No final do
volume, o autor explica como o título deste livro é retirado de uma “estiga”,
que neste caso se refere a uma forma ritualística e lúdica de Luanda de criar
narrativas trocadas com interlocutores, com direito a resposta. Usualmente, e
mesmo em Portugal, são jogos de insultos mútuos, com ataques e ripostas, uma
espécie de rap battle, mas onde o objectivo é o divertimento de todos
(às custas dos que se propõem a jogar). É portanto uma forma de exposição,
franca, directa, bruta, e em grande medida é isso o que se passa neste livro.
Mas é no início que está a nota que explica a razão de ser deste projecto.
António Jorge Gonçalves teve um acidente gravíssimo médico que o colocou à
beira da morte, ou mesmo para além dessa hipotética fronteira (ele escreve
“morri e regressei à vida”). E este acto criativo é uma resposta. Se essa
reposta é à aproximação dessa fronteira, à sua travessia, ou ao seu regresso,
não sabemos. Sabemos é que deve ser lido. (Mais)
Incorrendo numa
primeira familiaridade abusiva, tivemos o privilégio de ter conhecido uma
versão primitiva deste projecto, podendo assim afirmar que o livro atravessou
várias formas, sendo moldado à medida do que o autor procuraria. Um melhor modo
não tanto de “representar” o que queria mostrar, mas de dar corpo e signo à
ideação da sua experiência. Mas esta informação em nada invalida a leitura
original, primeira, deste livro que
se apresenta. Dada a existência de suficientes elementos narratológicos coesos
– a presença de personagens recorrentes, de repetição de espaços, de linhas
visuais de acção, de transformações internas -, A minha casa não tem dentro é composto de uma sequência de imagens,
quase todas organizadas em páginas duplas pintadas a marcador e aguarelas. Se a
base dessas imagens, preto no branco, imitam os padrões materiais que adviriam
da linogravura, por exemplo, com figurações simplificadas, plásticas, moldáveis
mas solidamente representativas, as cores predominantes são azuis e vermelhos
densos (e os resultados do seu cruzamento, sobretudo no fim). É quase
impossível não ler nessa opção uma circulação dos sangues venoso e arterial
pelo corpo. E esse corpo, na veia autobiográfica que se compulsa nestas
páginas, é aquele exposto do próprio autor. O livro é, portanto, um corpo
aberto.
O autor joga com
toda uma série de imagens que podem ser descritas como simbólicas, tanto de
memórias pessoais como de sistemas de representação mais colectivos, senão
mesmo universais. Apesar da aparente conjunção heteróclita de elementos e
origens das imagens, uma sua leitura narrativa não é de todo difícil. Bem pelo
contrário, há um agenciamento desses mesmos elementos para criar uma “história”
num sentido bastante claro, linear até, se bem que revestido de uma estrutura
quase clássica, da catábase, isto é,
a descida ao mundo dos mortos.
Há, portanto, um
ritmo claro na construção, densa, dos significados. Uma situação inicial – que
descreveremos como sendo a de um pai desenhando com a filha – leva a uma brutal
separação – a ambulância do INEM levando o pai, a filha sozinha no quarto,
depois a visitar o pai no hospital, este ligado aos tubos que o sustentam, como
uma marioneta desmaiada –, a qual instilará o início de uma viagem da
protagonista feminina por paisagens variadas mas que nascerão das projecções do
“pai” desmaiado, do outro lado da vida. Sendo um acto autobiográfico, não deixa
de ser revelador de que a história é menos contada (na camada visual, como
veremos) na perspectiva do personagem masculino, o pai, o sofredor, por
hipótese imagem do autor, do que a filha que fica para trás e persegue as
paisagens que se lhe apresentam na busca do pai.
E o que vemos
nessas paisagens cambiantes? Vemos anjos (também desmaiados?) no tecto do
quarto, vemos várias águas penetrando ou atravessando os espaços, vemos um
médico de máscara de pássaro (da peste), cenas de espaços teatrais, um circo
horrível, uma dança macabra, paisagens urbanas ora desoladas ora cheias demais,
florestas de pernas, rostos múltiplos. A leitura de todas estas cenas como
“positivas” ou “negativas” tanto pode ser feita de acordo com as interpretações
mais usuais – uma cena violenta como negativa, a chegada de amigos como positiva
– mas ao mesmo tempo, se se as considerar de um ponto de vista alquímico ou
outro (e o Sol-Lua ou as Mãos da Glória permitiriam uma abordagem esotérica), é
possível que se pudessem tentar outros sistemas de interpretação. Que permitirão
desalojar níveis mais complexos, profundos e duradouros.
Em termos de formato, o livro poderá surgir como
um objecto autónomo e de difícil categorização. Não se trata de um projecto “claro”
de colecção e foco de trabalho como Subway Life. A sua estrutura basilar, aliás, poderá mesmo recordar os leitores de
António Jorge Gonçalves dos seus últimos projectos infantis. Não é que o autor
seja cultor, desde logo, de um estilo ou de uma aproximação a esses objectos
que o enclausure numa natureza simplista do que os álbuns ilustrados possam
ser, não sendo portanto surpresa que muito dos seus elementos recorrentes
estejam aqui de novo. Há uma convergência de gestos materialistas e
processuais, mas numa direcção e ontologia bem distintas. Afinal, a
protagonista poderá ser lida como eco das anteriores personagens de Barriga
da Baleia e Quero a minha cabeça!, onde também existem viagens
iniciáticas, possivelmente ecos elas mesmas, e esta agora ainda mais próxima,
da filha real do autor, reforçando a leitura autobiográfica, mas que obrigaria
a abusos de familiaridade. Evitá-los-emos.
Algo que reforça ainda o programa narrativo de A
minha casa não tem dentro são as “interrupções” do fluxo das imagens por
“bandas escritas”, estruturas aparentes à banda desenhada, com duas páginas com
grelhas de 2 x 3 vinhetas, preenchidas somente com material textual. Existem 7.
Escritas na primeira pessoa e seguramente ligando-se à “voz autoral” e empírica
de António Jorge Gonçalves, a primeira aponta para ainda um outro sub-tema, ou
melhor, o filtro principal pelo qual também o livro pode ser lido, transformando
toda a sua natureza: a da própria noção de desenho como extensão natural da
expressão do (deste) autor, logo, considerando o desenho como a única forma de
desejo exposto desta carta aberta “após a morte”. O desenho ganha um direito de
cidadania ao nível narratológico (vemos as personagens a desenhar, inclusive a
menina numa das paisagens “baixas”), a nível textual (fala-se do desenho e é
nele que se instala a identidade do autor), ao nível das representações (dando
a ver os vários “mundos simbólicos” que ajudarão à leitura e interpretação), e ao
nível material e superficial destas páginas (estamos afinal a ver desenhos que
criam estas paisagens e argumentação).
Quase todas as “histórias” de cada uma dessas
unidades textuais apontam para experiências do passado, mesmo que este seja ora
elíptico ora que escape das mãos do narrador... Há mesmo uma sequência breve
que apresenta imagens bem distintas das demais, como se fossem “traduções” ou
“transcrições gráficas” de fotografias, mas onde os rostos estão apagados.
António Jorge Gonçalves apresenta aqui uma espécie de Valsa Lenta, para
citar o livro de José Cardoso Pires com os quais teria esta afinidade de
testemunho de uma experiência liminar, e onde o confronto com a identidade,
aquela tecida no passado e aquela permitida no presente, se torna o cerne do
gesto. E se se pode dizer que há ângulos pessoais (uma hipotética paisagem
diária experienciada pelo autor, a filha, memórias específicas), é o próprio
desenho que estará presente como substrato principal. Essas histórias incluem
sonhos, diálogos com a madrinha, sofredora de um AVC que a irmana ao autor no
binómio doença-recuperação, fragmentações físicas e sexuais, espectáculos de
equilíbrio incompletos... Uma última história, já sem molduras das vinhetas, e
num campo branco, aberto, de páginas onde se poderão continuar ainda outras
histórias, a voz narradora promete regressar ao parque para repetir as
brincadeiras com a filha. Não poderia ser mais claro o desejo de repetir os
gestos, inclusive o do próprio desenho.
A minha casa não tem dentro não deixa de ser um título
enigmático, já que o que o livro revela, se for visto como casa, ou mesmo que
se entenda essa metáfora como sendo o “corpo vazio” que se visita na hora de
uma morte suspensa (o corpo na cama de hospital, a filha abrindo o peito, as mãos
mostrando-se, as janelas do quarto abertas, as águas atravessando lugares),
estar cheia afinal, de objectos,
vida, imagens, ângulos de entrada e travessia. Este livro vem unir-se a toda
uma tradição de objectos gráficos em que os desenhadores constroem reflexões
muito pessoais sobre o acto criativo, sobre o desenho em particular, mesmo que
essas considerações tomem a forma de segredos que nem sempre sejam claros da
forma mais imediata. Porém, a beleza do enigma não está em descobrir uma
resposta final (esperando que dessa forma a esfinge, isto é, a morte, se afaste
de vez), mas antes em dar início ao jogo mental, emocional e até ontológico da
adivinha, tal qual o convite da estiga. É um jogo a repetir.
Se não estamos em erro, existe igualmente em
Angola uma tradição oral em que o recontar se inicia pela fórmula “tirei do
fogo” para terminar com “volta ao fogo”, convidando a essa ideia de um fundo
informe, universal, de onde tudo é retirado e para o qual retorna. Se se conhecer
o final magnífico de A morte de Virgílio, de Hermann Broch,
conhecer-se-á também esse além informe onde tudo se comuta entre si. É tentador
compreender esse limbo como aquele que o autor visitou, e do qual retirou este
tremendo exercício de recuperação da memória pessoal. E não deixa de fazer
sentido pensar no desenho como instrumento optimizado dessa recuperação. Como
escreve Pedro A. H. Paixão em Desenho. A transparência dos signos, o
desenho pode ser visto como “um meio de intensificação do elemento
perceptivo-sensível (activo-passivo) a ponto de advir, no desenhador, um anúncio
inteligível – o limbo entre o eterno e o perecível” (itálicos no
original).
Anúncio de regresso, de vida, de que o desenho
tem um valor salvífico. Esse salvamento é protagonizado pela filha, que não
desiste de desenhar mesmo na paisagem dos mortos, e talvez por esse acto faz
regressar o pai (um dos desenhos mostra a sombra imensa da menina baloiçando
nas mãos o pequeno corpo do pai, regressado ao quarto). Ou então é ela que é
salva, pelo próprio acto da sua viagem, descida, regresso? Não poderá haver
dúvida, todavia, de que o carácter soteriológico do desenho está presente sob a
aparente “novela” entre a figura paternal e a figura da filha.
Uma das histórias textuais é a de um malabarista
que não consegue, no fim, controlar um mesmo truque quando o tenta com sete
bolas. O leitor também terá de equilibrar essas histórias com as várias
sequências, interpretando-as quer como unidades autónomas ou como um fluxo
ininterrupto, uma viagem contínua da protagonista, ao mesmo tempo que, nos
bastidores, o corpo inerte do pai exerce a sua magia pela ausência. Quem
manipula e controla este equilíbrio? O autor ou os leitores? A própria obra? Se
assim for, pelo menos ajudar-nos-á a escaparmos à gravidade e perigo de nos
prendermos às “intenções” do primeiro (que apenas a ele lhe pertencem e não
devem exercer autoridade na leitura livre do livro) ou dos segundos (que
poderão trazem enquadramentos abusivos, erros de associação, uma multidão de interpretações
idiossincráticas). Não entenda porém esta “falta de equilíbrio” como um juízo
negativo. Deve ler-se sob a égide da frase famosa de Beckett, de Worstword Ho: “falhar melhor”.
A história final da filha que quer repetir o
passeio ao parque infantil parece-nos precisamente a exigência que o livro fará
junto ao seu leitor. Ler outra e outra vez, mesmo que se “falhe”. Pois tentá-lo
não é falhar, e como ao malabarista obrigado a apanhar as bolas do chão à
frente dos espectadores, só nos resta bater palmas.
Nota final:
agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Ao autor, pelo privilégio mas não só, um "saúde!".
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