Uma das formas de
respondermos a este livro seria analisar quais são os pontos de
desenvolvimento aproveitados por Daniel Lima no seu próprio diálogo
com o filme de Robert Bresson, Le diable probablement (1977),
do qual aproveitou algumas cenas para a construção deste diálogo
entre duas personagens que preenchem as páginas. Uma pesquisa que
superficialmente parece ser a de um suicido ou assassinato banal (?)
desemboca numa análise lenta, dura e pesada sobre o estado de
espírito de uma sociedade desencantada, o que poderia servir de,
talvez, descrição de toda a cinematografia (ou será antes a de uma
pesquisa que tenta descobrir ainda os últimos laivos de encantamento
que nela sobrevivem?) do autor. Lima, todavia, transforma essa
ocasião para reconstruir uma espécie de ambiente artificial e
mágico no qual a distância entre os corpos (dos “modelos” e não
“actores”, para seguir a nomenclatura de Bresson) dos
protagonistas e as metamorfoses dos objectos e espaços em torno tem
de ser compreendida menos como momentos para criar redes simbólicas,
passíveis de uma ulterior apresentação de significados do que uma
plataforma para sensações ambivalentes e ainda mais distanciadoras
da própria matéria de expressão. (Mais)
Diálogos dentro de
diálogos, portanto, Lima coloca-nos à frente duas personagens. Uma
mulher, a qual apesar de vestida de fato revela a sua mais crua
nudez, e uma cabeça de homem flutuante, mas que serve não somente
de bateria de questões, para a reacção da mulher, como de uma
espécie de figura de autoridade desautorizada precisamente pela sua
inacção. Independentemente da separação de cada prancha em
secções que se poderiam chamar de vinhetas, cada página surge como
uma unidade de leitura, uma situação, que apenas por acidente cria
a ideia de sequência e de coerência narrativa. A personagem
feminina de Lima assume a personalidade-agência do protagonista do
filme, o “suicida” por vir, Charles, embrulhado num niilismo
muito próprio em relação a todo e qualquer sistema explicativo do
mundo. Charles ou a mulher são signos somente feitos de recusa, o
que parece não se coordenar com o corpo sexualizado, sedutor e
lânguido até desta figura a rosa. A cabeça de homem, com as suas
incessantes perguntas, transforma-se numa espécie de oráculo
invertido, já que não contém em si qualquer resposta ou condução,
mas somente um espelho que confronta quem o ouve. Paulatina e
sucessivamente, interroga a protagonista sobre a sociedade em que se
insere, o papel que poderia nela exercer, a crença em Deus, a sua
relação com a morte, os pais, os sonhos, o amor e o sexo, a
política e a sobrevivência, como se cada um desses blocos fosse um
dos sistemas apresentados para a experiência da interlocutora. Quase
sempre negadas: “I hate life”, responde ela. Mas logo a seguir,
“But I hate Death, too”.
A leitura paralela das
Notes sur le cinématographe,
de Bresson, poderia ofertar pistas para o trabalho de desarmadilhar o
livro de André Lima. Em primeiro lugar, os meios esparsos para um
maior controlo da sua expressividade e relação interna. Lima nunca
procura meios de dramatismo ou de fogo de artifício, mas antes uma
aparente simplicidade que explora antes a complexidade não-simbólica.
Poderíamos pensar em afinidades com o autor norte-americano C.F.,
mas onde o minimalismo deste se encontra à superfície para explorar
depois mundos “cheios”, e informados pela mais diversa literatura
de géneros, o autor português pretende antes despertar metamorfoses
matéricas de não-continuidade, como se fossem possível tecer uma
dinâmica musical com os lápis de cor. A uma primeira abordagem
poderá parecer que o diálogo é feito num espaço fechado, mas
apesar de haver continuidade das personagens, e até transformações
expectáveis ou “legíveis” de objectos (os espelhos e janelas, o
cão, os jarros de água, as formas genitais), eles são na verdade
desconectados, impedindo leituras naturalistas, obrigando a ler/ver
cada prancha por si mesma. Não quer dizer que haja aqui qualquer
“superioridade” ou “maturidade” de Lima sobre C.F. ou sobre
outras linguagens, ou usos, se preferirem, da banda desenhada,
tão-somente que se devem preparar instrumentos próprios da leitura
deste livro, e não expectativas concertadas com obras, ou pior,
regras anteriores. De novo, das Notas
de Bresson: “Fais apparaître ce qui sans toi ne serait peut’être
jamais vu”.
Trata-se Sutrama
uma ode ao desencanto, à derrota do espírito, uma espécie de
exercício baudelariano do spleen do nosso próprio século?
Afinal, a protagonista não parece querer encontrar compromisso com
nada (que lhe vai sendo apresentado). Uma entrega ao diabo, mesmo que
nele não se creia? Ou será antes a possibilidade de encontrar algum
tipo de encantamento, lá onde apenas as sombras exercem a sua
presidência? Afinal, é pela intempestividade e qualidade sui
generis da sua linguagem plástica (que ocorre em Lima no seu
trabalho quer a solo quer em colaboração, de banda desenhada ou
animação – recordemo-nos da adaptação de “A engomadeira”,
com João Paulo Cotrim, na curta Um degrau pode ser um mundo)
que o autor de banda desenhada português exige uma leitura de cariz
poético, logo à partida acto de reencantamento.
No entanto, é
precisamente a morte o que parece ser a única solução e saída
desta inexorável equação enclausurada num espaço fechado. Ou
talvez não, já que o “espaço de folheteamento” do livro
permite que um derradeiro tiro de revólver se transforme no que
parece ser uma ejaculação e esta num foguete de feira, dando a
palavra a uma terceira personagem que até esse momento não tinha
tido papel algum. Será esse o sinal de que a fuga estará sempre num
“fora” absoluto à estrutura? E que repercussão terá essa
leitura em relação à própria programação da banda desenhada?
Toda a produção desta editora procura linguagens contemporâneas,
contaminadas por práticas experimentais e bem distantes das
fórmulas, géneros ou sequer expectativas da mais normativa
narratividade desta linguagem. Não será esse um argumento adicional
de encantamento?
Nota final: agradecimentos
ao autor, pela oferta da publicação.
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