O regresso de Tintin.
Correndo o risco de nos repetirmos, uma das expressões mais curiosas de escutar
em relação à exposição e regular “consumo” da banda desenhada é aquela empregue
por leitores adultos de que “cresceram com” determinado título ou género ou
autor ou personagem. Depreende-se de que o crescimento é aquele dos
interlocutores, em termos físicos, psicológicos, emocionais, uma vez que essa
realidade a que se retorna, da banda desenhada, espera-se que se mantenha a
mesma, com algum nível de conforto e de confirmação da nostalgia. Não nos abstemos, como afirmámos a propósito
de O testamento de William S., de nos
integrarmos pessoalmente em experiências dessa natureza, que ignoram os avisos
da lógica mental para acederem de imediato aos centros nevrálgicos da nostalgia
e das respostas automáticas de prazeres infantis. Todavia, é o esforço e
exigência da educação e da verdadeira maturidade que nos deve fazer procurar
por outros domínios da banda desenhada, que com efeito cresceram com os tempos,
e dessa forma ora trazem modo mais complexos de narrativas, ora aumentam os
graus de referencialidade e integração cultural, ora se estruturam com formas
visuais e compositivas mais consentâneas com uma sofisticação próxima da de
outras áreas artísticas, e por aí fora. (Mais)
Mas no interior da cultura popular e da produção comercial,
também se poderão encontrar exemplos de uma pesquisa interna, dentro das
limitações genéricas ou estilísticas advindas da inscrição numa “escola”, que
levará a alguma sofisticação interna. Isto é, que não estando propriamente a
procurarem novos caminhos de pesquisa formal (como sucede com alguns autores da
Frémok, por exemplo) ou de densidade dita literária, conseguem elevar os tais
géneros clássicos a níveis mais recompensadores ao leitor adulto. Tal é o caso
deste título de Tanquerelle que, em mais do que um ingrediente, se inscreve
totalmente nesse modo vetusto que é o da aventura, e para mais, estabelecendo
com a obra clássica de Hergé uma afinidade fortíssima.
Comecemos pelo aspecto superficial. Não pode haver dúvidas
de que toda a abordagem estilizada de Tanquerelle é devedora da imensa família
a que se dá o nome de “linha clara”, em si mesmo um descritivo bastante
elástico e que aceita no seu seio variadíssimas prestações. Recordemo-nos
brevemente, porém, que o termo surgiu tardiamente, e foi aplicado não apenas de
forma retrospectiva aos autores da escola de Bruxelas (Hergé, Jacobs, Martin,
etc.) como àqueles então contemporâneos (Swarte, Chaland, Benoît) que a
empregavam de uma forma subversiva e interrogadora em termos históricos. Já o
seu uso contínuo na contemporaneidade (Stanislas, Olivier Schwartz, Émile
Bravo, Tanquerelle) pode revestir-se de vários propósitos e importa tentar
compreender outras particularidades. Por exemplo, Schwartz, sobretudo na série Les enquêtes de l’inspecteur Bayard e
depois nos seus álbuns do Spirou tenta
quase tão-somente recuperar essa legibilidade numa espiral de confirmação da
sua “naturalidade” da banda desenhada como meio de entretenimento
infanto-juvenil. Já Bravo, também no seu álbum do Spirou e, com maior leveza,
Tanquerelle neste Groenland Vertigo, procuram compreender em que
medida é que este veículo pode reflectir certas preocupações contemporâneas,
culturais e políticas.
Este livro é aparentemente uma semi-ficção, já que o
protagonista, Georges, é um autor de banda desenhada que se lança numa viagem
pelas paisagens árcticas, como o próprio Tanquerelle terá feito, dado o seu
trabalho anterior. Sendo Georges o filtro narrativo que coordena todo o saber
da “aventura”, o móbil da missão é outro, e o que preencherá o coração dela é
ainda um terceiro. O móbil é a, perdoe-se o aparente pleonasmo, instalação de
uma instalação (na acepção artística da palavra) de Ulrich Kloster, o qual
poderá ser visto como uma amálgama de vários artistas contemporâneos, mas
desconfiamos ser Anselm Kiefer a figura central). Toda a missão é paga por Kloster,
mas também as relações entre a tripulação e os envolvidos são minadas por ele,
uma vez que entra numa espiral de paranóia, já que julga que todos os problemas
advindos à sua arte se devem a conspirações. Tornando Georges o depositário do
seu diário secreto, instala-se uma tensão de interesses triangulados.
Porém, aquilo que alimentará a aventura da perspectiva
humana, digamos assim, é, naturalmente, as pequenas adversidades do dia-a-dia
de Georges a bordo do navio, as suas relações com todos os outros envolvidos, e
acima de tudo a sua cumplicidade com Jorn Freuchen, um autor de literatura de
viagens, que quer revisitar secretamente um local inóspito e isolado onde os
espera uma espécie de “pequeno graal”. Erroneamente poder-se-ia pensar que esse
objecto seria o MacGuffin narrativo do livro, mas a verdade é que ele
materializa-se, é manipulado directamente pelos protagonistas e altera a
relação e agência das personagens, logo tem um peso mais directo na tessitura
da narrativa. O MacGuffi é, na verdade, o tal diário e as suas revelações.
Expostas desta forma, poderá dar-se a ideia de que estas estruturações
de relações e objectos transformam Groenland
Vertigo numa intriga tensa e rápida. Todavia,
o ritmo instigado pelo autor é na verdade de uma grande tranquilidade, quase “doméstico”,
não fosse a acção coordenada em espaços isolados e num navio. Todas aquelas
soluções narrativas clássicas de súbitas surpresas e momentos de acção não
desvirtuam essa tranquilidade, e esse é um dos outros domínios que o aparentam
à obra de Hergé.
Além disso, essas afinidades poderão ser vistas em muitos
outros elementos, desde a relação entre discípulo-mestre estabelecida com
Georges e Jorn, ecoando a relação de Tintin e Haddock, mesmo que a relação
destas personagens famosas seja antes invertido em termos de agência. Mas
Tanquerelle leva às vezes esses ecos a locais familiares, como a sequência do
pesadelo alimentado pela bebedeira de Georges recordará os leitores das famosas
alucinações de O caranguejo das tenazes
de ouro.
Adicionar legenda |
A carga de referencialidade do livro espraia-se numa série
de direcções: discutem-se as antigas missões nos pólos, fala-se da prospecção
de petróleo, nas suas consequências ecológicas e o impacto do aquecimento
global na paisagem, explora-se o mundo da arte de forma tangencial e
descobrem-se técnicas de preservação do whisky. Todas estas informações, porém,
são elegantemente integradas na narrativa, de forma pertinente, apropriada às
personagens envolvidas e criando uma ambiência naturalista a toda a história.
Esse naturalismo aumenta visualmente pela integração (ainda
uma característica da ligne claire)
de pormenores precisos em relação a certos objectos, e o magnífico trabalho de
cor, de suaves e competentíssimas aguarelas, que contrastam mas complementam a
linha sólida e fechada de Tanquerelle.
Ao contrário de todos aqueles esforços das “profacções” em
retomar as aventuras clássicas como se o
tempo não tivesse passado, e suspendendo a forma como a nossa sociedade
avançou em termos de aceitação do outro, de abertura das experiências humanas,
culturais e política, Groenland Vertigo não abdica das estruturas
clássicas da narrativa e da relação entre aas personagens e a acção, mas contemporiza
esses tais valores. Daí que seja um “regresso” desse tom de aventura mais feliz
do que as “imitações da norma”, ela mesmo ultrapassada já há décadas.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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