29 de março de 2017

Parker, vols. 2 e 3. Richard Stark e Darwyn Cooke (Devir)

Uma vez que já havíamos falado alargadamente da estrutura literária e da forma dialogante entre a adaptação em banda desenhada de Cooke e os romances de Stark, passaremos à leitura imediata dos livros em si. Ficando ainda a nota de homenagem ao artista, cuja morte foi uma surpresa triste há tempo recente.

Cada um dos volumes de Parker lê-se com efeito como uma novela centrando-se nos “trabalhos” a que o criminoso se entrega. É curioso como apesar de o acompanharmos e termos mesmo direito de ir compreendendo alguns dos mecanismos psicológicos que o movem, e o tipo de “ética”, se assim se pode dizer, que pautam o seu profissionalismo, há sempre um limite curto desse mesmo conhecimento. Parker é ainda um homem misterioso, silencioso, que não se deixa endrominar por explicações fáceis. Todavia, essa distância com o leitor é também aquilo que impede uma qualquer empatia ou simpatia total por uma personagem que não esconde de forma alguma ser um sociopata (mesmo que isso seja fruto das alterações mais violentas operadas por Cooke, e não as novelas originais, mais de 20, datadas da década de 1960-1970): machista, violento, ladrão, assassino, etc.. Mesmo os pequenos laivos de “amizade máscula” que ele demonstra para com os seus colegas não será suficiente para o redimir face a uma moralidade humana societal. Mas as novelas policiais, já o havíamos dito, não são habitadas por flores que se cheirem… e há criações tão famosas com criminosos como personagens principais quanto com heróis e justiceiros. (Mais)

O livro 2, A organização, mostra Parker a exercer uma vendetta implacável contra uma das maiores máfias dos Estados Unidos, em perfeita continuidade com o volume anterior. Como o próprio Parker é uma ponta por resolver dessa organização, tentam eliminá-lo, mas Parker constrói uma rede de colaboradores que serve de força contrária, minando os interesses da organização, e permitindo o espaço para a sua vingança final. Trata-se de uma novela de intrigas, alianças pouco saudáveis e de um retrato, talvez fiel, de como as economias paralelas das organizações criminosas norte-americanas nos anos 1950-60 faziam os seus negócios. O golpe, o terceiro volume, é um “trabalho” bem distinto, pois nasce como “encomenda” por um tipo externo às equipas usuais de Parker. Aceite o desafio do assalto às finanças de uma mina isolada de cobre, monta-se um pequeno exército que elabora um plano marcial e preciso para esse efeito. Até ao momento em que o elemento surpresa estala esse mesmo plano.

Totalmente centrados na intriga, sem demais, a elegância da sua montagem está na acuidade com que cada gesto é cumprido para atingir os objectivos finais. Dessa forma, Parker faz parte do discurso mais clássico do género. Se houver tema secundário a explorar no fundo, porém, poderíamos dizer que nos dois casos o grande tema é o da fidelidade entre criminosos. Não há propriamente uma preocupação em construir de forma profunda todas as personagens (parece que Grofield é protagonista de uma outra série de novelas do escritor), mas apenas na medida das necessidades da acção, e sempre com Parker como alfa e ómega dessa mesma rede.

Cooke encontra uma forma feliz, parece-nos, de adaptação. Em termos narrativos, teria que se fazer uma leitura compulsiva do original para compreender quais as alterações feitas, para além da maior glamourização e até banalização da violência, cumprida por Cooke mas nem sempre assegurada por Stark. Mas no que diz respeito à abordagem visual, é a assinatura retro típica de Cooke que permite estas variações entre a leveza e o sombrio, entre o cómico e o soturno, que vai permitindo as flutuações de humor e suspense das novelas.

Podíamos imaginar que o uso das cores corresponderiam a um qualquer significado geral interpretável de forma simbólica, simples (o laranja de O golpe como eco da missão paramilitar, ou as explosões e fogo apocalíptico do final, o azul petróleo de A organização como um blues soturno), mas estamos em crer que não se justificaria. Mais importante é notar as diferentes estratégias de composição de página e adaptação do storytelling estrutural e visual conforme cada história e até mesmo cena. No segundo volume, os ataques sucessivos aos negócios da máfia atacada toma todo um rol de formas distintas, como se se tratassem de citações de várias fontes distintas: um artigo de jornal, um manual de instruções, uma brochura institucional. Mais importante é a maneira como Cooke altera mesmo até a figuração das personagens nessas secções, procurando uma leve mimese com estilos de artistas da época. Cooke é um autor sério, no sentido em que não procura criar pastiches e compreende as suas limitações, mas é impossível não perceber os momentos em que lança mão das linhas expressivas e excedentes e segunda cor da publicidade, as figuras abonecadas dos cartoons e tiras de humor, ou os diagramas metamórficos de uma animação institucional. Em O golpe, procuram-se momentos de introdução das personagens, por exemplo, numa forma icónica “fora” da fluidez narrativa, e há mesmo recurso a citações cinematográficas de uma forma mais sustentada (as fantasias cinéfila-musicais de Grofield). Compreendendo que cada uma das personagens tem como modelo colegas de trabalho e amigos de Cooke, esse jogo de referências intertextuais ganham outra espessura.

Esta diversidade gráfica é, todavia, apenas formas de procurar uma maior dinâmica visual em histórias bastante lineares e clássicas. Em ambos os casos, temos aqui duas grandes “fitas”.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos volumes.  

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