12 de maio de 2017

Les têtards. Pascal Matthey (L’employé du moi)

Ao olharmos agora para o conjunto de alguns dos seus livros, compreendemos que Pascal Matthey tem na autobiografia uma das suas preocupações centrais. Este pequeno volume vem na sequência de Le verre de lait, Pascal est enfoncé, do qual falámos largamente aqui, de Du shimmy dans la vision, e de outras pequenas peças espalhadas pelas mais diversas antologias. Conforme o que já havíamos discutido a propósito desse livro anterior, a equação entre autobiografia, auto-ficção, desvio autobiográfico, versão, etc. é algo elástica, e é tão necessária na sua categorização ou análise quanto supérflua na sua leitura. Depende, portanto, da escala de atenção. (Mais) 

Este livro executa a sua narrativa da forma intervalar já consabida do autor, em que menos importa uma dinâmica accional, a partição das acções em momentos activos legíveis do que uma articulação de cenas, ora afastadas no tempo, ora associáveis por elos lógicos, ora ainda pelas circunstâncias espaciais. De certo modo, Matthey, assim como Simon Grennan em Dispossession e alguns outros autores, exploram formas de distribuição dos tempos e das transições de vinhetas que tem menos a ver com uma suposta “fluidez narrativa natural” do que o agenciamento de intensidades da memória. Como efeito, apesar de existirem umas quantas linhas de desenvolvimento narrativo e temático em Les têtards – as viagens de férias escolares à montanha, ao campo, à casa da avó e os momentos escolares em que se nutrem amizades e até um primeiro amor – e uma metáfora central a partir de um evento – a captura de girinos num rio, levados para casa até ao seu desenvolvimento maior e devolução à natureza -, o grande coração do projecto está na capacidade associativa do autor.

Essas associações podem ser muitas vezes formais. São por demais os momentos em que são empregues círculos no centro das vinhetas (quase sempre apresentadas numa grelha inamovível de 2 x 3, e de quando em quando uma splash page), recordando algumas das estratégias de “transposições cinematográficas” de Watchmen. Não há nada de gratuito nessas opções, como o caso desta página, em que a tarte de morango, o botão do jogo Vida, e os queijinhos do Trivial Pursuit todos remetem às tardes passadas nesses momentos de lazer. A mesma ordem de ideias temporais se verifica nos outros passos, mesmo que haja uma maior ou menor concentração dos “mesmos” gestos ou “mesmos” eventos. Mas a associação é usualmente mais livre desse tipo de elos lógicos, procurando antes uma busca por uma espécie de ambientação. Aliás, se seguirmos a tipologia de transições apresentada por McCloud, particularmente útil, é de facto a de “ambiente-a-ambiente” que muitas vezes é seguida por Matthey. Todavia, em vez de servir tão-somente para criar uma espécie de establishing shot da acção que depois se desenvolveria nessa unidade espaço-temporal, são essas mesmas transições, esse trânsito, essa coordenação, que faz surgir a respiração das acções de Les têtards.

Matthey continua a utilizar toda uma série de referências a objectos particulares que não apenas criam uma rede referencial aos anos 1980 na Suíça (o seu ponto de origem), como provavelmente também contribuem para a emergência de uma série de objectos transaccionais, no seu sentido psicanalítico, que reforçam a estrutura e força da narrativa. 

Se encontramos os jogos acima descritos, mas também marcas de chocolates e sumos, práticas culturais suíças, tipos de mochilas e roupa, etc., é a própria banda desenhada que surge como uma espécie de âncora às acções. Elas servem de modelo comportamental ao jovem Pascal, mas igualmente como filtro de compreensão do mundo. Nesta outra prancha, vemos como o jovem rapaz imita Joe Dalton. Outras referências (e as bandas desenhadas infanto-juvenis preferidas do autor, como ele tem admitido em muitos encontros públicos) são as Les tuniques bleues e Yoko Tsuno, e é sobretudo esta última série, de Roger Leloup, um dos mestres da segunda geração da linha clara belga, que serve de catalisador de algumas experiências emotivas e interiores do pequeno Pascal. É curioso que quando o mesmo ocorre no interior de ficções com referências mais “adultas”, ou de maior circulação e exposição cultural (leia-se, “i.e. Alison Bechdel/Fun Home”), estas alianças se tornem imediatamente pasto para profunda reflexão sobre as mediações ou mesmo remediações possíveis, ao passo que se trabalhadas no interior deste trânsito entre “bd popular” e “bd mais desconhecida”, não só se instalará o silêncio como e perderão igualmente as hipóteses de tentar compreender a forma como estes textos podem ser requalificados de maneiras significativas.


 “Têtard” é como se diz em francês girino, mas se a palavra portuguesa tem a sua origem etimológica no descritivo grego original, a francesa significa literalmente “cabeçudo”. Isto permite-nos duas associações, que não seriam admitidas em francês. A primeira é compreender essa abordagem estilística e visual de Matthey se centrar em todas as personagens com um estilo “cute”, lá está, de bebés cabeçudos. A segunda teria a ver com uma espécie de casmurrice e obsessão com determinados tipos de objectos, momentos da vida, e até formas de tratamento, que é o que está no centro do livro. 

Sem comentários: