Estando nós particularmente “atrasados” em dar conta de
dezenas de novos livros teóricos, académicos e ensaísticos sobre a banda
desenhada e outras disciplinas, dado o nosso próprio percurso de investigação,
mas aos quais esperamos retornar em breve, mesmo que sumariamente, tentemos
porém regressar de forma sucinta e tímida, com este último opúsculo de
Groensteen. (Mais)
Com efeito, com pouco mais de uma centena de páginas, numa
letra larga e com margens generosas, estamos perante um objecto que mais teria
o apropriado nome de “longo artigo” do que de novo contributo de inflexão sobre
o pensamento da banda desenhada [não é o seu anterior Un art en expansion, que ainda não lemos]. Afinal de contas, La bande dessinée au tournant não é mais do que um balanço do
estado da arte em França nos últimos dez anos, criado como coda e
distanciamento do mais estruturado Un object culturel non identifié, publicado em 2006. “Balanço”, de facto.
A partir da estrutura desse livro anterior, Groensteen tenta
entender o que é que se tem alterado, mantido ou transformado de forma a
levantar novas questões. O autor aborda o território em duas grandes áreas, a
da edição e a da recepção, ou seja, por um lado todas as questões de produção,
por outro as da valorização sócio-cultural da banda desenhada. Com dados
concretos e citações judiciosas de trabalhos elaborados e específicos a cada
uma dessas dimensões, Groensteen tenta compreender a paisagem editorial contemporânea
no espaço francófono: que editoras trabalham, como é que elas se coordenam no
mundo editoral, quantos títulos têm sido publicados, quantas novidades, quantos
desses títulos se integram em lógicas de colecção e/ou autorais, quais são as
políticas de criação, como tem sido tratado o património da banda desenhada,
que géneros têm surgido, medrado ou sido transformados, que novas linguagens,
suportes ou modos de circulação têm sido experimentados, que categorias ainda
fazem sentido identificar na “cena” (o que significa “alternativo”?)?
Depois, na segunda secção, tenta-se compreender as políticas
culturais em vigor, as transformações institucionais (a mudança do CNBDI de
associação para instituto público), os agentes do ensino, cada vez mais diverso
e até atomizado, a forma como a banda desenhada se tem tornado objecto de
estudo académico, o espaço que tem garantido na crítica, especializada ou não,
a maneira como se tem integrado no dito “mundo da arte”, inclusive a questão da
mercantilização da arte original…
Em termos gerais, poderíamos sumarizar o livro como “as
coisas estão bem, mas…” Nunca se produziu tanta banda desenhada em França e
arredores como hoje em dia, nunca se falou tanto e houve tanta circulação e transposições
intermediáticas e estudos pós-culturais, mas, enfim… os autores em si continuam
a batalhar por uma mínima dignidade financeira e a forma de dialogar entre a
banda desenhada e todas as outras produções culturais ainda tem muito que e lhe
diga. Se o título parece algo bombástico, como se fosse prometer uma abordagem
teórica sobre as novas tendências da banda desenhada enquanto disciplina
artística autónoma e linguagem independente das demais (até certo ponto, já que
se enquadra sempre numa paisagem maior), a verdade é que ficamos um pouco nas
margens desse mergulho.
Como poderão imaginar, mais interessante do que os dados e
factos são as abordagens críticas de Groensteen, as quais, mesmo que não passem
aqui e ali de levantamentos de lebre, lançarão o pensamento numa roda-viva de
considerações. Este tipo de gesto editorial faz imenso sentido num panorama
como o francês, e nem sequer poderemos começar a imaginar o esforço titânico que
seria necessário para chegarmos a um ponto tal no nosso país que se permitisse
sonhar com editar este tipo de documentos. De consulta rápida, mas um objecto
ao qual se deitará a mão muitas vezes, até mesmo para poder lançar novas
respostas. Em Portugal, depois do desaparecimento dos dossiers da Bedeteca de
Lisboa, foram poucos os gestos que se criaram desta natureza, mas pessoas como
Nuno Pereira de Sousa, Marcos Farrajota e José de Freitas, por exemplo, têm
lançado balanços inteligentes e equilibrados, cada qual à sua maneira, com distintos
instrumentos e posicionamentos, sobre o panorama português. Faltam mais gestos
deste tipo, sobretudo com uma perspectiva crítica (criar listas de “best ofs”
the um ano não é isso, de forma alguma, e é a prática contínua da atenção
crítica que deveria pautar a atenção, não as efemérides ou o alcance de um
predeterminado patamar), mas vão-se fazendo.
Groensteen, a partir da sua posição privilegiada, o seu raio
de acção completo no mundo francófono, a sua inteligência em compreender as
tendências e compreender as formações de discursos, é capaz como poucos de
apresentar uma visão escorreita, e que não esconderá a sua incompletude nalguns
aspectos. De facto, é bem possível que outros autores e pensadores como Ph.
Capart, Ch. Rossett, G . Meesters, X. Guibert (este último contribuindo com particularmente
excelentes dossiers puros e duros no du9.org) pudessem suster pequenas leituras
diferentes face às mesmas situações, mas estamos perante um dos nomes mais
activos da sua esfera de influência. Mesmo que não se concorde com alguma
leitura, há que ler com atenção. Isto seria mais uma brochura de síntese do que
um livro, noutras circunstâncias, é verdade, e há talvez poucos dados “novos”,
mas são os comentários que o adensam.
Importante será, então, para nós, ou entre nós, lê-lo com a
nossa própria conjuntura em mente. Por exemplo, ao lermos a secção sobre as
políticas culturais a nível estatal ou camarário, é natural que sejamos
estimulados a desejar compreender como pensar as mesmas questões em Portugal?
Em que medida é que as várias câmaras têm contribuído, de facto, para a
formação de novos públicos, a circulação de novos autores, a consciência de
questões prementes na banda desenhada contemporânea? Que esperar do
ressuscitado programa das bolas de criação literária da DGLB (na Bedeteca
Anónima temos uma chamada de atenção)? Em que medida a actividade editorial das
pequenas grandes editoras de banda desenhada, de longe mais competentes e
diversas que as ditas “grandes” se traduz numa vida sustentada da banda
desenhada? Qual a razão da quase total ausência de uma recepção diversificada
da banda desenhada nos meios de comunicação de massa, ou pelo menos um seu
tratamento digno, sem passar pelos disparates costumeiros? Quando lemos a quase
anedótica crítica sobre o facto de jornais em França lançarem páginas de elogios
necrológicos a um autor recentemente falecido mas sem jamais terem falado da
sua obra quando estava vivo, não nos podemos deixar de recordar do que
aconteceu com Taniguchi, há recente.
Se servir para enfiarmos a carapuça, pois bem.
Nota final : agradecimentos á editora, pela oferta do
livro.
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