Quando falámos atempadamente do trabalho de Amanda Baeza,
ainda no interior de uma lógica de pequenos fanzines ou edições independentes
de uma circulação limitada, tínhamos perfeita noção de que mais tarde ou mais
cedo a acumulação desses trabalhos emergiria num corpo maior. Se ainda não é o
momento, talvez, de uma obra maior em si mesma, pelo menos a sua colação
permitirá chegar a um público mais alargado e, de resto, tem sido essa a missão
da colecção Mercantologia, da Chili Com Carne, nos últimos anos: a de
re-oferecer alguns dos melhores gestos da comunidade zinesca a uma circulação mais
lata. (Mais)
Bruma reúne então 18 histórias, algumas das quais inéditas,
e apenas duas tendo sido publicadas antes em língua portuguesa (como aqui), e outra, de que
devemos declarar ter sido o argumentista, saíra em língua inglesa na The Lisbon Studio Mag no. 6. Não é todo
o material de Baeza, é certo, mas são os objectos passíveis de criarem um corpo
coeso. A edição da Chili Com Carne junta peças curtas que haviam saído em
outras antologias, como a Volcan e a Kovra, até a monografias como Our Library.
Aquilo que é salientado, em primeiro lugar, é o campo
magnífico visual em que Amanda Baeza trabalha. Há aqui um felicíssimo encontro
entre uma figuração ultra-estilizada e uma liberdade dos espartilhos estruturais
mais clássicos da banda desenhada que a lança a vários experimentos de
organização do campo visual, da estruturação narrativa, da concatenação de
linhas divergentes, modos de atenção, etc. Além da esperada variedade gráfica,
advinda ora das circunstâncias de cada publicação ora de preocupações
momentâneas da autora: lápis de grafite versus trabalho de linha de
tinta-da-China, preto-e-branco versus cor, cores planas versus gradientes
suaves digitais, composições ortogonais versus contaminações em espiral, etc.
Esta variedade tem, todavia, reverberações nos pontos
comuns, que são temáticos. Se se ler com cuidado, aperceber-se-á o leitor
atento dos contornos autobiográficos das histórias, preocupadas com questões de
identidade, não apenas do Si mesmo (essas histórias são muitas vezes contadas
na primeira pessoa, e quando o não fazem referem-se a uma “Amanda”) mas dos
Outros com que a protagonista contacta. Assim, “Nuvens de talco” aborda a
religiosidade e o isolamento num colégio, “As crianças revelam o que os adultos
escondem” é a mais directa peça autobiográfica e que expõe a percepção da cor
da pele como estigma social assim como uma lição terrível e verdadeira da
expressão dos preconceitos, “Bilbao” é sobre uma integração problemática no
País Basco, território ele mesmo pejado de tensões identitárias, e quer “A
minha cara, por fora/A minha cara, por dentro”, “Uma cara perdida ouvindo a
Fuller” e, mais obliquamente, “Uma caixa”, parecem ser variações das histórias
da infância.
Curiosamente, se algumas histórias parecem expor de forma
directa citações ou ideias em torno do acto criativo, artístico, da formação as
imagens, há recorrentemente cenas das personagens a moldarem matérias em várias
formas. A concentração na manipulação e metamorfose das matérias, inclusive a
do corpo humano, parece ser um baixo-contínuo nas suas histórias (e que se
mantém na sua colaboração de “7 dias de assombro”, connosco, apesar de não ter
havido esse desígnio de modo consciente ou programático.
A re-descobrir de um modo sustentado ou como primeira
apresentação, Bruma, esperemos, será
um gesto de introdução de uma autora com uma voz particularmente original.
Nota final: a edição a que nos referimos é a em língua
portuguesa, que é a mais completa, em relação àquela em língua inglesa (da Kus,
da Látvia), o que é natural, uma vez que duas das histórias foram por eles
publicadas. É de anotar igualmente que este é apenas o segundo volume da
colecção Mono dessa editora, um privilégio especial. Há ainda uma edição em
língua espanhola, que não vimos. Agradecimentos à Chili Com Carne e à autora,
pela oferta dos volumes e pelas imagens.
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