Como manda a lei das editoras
comerciais, chegará um momento em que se faz não apenas uma
reestruturação gráfica e formal das suas colecções, como um
balanço interno da sua produção. A colecção Écritures foi alvo
precisamente de um redesign, em que as capas passam a ser
tratadas a preto com uma segunda cor e os títulos a dourado, criando
uma coerência gráfica distinta daquela verificada até agora. Não
só foram relançados alguns títulos antigos neste packaging
como os novos seguem agora esta linha. Além disso, há um lançamento
e abertura de vários novos gestos criativos que estendem os supostos
objectivos originais da colecção. Não é que não houvesse
colaborações anteriormente, mas o lançamento de La cire
moderne, colaboração entre o escritor Vincent Cuvellier e o
artista Max Radiguès, e Je viens de m'échapper du ciel,
adaptação das novelas policiais coordenadas de Carlos Salem por
Laureline Mattiussi parecem confirmar a insistência desse tipo de
possibilidades “literárias”. Adicionalmente, o lançamento de
Salles d'attente, de Charles Masson, que recupera Soupe
Froide e outros relatos, mostra a possibilidade dos tais balanços
internos. (Mais)
La cire moderne (Vincent Cuvellier e Max de Radiguès) segue a vida de
um trio de slackers que são confrontados com uma nova
experiência de vida. O protagonista é Manu, que se torna herdeiro
de uma fábrica de velas de um tio de que mal se lembra, mas com o
qual passara uma parte ínfima da sua infância. Em seu torno estão
a namorada, Sam, e o meio-irmão desta, Jordan. A vida deles vive num
limbo de indecisão, tempo livre, e uma rebeldia contra uma ideia
vaga de autoridade, idade adulta e, em termos gerais, qualquer
existência que não seja igual à que vão levando.
A herança da fábrica de velas não
apenas força Manu a compreender uma nova direcção na sua vida,
como a confrontar-se com o seu passado, mesmo que essas memórias
tenham apenas lugar fora de campo e se notem somente nos resultados
que operam sobre a sua personalidade, e as novas formas de enfrentar
os desafios do presente. E esses desafios multiplicam-se em várias
dimensões, desde a redescoberta do catolicismo, dado a proximidade a
que é obrigado pela entrega das encomendas de velas votivas ao longo
de uma série de mosteiros e igrejas, a relação tensa com a
namorada, e ainda mais com o irmão, um punk sem tino. La
cire moderne é uma espécie de road movie, sem dúvida
alguma, e como todos os textos desse género, são apenas metáforas
claras para viagens interiores bem mais complexas.
O livro tem uma forma algo
contraditória, começando pelos desenhos leves e esquemáticos de
Radiguès para as personagens, recordando uma espécie de John
Porcellino que tivesse crescido alimentado pela linha clara. A leveza
desses desenhos em certa medida não corresponde à gravidade das
transformações que se exploram. Mas se num momento o road movie
mantém-se nos seus contornos habituais, há um episódio ou outro
que quase parece escorregar para um território de road
comedy, até mesmo num registo slapstick, com uma força
secreta de padres que os persegue... Porém, o tom final é de uma
estranha conciliação com as dúvidas advindas da redescoberta de um
mundo mais complexo, pondo de lado as certezas do antagonismo
primário da juventude. Dessa forma, a “cera” ganha a noção de
algo moldável, tal como Manu.
(Je viens de m'échapper du ciel, Laureline Mattiussi) Carlos Salem chama às suas pequenas
novelas policiais de “relatos de cerveja ficção”, tendo-as
reunidas numa antologia intitulada Relatos negros, cerveza rubia.
Não as conhecendo directamente, não podemos confirmar que o(s)
protagonista(s) sejam os mesmos ou as atravessem, mas neste volume,
que adapta quatro dessas novelas, a autora de banda desenhada
junta-os numa fiada que se torna uma coerência maior. Na verdade,
cria mesmo um prólogo e epílogo que servem de book ends aos
restantes relatos. Outros críticos comparam Salem a Bukowski, no
sentido em que estes textos deambulam pelos corredores nocturnos mais
sórdidos e os crimes apenas existem, não tanto para nos
preocuparmos com eles, as suas consequências, vítimas e resolução,
do que criarem um portal para um ambiente de derrotados da vida.
Fumos, álcoois, fúrias, sexo, e relações humanas expostas sob a
forma de ossos calcinados são as essências que alimentam essa prosa
e, agora, estes desenhos.
Mattiussi tem um desenho fluido,
pincelado, que fará recordar sobremaneira a destreza de um José
Muñoz, não só pela matéria plástica, como a temática (na
companhia de Sampayo, naturalmente). Mas Mattiussi é mais delicada
na sua abordagem, menos angular, preocupada, talvez excessivamente,
com a legibilidade e a delicadeza e o simbolismo. Uma vez que as
novelas de Salam se prestam ainda a uma dimensão fantástica, na
qual têm lugar anjos e pelo menos a sombra de Deus, elevando o nível
da rua à abertura do céu, existem momentos dessa fuga
transcendental. Não compreendemos totalmente se essa oportunidade
soteriológica e divina é melhor para o protagonista, Poe (um
criminoso de uma categoria pífia), ou se torna ainda mais
insuportável o estar preso à terra, mas ele surge como uma dessas
criaturas que retira prazer precisamente de ser feito de carne e
sangue e dias mortais, tendo ainda tempo de garantir a redenção aos
demais, menos afortunados do que ele. Nesse aspecto, não deixam
estas histórias de serem clássicas nessa moralidade: o protagonista
é sempre o “bom ladrão”, que tem um “código” que jamais
ultrapassa, e está apto a ser justiceiro quando os seus companheiros
(“malvados”) pisam o risco. Dito isto, existe abertura suficiente
para ler as novelas como uma espécie de ode precisamente a essa
mesma vida, com um peso carnal e humano.
Salles d'attente é, como
dissemos acima, uma antologia que reúne os livros anteriores de Charles Masson (havíamos falado do primeiro), e ainda um bom número de
relatos curtos, tornando este um volume de 400 páginas. Para além
de Soupe froide, que pode ser lido ou relido como um poema
livre em nome da dignidade humana, o livro reúne outros relatos
autobiográficos ou auto-ficcionais da vida de Masson como médico,
explorando a sua experiência como especialista de
otorrinolaringologia oncológica, quer em França quer em missões
noutros países, sobretudo atendendo pessoas com necessidades
económicas, tornando o interesse das suas histórias particularmente
centrado menos nos aspectos cirúrgicos e técnicos do que na
vertente humana e política.
Isto permite, ou exige, a Masson
explorar vários registos, alguns dos quais se pretendem mais
realistas, com os desenhos burilados da sua forma expressiva ainda
que simples (a sofisticação gráfica do autor é limitada, mas
eficiente), e outros apresentam abordagens mais imediatas e
esquemáticas, informativas ou enciclopédicas mesmo. Enquanto médico
e autor de banda desenhada, Masson sabe estar a coordenar duas
actividades aparentemente paradoxais. Se a classe médica (pense-se
nas Letras portuguesas) sempre se prestou a uma sofisticação e
abertura cultural para o romance de interesse humano, a banda
desenhada seria vista antes como meio, de tanto, de comunicação
informativa. A sua transformação em canal de expressão pessoal
leva a algumas concessões e explorações, como a do humor negro que
ocorre nos blocos operatórios ou a uma auto-derisão da parte do
autor. Mesmo quando as histórias parecem focar antes episódios
pessoais como uma confissão em torno de uma amante, e da
“necessidade” de mentir, essa experiência é explorada como
sendo uma plataforma para pensar na sua actividade médica.
Mas a maioria dos relatos, mesmo os
mais pequenos, tem a ver com a descoberta das experiências distintas
dos seus pacientes. Mesmo que os sintomas e as intervenções sejam
as “mesmas”, a sua vivência não o é, e dessa forma é que
emerge a dignidade humana nas suas mais diversas faces. Esse,
pensamos, é o verdadeiro fito do trabalho de Masson.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta dos livros.
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