É provável que estejamos a observar
um novo fôlego nas relações entre a banda desenhada brasileira e
portuguesa nos tempos correntes. Se durante algumas décadas essa
relação passava tão somente pela distribuição comercial de
publicações made in Brasil (de produções locais ou
norte-americanas, sobretudo), neste momento as acções desdobram-se
em exposições, autores publicados em Portugal ou títulos
brasileiros com uma recepção particular por cá. Não se poderá
falar ainda de um equilíbrio mútuo, mas essas relações estão com
efeito fortalecidas. Aurora parece ser mais um dos elementos
que contribui para esse cruzamento, dada a forma como a editora tem
procurado estabelecer contacto com agentes nacionais, inclusive este
mesmo espaço. (Mais)
Este livro é, claramente, fruto de um
esforço desviado. O autor do projecto, Felipe Folgosi,
reconhecido no seu país (e alhures) como actor, acima de tudo,
lavrou Aurora como projecto de argumento de uma longa-metragem
após a frequência de um curso dessa mesma área na UCLA. Desta
forma compreender-se-á que ele estaria votado ao “limbo de
produção”, senão mesmo à pilha de “filmes improduzíveis”,
por variadíssimas razões, das económicas às das possibilidades de
produção locais. Com efeito, e como tantas experiências de outras
equipas de autores, foi então transformado num projecto para banda
desenhada, atravessando um verdadeiro batalhão de autores, sob o
crivo do Instituto dos Quadrinhos. De acordo com a ficha técnica,
temos na linha da frente Klebs Junior, director do Instituto, que
ficou responsável pela edição, assim como a “adaptação e
layouts”, e Leno Carvalho nos desenhos, Nelson Pereira na
arte-final, cinco coloristas, Stefani Rennee, Márcio Menyz, Thiago
Ribeiro, Rodrigo Fernandes, Carlos Lopez e Marcio Freire, e ainda o
responsável pelas “letras e diagramação”, Flavio Soares...
Compreender-se-á, portanto, tratar-se de um projecto que nasceu com
Folgosi, mas cuja transformação no objecto que temos nas mãos teve
toda uma série de etapas e esforços. Mas mesmo também
compreendendo que seria um cabo dos trabalhos conseguir arranjar um
design elegante para a capa para tantos nomes, não deixa de ser
curioso, de uma forma negativa, que na capa esteja tão-somente o
nome de Folgosi, quase arvorando a sua responsabilidade única pela
emergência deste livro, Aurora. Nos tempos presentes,
em que existem novas práticas de atribuição de autoria, e atenção
para com todos os passos conducentes ao texto legível, não deixa de
ser pouco salutar esta estratégia concentrada.
Dito isto, Aurora é um projecto que se
inscreve com todo o conforto na mais mainstream das
prestações. A estrutura diegética é absolutamente clássica,
perseguindo todos aqueles elementos que a indústria cinematográfica
comercial norte-americana insiste sem ser “a fórmula certa”, à
la Robert McKee, com os três arcos o mais claramente apresentados na
trama. Seguimos um pescador português, Rafael, emigrado na Nova
Inglaterra, que é exposto a um fenómeno radioactivo cósmico,
dramático e espectacular, jogando-o num novo patamar de evolução
humana. Para além dos dramas humanos que se seguem a essa mutação
drástica, insere-se ainda uma oculta organização que mistura
contornos místicos, militares e científicos, que pretendem
aproveitar-se deste fenómeno, e das transformações ocorridas sobre
Rafael, para produzirem frutos económica a politicamente rentáveis.
Segue-se, então, não tanto um thriller, uma vez que não
chega a instalar-se um suspense cumprido por reviravoltas
inesperadas, mas antes uma cadeia da acções-reacções de alta
octanagem.
Folgosi bebe de toda uma tradição de
elementos-chave provindos da mais variada cultura popular – afinal,
o acidente “cósmico” remeter-nos-ia quer para a banda desenhada
clássica da Marvel dos anos 1960 quer para a trilogia Wold Newton
de Ph. J. Farmer, a ideia de “próximo passo da evolução humana”
recordará desde os próprios X-Men às drogas alterantes do
(péssimo) Lucy de Besson,
etc. -, cruzados depois com laivos de teorias da conspiração,
simbologias místicas e religiosas, quase parando em todas as
pit-stops de ideias necessárias ao tal bolo final. Todavia, o
problema do emprego de todos esses elementos leva a que o resultado
seja mesmo mais um conjunto desirmanado de referências que parecem
criar uma ilusão de solidez e coerência, mas que na verdade é uma
mescla pouco sustentável. A organicidade da narrativa, a necessidade
da articulação das acçôes nem sempre é conseguida. Não apenas
há todo um número de personagens que mais parecem estar a cumprir a
suas funções de actantes abstractas (o vilão é um “vilão”
mesmo, temos dois irmãos que, sendo um padre e o outro um
especialista em física, preenchem os papéis da discussão
fé-ciência, etc.), com os próprios protagonistas jamais se
coalescem como verdadeiros personagens mais redondos e completos.
Os
conceitos, de alta rentabilidade, lançam mão quer de princípios
tão generalistas que se tornam inoperantes quer de especificidades
tão claras que surgem somente como decoração, e não âncoras da
própria acção. De facto, em termos de conceitos, nem sempre é
clara a organização das referências. Por exemplo, numa cena perto
do clímax, o vilão passa por uma estátua de Kali dançando, entram
numa câmara anecóica, fazem Rafael vestir um “constritor
eléctrico”, e depois de mais um diálogo de longa exposição
ficam à frente de um acelerador de partículas para “controlar”
os poderes do ADN de Rafael, acelerador que é baptizado com o nome
de Tetragrammaton. Apesar de não desejar mais exposition,
de que o livro sofre em excesso, todas estas referências
(científicas e religiosas) não apenas não são explicadas ou
aproveitadas sequer, como aprecem ser jogadas para ganhar uma
“densidade” que jamais conquista. Além do mais, todo o
maniqueísmo que emerge do combate entre as forças faz tombar Aurora
num discurso moralizante demasiado explícito para ganhar força no
significado da obra.
A
abordagem visual de Aurora
segue toda uma série de princípios muito usuais da banda desenhada
norte-americana comercial. O desenho de Leno Carvalho tem uns
contornos plásticos e carnais que recordam um certo Kelley Jones,
mas tal como esse autor de fantasia, nem sempre há uma coesão
mantida ao longo das páginas. Para além de alguns abusos de
melodramatismo nas expressões faciais das personagens, existem mesmo
cenas (as de flashbacks,
acima de tudo) que se simplificam de uma maneira desequilibrada em
relação aos restantes desenhos. Se existe algum pragmatismo na
composição das páginas, na gestão das cenas espectaculares,
deixadas em silêncio, a matéria visual em si não tem um grau de
expressividade que o lance num campo autoral, mas tampouco da fortuna
equilibrada dos melhores autores do mesmo mainstream.
Enquanto
“fita”, Aurora
cumpre o seu papel, precisamente de filme de série B com novos
valores de produção conforme permitidos pela banda desenhada.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do volume.
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