasil entre as várias regiões), a
ser mesmo incompreensível (expressões como “massa!”, “brechó”,
“noiada”, etc., podem não ser inteligíveis juntos a todos os
falantes). Mas ao mesmo tempo, lê-lo desta forma traz igualmente uma
urgência e até uma elegância desarmante e totalmente apropriada a
este conjunto de personagens.
No fundo, Repeteco é sobre
segundas oportunidades, mas acima de tudo é uma forma de compreender
que é das primeiras oportunidades que devemos tirar o máximo
partido.
Nota final: agradecimentos à editora
pela oferta do livro.
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