Este
livro é um gesto bem distinto no percurso do seu autor. Não se podendo assumir
totalmente como um gesto autobiográfico,
existem suficientes informações extratextuais – o prefácio de André Diniz, as
notas de agradecimento do autor, a sua própria foto, etc. – que apontam para a
sua construção enquanto bebendo dessa mesma experiência, lançando-a, portanto,
naquilo que Serge Doubrovsky definiu como “autoficção”. Um jogo de tensões e
espelhos que permite, a um só tempo, aproximar o que lemos de uma ideia, mesmo
que vaga, de que corresponderão à experiência real do seu autor, mas ao mesmo
tempo erguendo um intervalo suficientemente sólido para permitir alguma
distância e segurança. Se a própria autobiografia não nos dá a nós direito de
atravessar a linha que deve separar a arte do seu autor, a categoria da “autoficção”
redobra esses esforço. (Mais)
O “psiconauta”
do título chama-se Miguel. Ele entrega-se a um ritual relativamente simples,
que tem menos de iniciático e sofredor do que de uma acessibilidade desarmante,
e que lhe permite beber o chá alucinogénio ayahuasca. Por simples queremos dar a entender que toda a canga que lhe poderia
estar associada a um proselitismo religioso, seja ele genuíno, sincrético ou
pseudo-real, está ausente. O quadro das acções mostra, aparentemente, que beber
ayahuasca é uma oportunidade que se lhe surge graças aos conhecimentos da
mulher, mas que ele havia evitado até à data. Quando franqueia esse hipotético
limiar, o que essa substância permite é uma “viagem interior” a si mesmo,
proporcionando-lhe a hipótese de um auto-diálogo subtanciado.
A receita
da ayahuasca é definida como enteogénica,
uma palavra, neologismo bem recente, na verdade, que quererá dar conta da
libertação ou emergência de uma entidade divina no interior de nós mesmos.
Etimologicamente, vai associar-se á ideia de entusiasmo, tal como entendido na cultura clássica grego-romana, a
de um verter da essência divina em nós, uma “possessão” por esse espírito.
Neste caso, porém, tem a ver com um entendimento xamânico, ou seja, trata-se
menos com a “descida” de um ente externo (divino, ou outro) ao corpo próprio,
do que a “ascensão” deste a outras camadas da existência. Isto serve para
insistir na dimensão de que a ayahuasca, e toda a trama de Cadernos de viagem, procura estabelecer que o diálogo de Miguel é
estabelecido consigo mesmo.
Isto não
quer dizer que este seja um exercício de solipsismo. Bem pelo contrário. Repare-se
como na estrutura narrativa, Miguel troca impressões e dialoga de forma perene
com todo um rol de personagens: a mulher, um editor, um tio, a mãe, o pai, o
filho, etc., sempre em graus e intensidades diferentes. Todos esses diálogos
demonstram que a personagem está apta e aberta à troca de impressões, ao desejo
de “confessar” e à disponibilidade de escutar. O ritual da ayahuasca
permitir-lhe-á, finalmente, criar um corpo denso de si mesmo fora de si, uma
espécie de espelho, que lhe permite dialogar consigo mesmo de uma maneira mais
vincada. Miguel encontrar-se-á com um eu hipotético mais velho, para com ele,
em retrospectiva, vasculhar o seu passado e compreender o que do seu eu mais
novo ficou, se herdou e se perdeu.
Apesar de
Freud e a sua disciplina ser reduzida muitas vezes a meia-dúzia de clichés,
para depois construir anedota e piadas que, de tão repetidas, apenas têm o seu
efeito junto aos leitores mais ignorantes, ele havia proposta uma lição que
ainda hoje é radical. A de que o nosso inconsciente existe. Um eu, dentro de
nós mesmos, que não é controlado pela razão. Parte do trabalho da psicanálise é
permitir um enquadramento dialogante do si consigo mesmo (guiado pelo
analista). Não é por acaso que essa palavra, “trabalho”, esteja também presente
nas disciplinas da alquimia e no ritual da ayahuasca. Portanto, todas estas
linhas se vêm associar na demanda de Miguel.
Outra das
possibilidades que a psicanálise trouxe, num quadro cultural em que já havia
uma consideração de tudo o que não pertencia à vigília como desprovido
totalmente de sentido (sonhos, visões, erros linguísticos, ilusões, etc.), foi
a de recuperar tudo isso para o compreender à luz do inconsciente. As transformações
e mutações de significados não são ocultos, precisam é de ser burilados até se
tornarem claros. Ora a “viagem” de Miguel permite-lhe precisamente auscultar o
que estaria no seu passado a exercer pressão no seu eu de hoje. Sem grandes
surpresas, num quadro maior de referências da literatura deste género,
encontramos, por um lado, a novela familiar entre pai e filho. É natural que os
pais nutram desejos e sonhos que, se incumpridos, passam a tornar-se objectivos
para os filhos, independentemente da vontade destes. E é um desses novelos que
está no centro do livro. Mais, e por outro lado, enquanto coração dessa
rivalidade, por assim dizer, de sonhos e objectivos, encontra-se a deslocação
dos desejos de infância para a idade adulta. O pequeno Miguel tinha um soldado
de brincar que nunca recebeu, e é uma espécie de espinho no percurso que o terá
levado à procura de outras formas de satisfazer essa “falta”. Sem querer
deslocar-nos em demasia para esquemas lacanianos, a verdade é que é essa mesma “ausência”,
esse “objecto” em falta, que se torna a espoleta da acção e, obviamente, da sua
resolução. Sendo um livro curto, a “intriga” centra-se tão-somente num dos
mecanismos salvíficos a que Miguel se entrega, e ele tem a ver com essa
rivalidade e a busca pelo objecto, mas é empregue para criar uma relação mais
lata: entre Miguel e o pai, entre Miguel e o seu filho, entre Miguel e os seus
eus passado e futuro.
Apesar desta
convoluta estrutura, as suas ramificações regressam sempre a um tronco comum
que cartografa de forma clara a viagem. Aliás, estas palavras são empregues
precisamente porque o autor deixa sempre visível essa imagem arborícola, que
atravessa todo o livro. Laudo Ferreira continua a apostar numa abordagem que
tem a ver com uma legibilidade quase absoluta, clássica, límpida. A prominência
é dada à linha, e as cores, vivas (de Omar Viñole), sublinham essas formas de
maneira naturalista e visível, sem uma procura por excessos de significado ou
expressão. O trabalho de composição é também sóbrio, com a excepção de algumas
pranchas, algo expectáveis, nos momentos de maior dissolução entre as camadas
atravessadas: a realidade tangível e materialista e aquela outra permitida pela
“visão”, o presente e o passado, a imediata experiência dos dias e as
projecções interiores.
Cadernos de viagem não é
propriamente uma exploração original sobre os caminhos desta senda, e não
procura servir palatos abrangentes. É um gesto genuíno, pessoal, e até rápido
na sua expressão. A própria assinatura gráfica de L. Ferreira procura aqui uma
solidez e estrita concentração no programa narrativo, e não em desvios.
Naturalmente,
sendo Laudo Ferreira autor de banda desenhada, e sendo este volume um exercício
de auto-ficção, ele pode ser lido à luz das reflexões que um autor faz sobre a
própria arte. Lá estão, como esperado, as questões das origens da arte, as
dimensões sócio-financeiras dessa escolha, e igualmente um posicionamento
crítico perante o estado da arte: o comentário sobre Miguel tornar-se “mais um”
a explorar a noção da graphic novel, apesar de surgir e dissipar-se
num ápice, como se costuma dizer, speaks
volumes. E, claro está, o próprio título da pequena obra aponta para vários
gestos criativos e práticas que, não correspondendo com exactidão disciplinar
ao que aqui se apresenta, força um diálogo pertinente e produtivo. Não apenas “viagem”
surge no seu sentido metafórico, pessoal e espiritual (menos num sentido
religioso que dizendo respeito ao espírito), como o subtítulo reforça a ideia
de ser um breve apontamento das impressões dessa passagem.
Nota:
agradecimentos ao autor, pela oferta do livro.
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