19 de março de 2017

Cadernos de Viagem. Anotações e experiências do Psiconauta. Laudo Ferreira (Devir Brasil)

Este livro é um gesto bem distinto no percurso do seu autor. Não se podendo assumir totalmente como um gesto autobiográfico, existem suficientes informações extratextuais – o prefácio de André Diniz, as notas de agradecimento do autor, a sua própria foto, etc. – que apontam para a sua construção enquanto bebendo dessa mesma experiência, lançando-a, portanto, naquilo que Serge Doubrovsky definiu como “autoficção”. Um jogo de tensões e espelhos que permite, a um só tempo, aproximar o que lemos de uma ideia, mesmo que vaga, de que corresponderão à experiência real do seu autor, mas ao mesmo tempo erguendo um intervalo suficientemente sólido para permitir alguma distância e segurança. Se a própria autobiografia não nos dá a nós direito de atravessar a linha que deve separar a arte do seu autor, a categoria da “autoficção” redobra esses esforço. (Mais) 

O “psiconauta” do título chama-se Miguel. Ele entrega-se a um ritual relativamente simples, que tem menos de iniciático e sofredor do que de uma acessibilidade desarmante, e que lhe permite beber o chá alucinogénio ayahuasca. Por simples queremos dar a entender que toda a canga que lhe poderia estar associada a um proselitismo religioso, seja ele genuíno, sincrético ou pseudo-real, está ausente. O quadro das acções mostra, aparentemente, que beber ayahuasca é uma oportunidade que se lhe surge graças aos conhecimentos da mulher, mas que ele havia evitado até à data. Quando franqueia esse hipotético limiar, o que essa substância permite é uma “viagem interior” a si mesmo, proporcionando-lhe a hipótese de um auto-diálogo subtanciado.

A receita da ayahuasca é definida como enteogénica, uma palavra, neologismo bem recente, na verdade, que quererá dar conta da libertação ou emergência de uma entidade divina no interior de nós mesmos. Etimologicamente, vai associar-se á ideia de entusiasmo, tal como entendido na cultura clássica grego-romana, a de um verter da essência divina em nós, uma “possessão” por esse espírito. Neste caso, porém, tem a ver com um entendimento xamânico, ou seja, trata-se menos com a “descida” de um ente externo (divino, ou outro) ao corpo próprio, do que a “ascensão” deste a outras camadas da existência. Isto serve para insistir na dimensão de que a ayahuasca, e toda a trama de Cadernos de viagem, procura estabelecer que o diálogo de Miguel é estabelecido consigo mesmo.

Isto não quer dizer que este seja um exercício de solipsismo. Bem pelo contrário. Repare-se como na estrutura narrativa, Miguel troca impressões e dialoga de forma perene com todo um rol de personagens: a mulher, um editor, um tio, a mãe, o pai, o filho, etc., sempre em graus e intensidades diferentes. Todos esses diálogos demonstram que a personagem está apta e aberta à troca de impressões, ao desejo de “confessar” e à disponibilidade de escutar. O ritual da ayahuasca permitir-lhe-á, finalmente, criar um corpo denso de si mesmo fora de si, uma espécie de espelho, que lhe permite dialogar consigo mesmo de uma maneira mais vincada. Miguel encontrar-se-á com um eu hipotético mais velho, para com ele, em retrospectiva, vasculhar o seu passado e compreender o que do seu eu mais novo ficou, se herdou e se perdeu.


Apesar de Freud e a sua disciplina ser reduzida muitas vezes a meia-dúzia de clichés, para depois construir anedota e piadas que, de tão repetidas, apenas têm o seu efeito junto aos leitores mais ignorantes, ele havia proposta uma lição que ainda hoje é radical. A de que o nosso inconsciente existe. Um eu, dentro de nós mesmos, que não é controlado pela razão. Parte do trabalho da psicanálise é permitir um enquadramento dialogante do si consigo mesmo (guiado pelo analista). Não é por acaso que essa palavra, “trabalho”, esteja também presente nas disciplinas da alquimia e no ritual da ayahuasca. Portanto, todas estas linhas se vêm associar na demanda de Miguel.

Outra das possibilidades que a psicanálise trouxe, num quadro cultural em que já havia uma consideração de tudo o que não pertencia à vigília como desprovido totalmente de sentido (sonhos, visões, erros linguísticos, ilusões, etc.), foi a de recuperar tudo isso para o compreender à luz do inconsciente. As transformações e mutações de significados não são ocultos, precisam é de ser burilados até se tornarem claros. Ora a “viagem” de Miguel permite-lhe precisamente auscultar o que estaria no seu passado a exercer pressão no seu eu de hoje. Sem grandes surpresas, num quadro maior de referências da literatura deste género, encontramos, por um lado, a novela familiar entre pai e filho. É natural que os pais nutram desejos e sonhos que, se incumpridos, passam a tornar-se objectivos para os filhos, independentemente da vontade destes. E é um desses novelos que está no centro do livro. Mais, e por outro lado, enquanto coração dessa rivalidade, por assim dizer, de sonhos e objectivos, encontra-se a deslocação dos desejos de infância para a idade adulta. O pequeno Miguel tinha um soldado de brincar que nunca recebeu, e é uma espécie de espinho no percurso que o terá levado à procura de outras formas de satisfazer essa “falta”. Sem querer deslocar-nos em demasia para esquemas lacanianos, a verdade é que é essa mesma “ausência”, esse “objecto” em falta, que se torna a espoleta da acção e, obviamente, da sua resolução. Sendo um livro curto, a “intriga” centra-se tão-somente num dos mecanismos salvíficos a que Miguel se entrega, e ele tem a ver com essa rivalidade e a busca pelo objecto, mas é empregue para criar uma relação mais lata: entre Miguel e o pai, entre Miguel e o seu filho, entre Miguel e os seus eus passado e futuro.

Apesar desta convoluta estrutura, as suas ramificações regressam sempre a um tronco comum que cartografa de forma clara a viagem. Aliás, estas palavras são empregues precisamente porque o autor deixa sempre visível essa imagem arborícola, que atravessa todo o livro. Laudo Ferreira continua a apostar numa abordagem que tem a ver com uma legibilidade quase absoluta, clássica, límpida. A prominência é dada à linha, e as cores, vivas (de Omar Viñole), sublinham essas formas de maneira naturalista e visível, sem uma procura por excessos de significado ou expressão. O trabalho de composição é também sóbrio, com a excepção de algumas pranchas, algo expectáveis, nos momentos de maior dissolução entre as camadas atravessadas: a realidade tangível e materialista e aquela outra permitida pela “visão”, o presente e o passado, a imediata experiência dos dias e as projecções interiores.

Cadernos de viagem não é propriamente uma exploração original sobre os caminhos desta senda, e não procura servir palatos abrangentes. É um gesto genuíno, pessoal, e até rápido na sua expressão. A própria assinatura gráfica de L. Ferreira procura aqui uma solidez e estrita concentração no programa narrativo, e não em desvios.

Naturalmente, sendo Laudo Ferreira autor de banda desenhada, e sendo este volume um exercício de auto-ficção, ele pode ser lido à luz das reflexões que um autor faz sobre a própria arte. Lá estão, como esperado, as questões das origens da arte, as dimensões sócio-financeiras dessa escolha, e igualmente um posicionamento crítico perante o estado da arte: o comentário sobre Miguel tornar-se “mais um” a explorar a noção da graphic novel, apesar de surgir e dissipar-se num ápice, como se costuma dizer, speaks volumes. E, claro está, o próprio título da pequena obra aponta para vários gestos criativos e práticas que, não correspondendo com exactidão disciplinar ao que aqui se apresenta, força um diálogo pertinente e produtivo. Não apenas “viagem” surge no seu sentido metafórico, pessoal e espiritual (menos num sentido religioso que dizendo respeito ao espírito), como o subtítulo reforça a ideia de ser um breve apontamento das impressões dessa passagem.

Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta do livro. 

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