Depois
de Cachalote, em colaboração com o escritor Daniel Galera, e
O beijo adolescente, a solo, Rafael Coutinho traz um novo
livro, num desses fôlegos que usualmente na circulação social da
banda desenhada é um garante de uma conquista particular junto à
atenção mediática mais normalizada. Para os seus leitores
contínuos, não haverá necessidade de recorrer a esse tipo de
musculatura e presença para demonstrar as suas capacidades
expressivas, mas sempre se cria uma impressão. (Mais)
Mensur
é uma história que, em contraste com os demais gestos criativos do
autor, procura contornos relativamente simples. Uma história em
torno de uma personagem conhecida pelo nome de Gringo, ao ponto dele
o empregar em plena substituição de qualquer nome que tenha. Gringo
parece ser um drifter, viajando de terra em terra e procurando
empregos meneais que lhe permitem um mínimo de sobrevivência. No
entanto, compreendemos que terá uma educação superior à média,
uma inteligência culta mas não propriamente brilhante, tendo
escolhido um caminho solitário. Terá abandonado uma vida “normal”
algures na sua vida. A única herança, por um instante pelo menos,
que carrega desse tempo, é a prática de mensur, uma forma
tradicional de esgrima, com origem nas repúblicas e fraternidades de
estudantes alemães. Com o seu rapier, de quando em vez
encontra-se com outros praticantes nesse seu deambular. Por vezes
ponto de encontro, outras modo de afastamento, o mensur surge então
como traço identitário de Gringo, âncora da sua personalidade
abandonada às circunstâncias cambiantes desta sua nova vida e ponto
de significados no momento em que precisa de confrontar certos
fantasmas.
O
livro encontra-se dividido em secções tituladas, com os nomes das
cidades por onde Gringo passa (ou regressa, se abastece, reforça,
etc.), mas a progressão não deixa de ser linear. Se existem formas
de acedermos ao passado, não é por cenas de flashback (com
uma única excepção chocante mas não melodramática) que ajudam o
leitor a ir preenchendo o seu conhecimento em relação ao
protagonista ou os que o rodeiam, mas sim através de inferências do
pouco que é dito e sobretudo das atitudes e reacções das
personagens entre si. Tal qual o fazemos na vida real quando tentamos
perceber mais do que nos é dito explicitamente ou, como diz a gíria
popular, “tirar nabos da púcara”. E há bastantes nabos a
procurar ao longo de Mensur. E havendo um crime (hediondo, por
sinal) no centro do livro, o autor não procura transformá-lo no
mistério a resolver, nem sequer no móbil das acções, e nem sequer
estabelece a sua origem, deixando ao leitor a responsabilidade de
criar a sua resolução.
Dito
isto, é natural que Coutinho procure alguns desvios das formas
clássicas de organização da narrativa, o que é feito a todos os
momentos através de elipses maiores que as “naturais”, através
da composição de página que, aqui e ali, busca formas e protocolos
menos comuns e, claro está, no clímax do livro. Dito isto,
compreender-se-á que Mensur, na verdade, apresenta um esquema
narrativo algo clássico, quer em termos narratológicos quer até
nos papéis de distribuição da agência dos eventos. Aliás, neste
ângulo, Mensur é até conservador, se assim se pode dizer,
no papel da masculinidade do herói. Não apenas ele é solitário e
alimentado por um sentido de si muito próprio, como a sua visão de
justiça é idiossincrática, e se relacionará com uma figura
feminina que preencherá o papel de “damsel in distress”.
Mas,
com efeito, o que é este tipo de combate de esgrima académico senão
toda uma prática e discurso em torno de uma masculinidade
tradicional, que engloba uma fraternização entre homens, e apenas
homens (cisgender, seria necessário acrescentar?), uma busca
por uma certa ideia de igualdade e meritocracia, a ascensão do acto
violento e sua apropriação como ponto de honra, etc.? A diferença
entre estes actos e as praxes académicas um pouco por todo o mundo
seria constituída apenas por mínimos graus de diferenças
culturais, mas jamais de substância em termos dos seus frutos
desejados, sempre reforçando portanto essa perspectiva
tradicionalista. Imaginamos que seja uma cultura que tenha um extenso
espectro de vivências e posicionamentos políticos (se bem que, à
partida, nos pareça associável a uma ideologia conservadora a
vários níveis, há a defesa acérrima do individualismo e há
certamente aberturas a práticas multiculturais), mas
concentrar-nos-emos no seu emprego nesta narrativa.
Desconhecemos
por completo se esta transplantação para um contexto brasileiro
contemporâneo corresponde a alguma realidade, uma sub-cultura que
imaginamos marginal e oculta, mas que procura intersecções com
outras sub-culturas locais (como se demonstra em cada uma das cidades
visitadas pelo protagonista). Ou se se trata tão-somente de uma
ficção de Coutinho. Parece que a prática ainda existe pela
Alemanha, mas “domesticada” (ou então, lá está, na sua forma
original, conducente às cicatrizes de honra, mas de forma secreta),
e para sublinhar a pertença a repúblicas masculinas. Dito isto,
todavia, não deixa de haver aqui um desejo de reintroduzir
precisamente essa assunção do discurso do mensur como política de
identidade num momento em que, talvez, essa mesma categoria (“homem”)
é colocada como centro nevrálgico de toda uma série de
desigualdades sociais, culturais e económicas na esmagadora maioria
das sociedades em desenvolvimento.
Diríamos
que a força de Mensur estará menos numa pesquisa que ponha
em causa a natureza narrativa da (percepção usual da) banda
desenhada, ou até numa preocupação de fazer avançar questões
políticas de representação do que, em torno de uma estrutura
relativamente classicizante, criar formas de atenção particulares.
O que traz ângulos inovadores e arestas expressivas à forma de
narrar de Coutinho está na maneira como gere uma determinada cena
“interrompendo-a” com pequenas percepções a coisas que vão
ocorrendo lateralmente, ou atomizar a atenção sobre o evento
principal em formas de composição de páginas que desregulam a sua
apresentação num só eixo. Podemos vogar entre ângulos picados e
contrapicados radicais, criar redes de divisão entre cenas
simultâneas, obrigar o foco a prender-se a uma perspectiva visual
subjectiva que impede uma amplitude maior, e há mesmo a cena final
de um combate que abdica totalmente da “clareza” dos eixos
espácio-temporais.
Ao
mesmo tempo, estas estratégias permitem a Rafael Coutinho dar asas à
sua linha livre. Um desenho nervoso, que parte de uma compreensão
íntima das proporções e expressões do corpo e rosto humanos, mas
que depois se abandona em alguns paroxismos, ou aproveitamentos
icónicos prováveis de imagens alheias, e muitos efeitos em que a
linha parece ganhar uma proeminência singular, quase desligada
daquilo que deveria representar. É assim que várias cenas ganham
intensidades visuais e de composição independentes da matéria
narrativa, instilando alguns dos tais desvios a que nos referíamos.
São essas as cicatrizes, digamos assim, criadas
propositadamente, em nome de uma identidade expressa de modo
tradicional, sobre o rosto que se apresenta. O leitor terá de as
confrontar.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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