23 de maio de 2017

Mazzeru. Jules Stromboni (Casterman)

De acordo com uma crença da cultura autóctone da Córsega, os mazzeri (pl., singular mazzeru) são pessoas que têm um dom profético da morte de alguém da sua comunidade, por via de sonhos, o que remete desde logo a práticas provavelmente muito antigas e irmanáveis com algumas das estruturações experienciais dos (vários tipos de) xamanismos. Nesses sonhos, as pessoas imaginam-se caçando animais da natureza circundante – javalis, raposas, coelhos, cabras, etc. -, acto que revelaria o rosto daquele que depois morrerá. Como se poderá imaginar, crendo nestas possibilidades, a pessoa a quem cabe esta tarefa é tão integrada quando apartada da “normalidade” da sua sociedade. (Mais) 

Este álbum, com um tamanho particularmente grande, para além dos formatos usuais do mercado franco-belga, de Stromboni, é uma ficção tecida em torno não apenas desta mitologia local, dos “mensageiros da morte”, como também uma auscultação de um mundo entretanto desaparecido, uma ruralidade antiga, totalmente dinamitada pela modernidade e pelo capitalismo industrial que tudo cimenta, torna comum e apaga numa ontologia desencantada. Não sem razão o autor procurou debuxar a sua história num momento em que a convivência entre o campo e as fábricas industriais começa a afastar os habitantes do primeiro para a esfera e expectativas das tarefas das segundas, lenta mas inexoravelmente contribuindo para a dissolução dessas experiências e mundividências.

O livro apresenta-se com uma estrutura formal a um só tempo complexa, uma vez que não se segue uma maneira linear mas antes várias personagens, criando um tecido polifónico, e também simples, já que a navegação entre essas linhas distintas é suave e clara. Stromboni tem como objectivo, digamos assim, criar uma rede densa e aberta de relações entre as várias personagens principais – o jovem miúdo, Césario, que se torna mazzeru, a jovem Chilina, cuja entrada no papel de “mulher” a lança num percurso de tragédia, e o pai desta, Virgile, cujos pecados acumulados em nada se expiam apesar dos cuidados – mas que o leitor consiga deliberar e compreender, e não propriamente lançar na confusão. O grau de ambivalência, apesar da forma, é baixo, na verdade.

O autor não utiliza balões de fala, e somente de quando em quando surgem pequenos blocos de texto, como uma espécie de monólogos curtos. A esmagadora deles pertencem às “vozes” das três personagens indicadas acima, mas existem também troços que poderão pertencer a um mega-narrador, uma presença externa aos corpos visíveis e que toca nas raias de uma experiência maior que a deles: a esfera do “sonho”, que também testemunhamos quando seguimos as “caças oníricas” de Césario? O mundo da morte, que nos aguarda a todos e a todos compreende? Uma perspectiva pertencente ao mundo do próprio texto?

Essas flutuações, se assim nos for permitido dizer, são corroboradas quer a nível da narrativa – afinal, Césario penetra na esfera onírica para as suas visões – quer a nível do texto – já que o autor compõe algumas páginas ou spreads de forma a tornar visível a complementaridade ou oposição entre a vivência das personagens, ou então joga as contradições entre momentos pausados de contemplação da natureza com cenas rápidas de sentimentos e acções de dramatismo e violência – quer até a nível social – na “fuga” de Césario para as fábricas e o seu retorno, ou a de Chilina para os cabeços e mato, onde se tornará uma criatura feral e violenta, face aos crimes perpetrados contra ela. São todas essas linhas que reforçam a ordem temática de Mazzeru, e a tornam ao mesmo tempo uma interessante ponderação das mudanças culturais advindas com a modernidade, e sem maniqueísmos facilitistas de “culpas” e “redenções”.

De maneira a traduzir a rudeza e agrura destas vidas pautadas pelas estações e carestias da vida, muito antes dos confortos advindo da trans-burguesia de uma sociedade tardo-capitalista, e sem quaisquer laivos de romantismo em torno do mundo rural, o autor debuxa as figuras e paisagens num preto-e-branco austero, todo ele atravessado de linhas riscadas. Em termos microscópicos, quase nos recorda o trabalho de Vincent Fortemps, em que há um grau (ou grão) de “ruído visual”, mas a abordagem deste autor é mais figurativa, clássica e subsumida aos programas de representação e narrativos. O autor é detentor de uma solidíssima abordagem anatómica, em que alguns pormenores de posições e expressões dos corpos, os pormenores das mãos, e a exactidão dos espaços revelam grande mestria. A ausência da cor para apoiar estas formas apenas reforça a austeridade de pedra, terra, séculos talvez, a que a cultura diz respeito. Todavia, há sobre essas imagens uma pátina de excessos, desvios, ruídos, que torna a sua prestação mais expressiva e viva. Se os momentos em que os apontamentos a cores selvagens, incontroladas e vivas, irrompem no negro das páginas para dar conta do “sangue” ou das “almas” libertas dos animais caçados por Césario, nos sonhos, há igualmente momentos em que a luz emerge súbita das sombras deixadas pelos pincéis, grafite e outras técnicas, algumas das quais mesmo próximas da gravura.

Equilíbrio entre a narração e a contemplação, entre a linearidade da história e os desvios do comentário e pensamento, Mazzeru é um retrato de um mundo pouco comum mas tão próximo da nossa própria experiência portuguesa, soubéssemos olhar melhor ou outra vez. Dividido num pequeno número de capítulos introduzidos por uma espécie de saber enciclopédico em torno de algumas plantas tóxicas, mas igualmente conducentes aos saberes tradicionais e rituais destas personagens míticas, Mazzeru é ao mesmo tempo a tentativa de recuperar um saber, uma visão e uma experiência do mundo que, como a famosa metáfora de Walter Benjamin, sobre a modernidade, é mais brilhante e fascinante como a chama de um fósforo, que brilha mais intensamente no momento antes de se apagar para sempre.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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