23 de fevereiro de 2017

Sutrama. Daniel Lima (kuš!)

Uma das formas de respondermos a este livro seria analisar quais são os pontos de desenvolvimento aproveitados por Daniel Lima no seu próprio diálogo com o filme de Robert Bresson, Le diable probablement (1977), do qual aproveitou algumas cenas para a construção deste diálogo entre duas personagens que preenchem as páginas. Uma pesquisa que superficialmente parece ser a de um suicido ou assassinato banal (?) desemboca numa análise lenta, dura e pesada sobre o estado de espírito de uma sociedade desencantada, o que poderia servir de, talvez, descrição de toda a cinematografia (ou será antes a de uma pesquisa que tenta descobrir ainda os últimos laivos de encantamento que nela sobrevivem?) do autor. Lima, todavia, transforma essa ocasião para reconstruir uma espécie de ambiente artificial e mágico no qual a distância entre os corpos (dos “modelos” e não “actores”, para seguir a nomenclatura de Bresson) dos protagonistas e as metamorfoses dos objectos e espaços em torno tem de ser compreendida menos como momentos para criar redes simbólicas, passíveis de uma ulterior apresentação de significados do que uma plataforma para sensações ambivalentes e ainda mais distanciadoras da própria matéria de expressão. (Mais)

Diálogos dentro de diálogos, portanto, Lima coloca-nos à frente duas personagens. Uma mulher, a qual apesar de vestida de fato revela a sua mais crua nudez, e uma cabeça de homem flutuante, mas que serve não somente de bateria de questões, para a reacção da mulher, como de uma espécie de figura de autoridade desautorizada precisamente pela sua inacção. Independentemente da separação de cada prancha em secções que se poderiam chamar de vinhetas, cada página surge como uma unidade de leitura, uma situação, que apenas por acidente cria a ideia de sequência e de coerência narrativa. A personagem feminina de Lima assume a personalidade-agência do protagonista do filme, o “suicida” por vir, Charles, embrulhado num niilismo muito próprio em relação a todo e qualquer sistema explicativo do mundo. Charles ou a mulher são signos somente feitos de recusa, o que parece não se coordenar com o corpo sexualizado, sedutor e lânguido até desta figura a rosa. A cabeça de homem, com as suas incessantes perguntas, transforma-se numa espécie de oráculo invertido, já que não contém em si qualquer resposta ou condução, mas somente um espelho que confronta quem o ouve. Paulatina e sucessivamente, interroga a protagonista sobre a sociedade em que se insere, o papel que poderia nela exercer, a crença em Deus, a sua relação com a morte, os pais, os sonhos, o amor e o sexo, a política e a sobrevivência, como se cada um desses blocos fosse um dos sistemas apresentados para a experiência da interlocutora. Quase sempre negadas: “I hate life”, responde ela. Mas logo a seguir, “But I hate Death, too”.

A leitura paralela das Notes sur le cinématographe, de Bresson, poderia ofertar pistas para o trabalho de desarmadilhar o livro de André Lima. Em primeiro lugar, os meios esparsos para um maior controlo da sua expressividade e relação interna. Lima nunca procura meios de dramatismo ou de fogo de artifício, mas antes uma aparente simplicidade que explora antes a complexidade não-simbólica. Poderíamos pensar em afinidades com o autor norte-americano C.F., mas onde o minimalismo deste se encontra à superfície para explorar depois mundos “cheios”, e informados pela mais diversa literatura de géneros, o autor português pretende antes despertar metamorfoses matéricas de não-continuidade, como se fossem possível tecer uma dinâmica musical com os lápis de cor. A uma primeira abordagem poderá parecer que o diálogo é feito num espaço fechado, mas apesar de haver continuidade das personagens, e até transformações expectáveis ou “legíveis” de objectos (os espelhos e janelas, o cão, os jarros de água, as formas genitais), eles são na verdade desconectados, impedindo leituras naturalistas, obrigando a ler/ver cada prancha por si mesma. Não quer dizer que haja aqui qualquer “superioridade” ou “maturidade” de Lima sobre C.F. ou sobre outras linguagens, ou usos, se preferirem, da banda desenhada, tão-somente que se devem preparar instrumentos próprios da leitura deste livro, e não expectativas concertadas com obras, ou pior, regras anteriores. De novo, das Notas de Bresson: “Fais apparaître ce qui sans toi ne serait peut’être jamais vu”.

Trata-se Sutrama uma ode ao desencanto, à derrota do espírito, uma espécie de exercício baudelariano do spleen do nosso próprio século? Afinal, a protagonista não parece querer encontrar compromisso com nada (que lhe vai sendo apresentado). Uma entrega ao diabo, mesmo que nele não se creia? Ou será antes a possibilidade de encontrar algum tipo de encantamento, lá onde apenas as sombras exercem a sua presidência? Afinal, é pela intempestividade e qualidade sui generis da sua linguagem plástica (que ocorre em Lima no seu trabalho quer a solo quer em colaboração, de banda desenhada ou animação – recordemo-nos da adaptação de “A engomadeira”, com João Paulo Cotrim, na curta Um degrau pode ser um mundo) que o autor de banda desenhada português exige uma leitura de cariz poético, logo à partida acto de reencantamento.

No entanto, é precisamente a morte o que parece ser a única solução e saída desta inexorável equação enclausurada num espaço fechado. Ou talvez não, já que o “espaço de folheteamento” do livro permite que um derradeiro tiro de revólver se transforme no que parece ser uma ejaculação e esta num foguete de feira, dando a palavra a uma terceira personagem que até esse momento não tinha tido papel algum. Será esse o sinal de que a fuga estará sempre num “fora” absoluto à estrutura? E que repercussão terá essa leitura em relação à própria programação da banda desenhada? Toda a produção desta editora procura linguagens contemporâneas, contaminadas por práticas experimentais e bem distantes das fórmulas, géneros ou sequer expectativas da mais normativa narratividade desta linguagem. Não será esse um argumento adicional de encantamento?

Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta da publicação.  

Sem comentários: