22 de maio de 2017

Aurora. Felipe Folgosi et al. (Instituto dos Quadradinhos)

É provável que estejamos a observar um novo fôlego nas relações entre a banda desenhada brasileira e portuguesa nos tempos correntes. Se durante algumas décadas essa relação passava tão somente pela distribuição comercial de publicações made in Brasil (de produções locais ou norte-americanas, sobretudo), neste momento as acções desdobram-se em exposições, autores publicados em Portugal ou títulos brasileiros com uma recepção particular por cá. Não se poderá falar ainda de um equilíbrio mútuo, mas essas relações estão com efeito fortalecidas. Aurora parece ser mais um dos elementos que contribui para esse cruzamento, dada a forma como a editora tem procurado estabelecer contacto com agentes nacionais, inclusive este mesmo espaço. (Mais) 

Este livro é, claramente, fruto de um esforço desviado. O autor do projecto, Felipe Folgosi, reconhecido no seu país (e alhures) como actor, acima de tudo, lavrou Aurora como projecto de argumento de uma longa-metragem após a frequência de um curso dessa mesma área na UCLA. Desta forma compreender-se-á que ele estaria votado ao “limbo de produção”, senão mesmo à pilha de “filmes improduzíveis”, por variadíssimas razões, das económicas às das possibilidades de produção locais. Com efeito, e como tantas experiências de outras equipas de autores, foi então transformado num projecto para banda desenhada, atravessando um verdadeiro batalhão de autores, sob o crivo do Instituto dos Quadrinhos. De acordo com a ficha técnica, temos na linha da frente Klebs Junior, director do Instituto, que ficou responsável pela edição, assim como a “adaptação e layouts”, e Leno Carvalho nos desenhos, Nelson Pereira na arte-final, cinco coloristas, Stefani Rennee, Márcio Menyz, Thiago Ribeiro, Rodrigo Fernandes, Carlos Lopez e Marcio Freire, e ainda o responsável pelas “letras e diagramação”, Flavio Soares... Compreender-se-á, portanto, tratar-se de um projecto que nasceu com Folgosi, mas cuja transformação no objecto que temos nas mãos teve toda uma série de etapas e esforços. Mas mesmo também compreendendo que seria um cabo dos trabalhos conseguir arranjar um design elegante para a capa para tantos nomes, não deixa de ser curioso, de uma forma negativa, que na capa esteja tão-somente o nome de Folgosi, quase arvorando a sua responsabilidade única pela emergência deste livro, Aurora. Nos tempos presentes, em que existem novas práticas de atribuição de autoria, e atenção para com todos os passos conducentes ao texto legível, não deixa de ser pouco salutar esta estratégia concentrada.

Dito isto, Aurora é um projecto que se inscreve com todo o conforto na mais mainstream das prestações. A estrutura diegética é absolutamente clássica, perseguindo todos aqueles elementos que a indústria cinematográfica comercial norte-americana insiste sem ser “a fórmula certa”, à la Robert McKee, com os três arcos o mais claramente apresentados na trama. Seguimos um pescador português, Rafael, emigrado na Nova Inglaterra, que é exposto a um fenómeno radioactivo cósmico, dramático e espectacular, jogando-o num novo patamar de evolução humana. Para além dos dramas humanos que se seguem a essa mutação drástica, insere-se ainda uma oculta organização que mistura contornos místicos, militares e científicos, que pretendem aproveitar-se deste fenómeno, e das transformações ocorridas sobre Rafael, para produzirem frutos económica a politicamente rentáveis. Segue-se, então, não tanto um thriller, uma vez que não chega a instalar-se um suspense cumprido por reviravoltas inesperadas, mas antes uma cadeia da acções-reacções de alta octanagem.

Folgosi bebe de toda uma tradição de elementos-chave provindos da mais variada cultura popular – afinal, o acidente “cósmico” remeter-nos-ia quer para a banda desenhada clássica da Marvel dos anos 1960 quer para a trilogia Wold Newton de Ph. J. Farmer, a ideia de “próximo passo da evolução humana” recordará desde os próprios X-Men às drogas alterantes do (péssimo) Lucy de Besson, etc. -, cruzados depois com laivos de teorias da conspiração, simbologias místicas e religiosas, quase parando em todas as pit-stops de ideias necessárias ao tal bolo final. Todavia, o problema do emprego de todos esses elementos leva a que o resultado seja mesmo mais um conjunto desirmanado de referências que parecem criar uma ilusão de solidez e coerência, mas que na verdade é uma mescla pouco sustentável. A organicidade da narrativa, a necessidade da articulação das acçôes nem sempre é conseguida. Não apenas há todo um número de personagens que mais parecem estar a cumprir a suas funções de actantes abstractas (o vilão é um “vilão” mesmo, temos dois irmãos que, sendo um padre e o outro um especialista em física, preenchem os papéis da discussão fé-ciência, etc.), com os próprios protagonistas jamais se coalescem como verdadeiros personagens mais redondos e completos.

Os conceitos, de alta rentabilidade, lançam mão quer de princípios tão generalistas que se tornam inoperantes quer de especificidades tão claras que surgem somente como decoração, e não âncoras da própria acção. De facto, em termos de conceitos, nem sempre é clara a organização das referências. Por exemplo, numa cena perto do clímax, o vilão passa por uma estátua de Kali dançando, entram numa câmara anecóica, fazem Rafael vestir um “constritor eléctrico”, e depois de mais um diálogo de longa exposição ficam à frente de um acelerador de partículas para “controlar” os poderes do ADN de Rafael, acelerador que é baptizado com o nome de Tetragrammaton. Apesar de não desejar mais exposition, de que o livro sofre em excesso, todas estas referências (científicas e religiosas) não apenas não são explicadas ou aproveitadas sequer, como aprecem ser jogadas para ganhar uma “densidade” que jamais conquista. Além do mais, todo o maniqueísmo que emerge do combate entre as forças faz tombar Aurora num discurso moralizante demasiado explícito para ganhar força no significado da obra.

A abordagem visual de Aurora segue toda uma série de princípios muito usuais da banda desenhada norte-americana comercial. O desenho de Leno Carvalho tem uns contornos plásticos e carnais que recordam um certo Kelley Jones, mas tal como esse autor de fantasia, nem sempre há uma coesão mantida ao longo das páginas. Para além de alguns abusos de melodramatismo nas expressões faciais das personagens, existem mesmo cenas (as de flashbacks, acima de tudo) que se simplificam de uma maneira desequilibrada em relação aos restantes desenhos. Se existe algum pragmatismo na composição das páginas, na gestão das cenas espectaculares, deixadas em silêncio, a matéria visual em si não tem um grau de expressividade que o lance num campo autoral, mas tampouco da fortuna equilibrada dos melhores autores do mesmo mainstream.

Enquanto “fita”, Aurora cumpre o seu papel, precisamente de filme de série B com novos valores de produção conforme permitidos pela banda desenhada.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.  

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