A ideia de usar a banda desenhada como um meio de transmissão de
informação, como meio de educação, não é de todo nova. Se englobarmos as
imagens Quentin nessa equação, ancoramo-nos mesmo nas origens populares e na
infantilização desta disciplina no século XIX. Mas poderíamos recuar ainda
mais, se se pensasse em questões dos livros ilustrados medievais, das
enciclopédias aos Musterbuchen, e a
inúmeras práticas. Usualmente, esta utilização é vista com alguma desconfiança
quando se parte de um ponto de vista estritamente estético, uma vez que os
instrumentos empregues por estes exemplos não serão aqueles que mais
preocupados estarão com a pesquisa da expressão, com a individualidade autoral,
mas antes subsumem-se a noções tais como as da legibilidade, da
inteligibilidade, da clareza de argumentação, etc. E muitas vezes acompanham-se
de um qualquer enquadramento moralista que é bem distinto da visão mais
progressiva. Não se pode, porém, negar que esse “uso”, não sendo artístico ou
literário ou politicamente relevante, ainda assim conseguirá conquistar de
quando em vez um qualquer grau de competência que a faz escapar de uma oferta
desapaixonada. (Mais)
No quadro da oferta de livros em banda desenhada sobre temas
científicos, temos um autor maior em Larry Gonick, cuja obra actua como uma
verdadeira divulgação pluridisciplinar através de um humor corrosivo, por
vezes, mas intelectual e culturalmente sólido. Alguns dos volumes de Gonick
estão publicados em português pela Gradiva, mas a sua obra é bem vasta. Todavia,
não está pensada para os leitores em idade escolar, mas sim uma popularização
disciplinar. Os volumes que têm saído pela First Second, sob o título geral de “Science
Comics” seguem muito provavelmente alguns dos programas em vigor nos Estados
Unidos, ou tocam as raias de temas que são exploráveis nas escolas, em
trabalhos de grupo, investigações, projectos, etc. Dizemos isto pois eles quase
sempre assumem estruturas gerais que procuram responder às necessidades desses
mesmas temas, apresentado ora linhas cronológicas de desenvolvimento,
tipologias do objecto em questão, contextualizações hodiernas para uma maior
acção de resposta, ou conselhos para intervenção social.
No caso de Gonick, que continuará a servir-nos de modelo, não
há uma grande preocupação em criar uma moldura narrativa linear ou simplificada
para conduzir a apresentação e esgrimar dos factos. Poderíamos aqui recordar o
volume criado entre João Ramalho Santos e André Caetano, em torno das células
estaminais, e tentar compreender como a falta desse tipo de enquadramento
poderá criar uma barreira à fluidez do discurso. Parte-se do pressuposto do
interesse do leitor, e há um diálogo entre adultos. Estes volumes necessariamente
criam pequenas ficções no seu interior, que depois servem de ancoramento às
informações trocadas, quase sempre no interior daquela dinâmica conhecida de
ter uma personagem inquisidora e outra de autoridade, que a vai “educando”. Há
casos em que essa construção é muito competente e até constrói uma “história”
divertida e interessante em si mesma. Mas há também casos em que isso não é
conseguido da melhor forma.
Por exemplo, os dois volumes de Falynn Koch, Bats e Plagues, preocupam-se sobremaneira com a construção de personagens
simpáticos, abertos aos mecanismos de aproximação do leitor. No primeiro caso,
temos uma dupla desencontrada mas complementar, entre uma jovem rapariga que
salva um pequeno morcego de um acidente, levando-o para uma veterinária
especializada, e o próprio morcego, que vai criando relações com todos os
outros morcegos, que não da sua espécie, no pequeno hospital. Desta forma,
temos duas fontes de informação em torno do mesmo tema: a veterinária, que vai
explicando à jovem todo o seu trabalho e missão, assim como informações sobre
os próprios morcegos, e esses mesmos morcegos que já estão na veterinária,
explicando ao jovem acabado de chegar os seus estilos de vida e origens, contribuindo
assim para uma compreensão bem alargada dos morcegos no mundo, a sua biologia e
morfologia, mas também papel global na ecologia, sublinhando sobretudo o seu
contributo particular para a vida natural e as possíveis relações com os seres
humanos. No caso de Plagues, o que se
pretende é explicar a maneira como se tenta transformar alguns vírus e
bactérias em armas a favor dos humanos, combatendo outras doenças. Assim, no
interior de um “corpo virtual”, de uma cientista em particular, vamos
acompanhando o discurso desta, corroborado por um pequeno computador de bordo e
um linfócito T, enquanto explica ao vírus da febre-amarela e à bactéria da
peste bubónica como elas podem ser transformadas em aliados dos humanos.
Em ambos os casos, temos uma pesquisa não apenas completa e
interessante de cada tema, como uma construção inteligente das personagens,
procurando traços de personalidade fortes para todos – até o tratamento do
vírus e da bactéria é muito apropriado a cada característica faceta dos agentes
patogénicos, tal como dos restantes. É isso o que permite depois uma boa gestão das “informações duras”.
Já no caso do livro de Alison Wilgus e Molly Brooks, Flying Machines, isso não é conseguido, a nosso ver, da melhor forma. É
verdade que o sub-título é muito directo sobre o seu propósito: “Como os irmãos
Wright voaram”. Com efeito, este não é um volume tanto dedicado às máquinas
voadoras em geral, à história da aviação, ou sequer aos vários contributos
individuais e parcelares de toda uma galeria de personagens, mas antes um
concentrado elogio aos irmãos americanos responsáveis pela convergência
sistemática de vários elementos que abriria o caminho certo à indústria
aeronáutica. Sendo esse o tema, não nos surpreenderá o foco narrativo do livro.
A sua condução é feita por Katharine Wright, a irmã mais novas dos famosos
inventores, já adulta, mas actuando como uma espécie de guia externa à diegese,
e que vai não somente introduzindo cada novo episódio, como tece inúmeros
comentários e apartes em relação ao que é dito e feito pelas outras
personagens. Todavia, esse mecanismo torna-se por vezes algo distractivo,
julgador e empobrece um pouco a dinâmica dramática que poderia ocorrer em
relação aos eventos em si. Algo que é bem mais conseguido nos dois livros de
Koch, uma vez que a atenção está ao nível das acções no seu momento.
Como se disse, existem momentos de “informação dura”, que em
ambos os casos surge sob a forma de diagramas ou quadros informativos ou
imagens mais ou menos infográficas, que estruturam dados visuais e/ou textuais
em distribuições não-sequenciais. Uma vez que Koch é uma artista com maior
desenvoltura, mesmo que se inscrevendo numa família muito alargada de novos
artistas pós-Tumblr (cuja característica é a de narizes proeminentes,
avermelhados e muito expressivos), ao passo que Brooks e Wilgus (não tendo a
certeza se é trabalho de colaboração, complementarização ou distribuição,
referir-nos-emos a ambas) são mais esquemáticas, também os livros sobre
morcegos e pragas funcionam de uma maneira mais dinâmica, integrada e elegante.
Aliás, a figuração de Koch tem um equilíbrio muito feliz entre o abonecado e
cartoonesco e o correcto. Apesar dos morcegos acabarem todos por ter um ar “cute”
e os agentes patogénicos serem antropomorfizados descaradamente, a verdade é
que a sua colação com “espécimes reais” demonstrarão correcção.
Sentimos muito menos uma “interrupção” na fluidez narrativa
nos livros de Koch do que no outro caso, em que há mesmo opções distintas em
termos de composição de página, figuração e cor. O que é curioso, porque, pelo
menos na narrativa de Plagues, há
muito mais desvios e excursos pela história da humanidade, e até por
considerações do foro social, mas que ajudam a reforçar o propósito do livro, o
que distingue a autora de um hipotético “mero tratamento informacional”.
O objectivo de cada volume não é esgotar os temas respectivos,
de forma alguma, mas serem completos de modo suficiente, pelo menos, para
introduzir as várias linhas de pesquisa possível. Mais uma vez parece-nos que
os livros sobre os morcegos e as pragas são bastante competentes nesse aspecto,
mesmo que o tratamento das informações em si possa ser mais acabado nesta dimensão
do que noutra. O livro sobre os Wright, uma vez que se preocupa somente com o gesto
destes para com a história geral da aviação, é necessariamente integral nesse
recontar.
Naturalmente que o humor está sempre presente, e até uma certa
leveza, como é de esperar. Mas mais uma vez criar-se-ia aqui uma outra
valorização de Koch por oposição à da dupla sobre os primeiros aviões, uma vez
que não se procura qualquer tipo de condescendência em relação aos leitores,
nem pedidos de favor. Este confronto, por assim dizer, demonstrará que não se
podem tratar estes livros como idênticos no seu tratamento, e há que perceber
as diferenças na qualidade das suas abordagens. Mesmo para compreender, até, as
possibilidades da banda desenhada em ser, com efeito, um canal de comunicação
efectivo, eficiente e pensado.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio de cópias
digitais dos livros (imagens colhidas da internet).
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