Nas suas Teses sobre a
Filosofia da História, Walter Benjamin escreveu “Nunca houve um documento
da civilização que não o fosse simultaneamente da barbárie”. Esta ideia
complexa associa-se à ideia materialista do filósofo alemão e mesmo ao trabalho
da sua crítica, que implicava jamais perder o rasto ao valor que as coisas
tinham pela passagem táctil, tangível, sofrível do ser humano, e não olhá-las
somente pelo seu suposto valor “eterno”, “universal”, “estético”. Le rapport de Brodeck é todo ele tecido
em torno do que o título indica, um documento escrito que quer dar conta de um
evento mas, na sua tessitura, desvela em si mesmo a barbárie que subjaz a cada
gesto humano. (Mais)
Numa aldeia rural, de trabalhos e vida dura, dá-se um crime.
Mataram o estrangeiro que ali se tinha instalado há pouco tempo, depois da
guerra, homem de ares misteriosos, cuja inteligência, resguardo e sensibilidade
– era pintor, e fez mesmo uma exposição de desenhos e pinturas em que havia representado
os aldeões – o tinha afastado da compreensão simplista dos habitantes. Brodeck
é também um homem simples, que vive afastado do centro da aldeia, mas parece
ter tarefas de alguma exigência intelectual: sabe ler e escrever, é uma espécie
de agrimensor. É-lhe incumbida a tarefa de escrever o relatório que descreva e,
quem sabe, explique o assassinato do estrangeiro (apenas conhecido como
“Anderer”, ou “Outro”). Mas acima de tudo, um escrito que exorcize o crime e
permita que a História retome o seu inexorável curso. Escrever para melhor
apagar.
Brodeck, portanto, encontra na escrita do relatório a
oportunidade para pensar a sua própria vida e papel na aldeia. Não se passou
muito tempo desde a guerra, que levara à invasão pelos soldados estrangeiros,
que os obrigaram a uma vida sob o medo e que levaram mesmo à expulsão de
Brodeck, “estranho” ele mesmo à aldeia, tornando bode sacrificial, a ser levado
para um campo de prisioneiros. Na sua ausência, outros crimes tiveram lugar: a
sua mulher fora violada e enlouquecera, três mulheres refugiadas foram
entregues aos soldados, violadas e mortas, outras injustiças “pequenas” multiplicaram-se.
Brodeck recorda-se dessa sua experiência e torna-a reflexo da forma como o
estrangeiro pintor foi recebido. Recorda-se do seu contacto com ele, das breves
discussões em torno de livros, da pintura e do desenho, da compreensão e
identificação de pontos comuns entre almas sensíveis, bem distintas das dos
rústicos da aldeia.
De certa forma, a maneira quase tranquila com que os aldeões
receberam os soldados do inimigo – uma colaboração – foi “corrigida” com a
violência com que receberiam o pintor: destruindo-lhe a exposição dos retratos,
matando-lhe o cavalo e burros, companheiros de uma vida e, finalmente,
assassinando-o a ele. Brodeck não “compreende”, todavia constata o fio de todos esses crimes.
A estrutura do livro não é, de
forma alguma, linear. À nossa entrada, os crimes foram cumpridos, e é a escrita
de Brodeck, na qual insinua a sua respiração pessoal, que vamos vogando pelos
vários pretéritos que se acumulam. Tudo isto não apenas desmancha as ideias de
causalidade, como procura a ideia de um pasto comum que alimenta essas experiências.
Larcenet procura encontrar pontos de comunidade e intimidade entre o olhar de
Brodeck e do pintor estrangeiro mesmo fora dos seus contactos directos, pela
representação, interrompendo a ideia de fluxo narrativo, de cenas naturais que
os circundam nos passeios respectivos, as perspectivas pessoais, os objectos de
cultura com que se rodeiam, os desenhos e pinturas do Anderer.
Adaptação do romance homónimo de Philippe Claudel, este é um
livro que deveria servir de espelho e eco aos tempos particulares que estamos a
viver. Para aproveitar uma frase que o escritor francês repetiu em algumas
entrevistas, a grande questão é a de como
manter a humanidade num tempo em que ela é desumana? Num momento, de facto,
em que as polarizações políticas são cada vez mais acesas, a discussão
argumentada e balizada reduzida a reacções epidérmicas, a recusa de empatia
para com o outro normalizada, a redução daquele que nos pede auxílio ao papel
de parasita ou, pior, ameaça disfarçada dever-nos-ia cobrir de vergonha. Mas
pior ainda são os discursos de fantasia histórica em que se olha para os crimes
do passado e se imagina que “se vivesse naquele tempo teria sido um paladino
dos oprimidos”. Esta fantasia apenas serve um papel de auto-satisfação pobre e
deveria mesmo ser podre, face ao silêncio, inacção ou indiferença perante os
crimes de hoje. Daí a ferida aberta e
obscena do conluio dos aldeões com os esbirros militares se torne ainda mais
pútrida face a violência deslocada contra o pobre Brodeck, as refugiadas
atemorizadas, a mulher de Brodeck buscando justiça, o estrangeiro em busca de
uma beleza imediata. O Relatório
(traduzido em português pela Asa) é um livro que olha para um hipotético
“ontem”, mas em vez de criar a fantasia de uma redenção positiva (“vejam como
os crimes de ontem tiveram salvadores”), mostra os crimes de forma crua (“vede
os crimes que se passaram enquanto vós nada fizestes”) para que, em consequência,
se reflicta sobre a pena presente (“pensa naqueles que hoje se passam”).
Apesar de nunca se indicarem elementos específicos e tangíveis
de localização espácio-temporal, é por demais clara a ideia de que estaremos a
falar de aldeias fronteiriças entre a França e a Alemanha, por entre os
conflitos da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Recordemo-nos do pomo de
discórdia em torno de regiões como a Alsácia e a Lorena, em que esta acção
poderia decorrer. Mas a forma fluida como esses dados são empregues e
representados permite a Claudel e, depois, a Larcenet inscreverem Le rapport
numa tradição bem alargada da literatura do Mitteleuropa, até pela forma
difusa, próxima do “realismo mágico”, como se representam os “soldados
invasores”, que devem mais a monstros disformes do que uma abordagem
historicista da realidade. É verdade que as comparações com o Kafka de O castelo são repetidas, mas aqui não se
navegam tanto os contornos do absurdo e o indefinível, do que o informe. Os
romances Uma casa na escuridão, de
José Luís Peixoto, e alguns dos Livros Negros de Gonçalo M. Tavares, cada qual
a seu modo, exploram o mesmo tipo de território: locais fechados sobre si
mesmos, apenas com pequenas ínsulas de escape e abertura ao exterior, uma
ameaça monstruosa e quase incompreensível, e a forma como ela acaba por obrigar
a fazer emergir as próprias sombras e negrume interno dos habitantes locais.
Daí que se compreende que a opção de Larcenet em trabalhar somente o negro da
tinta-da-China e os cinzentos da grafite sirva de elemento fulcral desta
adaptação.
Le
rapport de Brodeck é, no fundo, um exercício de moral. O mecanismo
principal estudado tem a ver com a desresponsabilização, que entra em vigor no
momento em que o ser humano abdica da sua individualidade e clareza de espírito
livre para passar a inscrever-se como elemento de um grupo maior, de uma mole. Criando-se
estruturas como as de “nós” e “outros”, em que os valores de inscrição seguem
somente as necessidades apresentadas pelos ódios e ignorâncias do momento, é
fácil criar fronteiras e responder de forma cruel e selvagem para as proteger.
Desprovido da canga literária de Claudel (as metáforas, as
flutuações de registo de linguagem, todos os não-ditos ou sentidos oblíquos,
etc.), Larcenet procura estabelecer na sua própria linguagem o ambiente e
densidade deste mundo enclausurado. O livro vai seguindo um ritmo entre o
palavroso – lendo o relatório do protagonista, ou os seus pensamentos íntimos
que não são votados à escrita, ou os diálogos das cenas em curso – e o
parcimonioso – em que é permitido ao olhar demorar-se sobre os rostos gastos
dos aldeões, ou as paisagens montanhosas e coberta de neve em torno da aldeia,
ou focarmo-nos na vida natural, vegetal e animal, que a habita, ou em episódios
silenciosos que apenas sublinham a gravidade das acções, ou ainda os desenhos dos desenhos do estrangeiro.
Não há propriamente uma relação directa entre essas escolhas expressivas e a
organização episódica ou temporal da narrativa, o que exige uma atenção ao
leitor de compreender em que medida é que o passado alimenta o presente ou as
percepções do presente são alimentadas pelas experiência do passado. Para
regressar a Benjamin, é preciso compreender que a aura da barbárie não deixa
jamais de fazer sentir a sua presença e toque.
O livro (a novela original e estes álbuns, intitulados L’autre e L’indicible) não deixam de criar uma dicotomia, por vezes demasiado
clara, entre as personagens moralmente superiores – Brodeck, a sua mulher, o
pintor estrangeiro, outras vítimas – e todas as outras, maculadas para sempre
pelos seus crimes, perpetrados directamente ou tacitamente aceites. Há algum
esforço em explorar a forma como certas pessoas tentam racionalizar os seus
crimes através de questões como as da “necessidade”, da “sobrevivência do
grupo”, da “desresponsabilização”, etc. mas não deixa de se apresentar uma
moral algo absoluta e facilitista. É notória, por exemplo, a maneira como o
dirigente da aldeia tenta explicitar o forçoso que foi agir como se agiu e
depois justificar a necessidade do esquecimento dos crimes. Ou a maneira como
Brodeck entende que o efusivo cumprimento que lhe foi dado por Diodéme, quando
Brodeck regressa do campo de prisioneiros, tem menos a ver com o seu próprio
regresso do que com a possibilidade de Diodéme, “finalmente poder reviver”, sem
a opressão da dívida para com ele. Mas a distribuição da simpatia e antipatia, digamos
assim, da parte do leitor está preparada a
priori, em vez de se aprofundar os mecanismos da empatia, que devria ser
mais livre e matizada.
Os diálogos são escritos em francês, numa linguagem rústica
mas marcada por vislumbres de uma inteligência, a de Brodeck, a do estrangeiro,
que não terá a ver somente com a cultura erudita, mas antes com uma compreensão
directa da alma humana e do mundo. Aqui e ali surgem palavras de um alemão ou
francónio, como se se quisesse dar conta de um dialecto localizado, rural, quem
sabe naquelas terras em permanente discussão que mencionámos antes, tocadas a
cada conflito, apenas com a certeza de que um pesado preço de sangue será pago
pelas populações ali vivendo, indiferentes, no fundo, de que bandeira é hasteada
nos edifícios públicos, já que a fome não terá idioma. Contudo, o fito do livro
é mostrar que a responsabilidade última dessa mesma crueldade não é jamais
alheia. Mais, é precisamente quando se encontra uma desculpa para
responsabilizar um “poder maior” (a autoridade, o superior, o governo, Deus) é
que o homem se permite aos mais hediondos crimes.
Larcenet encontra nesta adaptação uma certa continuidade do
trabalho a que dera corpo com Blast,
na pesquisa da possibilidade de sofrimento que o humano consegue infligir a si
mesmo e aos outros, com os olhos postos numa qualquer “verdade” ulterior. Longe
da elaboração cromática dessa outra série, a opção em criar dois volumes no
formato usualmente chamado “à italiana”, ou seja, oblongos, fará lembrar a
precisão de um álbum de fotografias, ou de desenhos antigos (uma possível
associação aos primeiros álbuns de Töpffer e seus seguidores imediatos?).
Dentro de um envelope-capa, cria-se uma pátina de ideia de oficialidade, de
mimese ao relatório que Brodeck entrega. E que nos cumpre ler para não esquecer
nem nos cegarmos.
Nota final: a leitura foi feita com os exemplares da
biblioteca do CDI do Liceu Francês Charles Lepierre, em Lisboa, cujos serviços agradecemos.
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