De acordo com uma crença da cultura autóctone da Córsega, os
mazzeri (pl., singular mazzeru) são pessoas que têm um dom
profético da morte de alguém da sua comunidade, por via de sonhos, o que remete
desde logo a práticas provavelmente muito antigas e irmanáveis com algumas das
estruturações experienciais dos (vários tipos de) xamanismos. Nesses sonhos, as
pessoas imaginam-se caçando animais da natureza circundante – javalis, raposas,
coelhos, cabras, etc. -, acto que revelaria o rosto daquele que depois morrerá.
Como se poderá imaginar, crendo nestas possibilidades, a pessoa a quem cabe
esta tarefa é tão integrada quando apartada da “normalidade” da sua sociedade. (Mais)
Este álbum, com um tamanho particularmente grande, para além
dos formatos usuais do mercado franco-belga, de Stromboni, é uma ficção tecida
em torno não apenas desta mitologia local, dos “mensageiros da morte”, como
também uma auscultação de um mundo entretanto desaparecido, uma ruralidade
antiga, totalmente dinamitada pela modernidade e pelo capitalismo industrial
que tudo cimenta, torna comum e apaga numa ontologia desencantada. Não sem
razão o autor procurou debuxar a sua história num momento em que a convivência
entre o campo e as fábricas industriais começa a afastar os habitantes do
primeiro para a esfera e expectativas das tarefas das segundas, lenta mas
inexoravelmente contribuindo para a dissolução dessas experiências e
mundividências.
O livro apresenta-se com uma estrutura formal a um só tempo
complexa, uma vez que não se segue uma maneira linear mas antes várias
personagens, criando um tecido polifónico, e também simples, já que a navegação
entre essas linhas distintas é suave e clara. Stromboni tem como objectivo,
digamos assim, criar uma rede densa e aberta de relações entre as várias
personagens principais – o jovem miúdo, Césario, que se torna mazzeru, a
jovem Chilina, cuja entrada no papel de “mulher” a lança num percurso de
tragédia, e o pai desta, Virgile, cujos pecados acumulados em nada se expiam
apesar dos cuidados – mas que o leitor consiga deliberar e compreender, e não
propriamente lançar na confusão. O grau de ambivalência, apesar da forma,
é baixo, na verdade.
O autor não utiliza balões de fala, e somente de quando em
quando surgem pequenos blocos de texto, como uma espécie de monólogos curtos. A
esmagadora deles pertencem às “vozes” das três personagens indicadas acima, mas
existem também troços que poderão pertencer a um mega-narrador, uma presença
externa aos corpos visíveis e que toca nas raias de uma experiência maior que a
deles: a esfera do “sonho”, que também testemunhamos quando seguimos as “caças
oníricas” de Césario? O mundo da morte, que nos aguarda a todos e a todos
compreende? Uma perspectiva pertencente ao mundo do próprio texto?
Essas flutuações, se assim nos for permitido dizer, são
corroboradas quer a nível da narrativa – afinal, Césario penetra na esfera
onírica para as suas visões – quer a nível do texto – já que o autor compõe
algumas páginas ou spreads de forma a tornar visível a complementaridade
ou oposição entre a vivência das personagens, ou então joga as contradições
entre momentos pausados de contemplação da natureza com cenas rápidas de
sentimentos e acções de dramatismo e violência – quer até a nível social – na
“fuga” de Césario para as fábricas e o seu retorno, ou a de Chilina para os
cabeços e mato, onde se tornará uma criatura feral e violenta, face aos crimes
perpetrados contra ela. São todas essas linhas que reforçam a ordem temática de
Mazzeru, e a tornam ao mesmo tempo uma interessante ponderação das
mudanças culturais advindas com a modernidade, e sem maniqueísmos facilitistas
de “culpas” e “redenções”.
De maneira a traduzir a rudeza e agrura destas vidas
pautadas pelas estações e carestias da vida, muito antes dos confortos advindo
da trans-burguesia de uma sociedade tardo-capitalista, e sem quaisquer laivos
de romantismo em torno do mundo rural, o autor debuxa as figuras e paisagens
num preto-e-branco austero, todo ele atravessado de linhas riscadas. Em termos
microscópicos, quase nos recorda o trabalho de Vincent Fortemps, em que há um
grau (ou grão) de “ruído visual”, mas a abordagem deste autor é mais
figurativa, clássica e subsumida aos programas de representação e narrativos. O
autor é detentor de uma solidíssima abordagem anatómica, em que alguns
pormenores de posições e expressões dos corpos, os pormenores das mãos, e a
exactidão dos espaços revelam grande mestria. A ausência da cor para apoiar
estas formas apenas reforça a austeridade de pedra, terra, séculos talvez, a
que a cultura diz respeito. Todavia, há sobre essas imagens uma pátina de
excessos, desvios, ruídos, que torna a sua prestação mais expressiva e viva. Se
os momentos em que os apontamentos a cores selvagens, incontroladas e vivas,
irrompem no negro das páginas para dar conta do “sangue” ou das “almas”
libertas dos animais caçados por Césario, nos sonhos, há igualmente momentos em
que a luz emerge súbita das sombras deixadas pelos pincéis, grafite e outras
técnicas, algumas das quais mesmo próximas da gravura.
Equilíbrio entre a narração e a contemplação, entre a
linearidade da história e os desvios do comentário e pensamento, Mazzeru
é um retrato de um mundo pouco comum mas tão próximo da nossa própria
experiência portuguesa, soubéssemos olhar melhor ou outra vez. Dividido num
pequeno número de capítulos introduzidos por uma espécie de saber enciclopédico
em torno de algumas plantas tóxicas, mas igualmente conducentes aos saberes
tradicionais e rituais destas personagens míticas, Mazzeru é ao mesmo tempo a tentativa de recuperar um saber, uma
visão e uma experiência do mundo que, como a famosa metáfora de Walter
Benjamin, sobre a modernidade, é mais brilhante e fascinante como a chama de um
fósforo, que brilha mais intensamente no momento antes de se apagar para
sempre.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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