20 de setembro de 2017

Mutations. João Fazenda (auto-edição)

Depois de Trama e Songs (e outras produções anteriores), João Fazenda retorna a esta espécie de balanço ou caderno de apontamentos anual com uma pequena colecção de desenhos. Faz todo o sentido que um desenhador da craveira de Fazenda procure, para além dos trabalhos mais articulados com propósitos específicos, projectos que nascem tão-somente de uma vontade de desenhar, unindo-o a grandes nomes do desenho em si, como Stuart de Carvalhais, Saul Steinberg, Paul Hogarth ou Topor, entre tantos outros, e os maravilhosos opúsculos, livros, livrinhos, tomos, colecções que deixaram para trás. E que não pareça uma hipérbole tamanha comparação, pois é com efeito o prazer e a verve do próprio desenho, da pesquisa e do encontro que dele nasce, que Mutations dá conta. (Mais)

Ao contrário, parece-nos, dos livros anteriores, Mutations parece seguir uma linha de desenvolvimento temático interno, uma espécie de desdobramento. Cada página apresenta um desenho individual e, à partida, ou na superfície, não há em comum a personagem, o espaço, ou até o tipo de actividade, continuando-se assim a uma perspectiva global, da parte do autor, do mundo humano. Existem personagens isoladas e outras em interacção, há momentos de lazer e de labor, tempos pausados e de máxima actividade, paisagens urbanas e paisagens naturais, simples apontamentos talvez nascidos da observação diurna e construções fantasiosas. As duas primeiras imagens parecem não ter relação: um casal com um cão observando uma pintura abstracta, e depois um homem dormindo entre árvores altas, enquadrando ao fundo montes e montanhas. A terceira imagem mostra um homem a repousar no chão, de olhos abertos, a contemplar uma forma irregular, cheia de facetas e ângulos irregulares. Poderia ser uma pedra, ou uma folha de papel amachucada. A partir das páginas seguintes, esta mesma forma, ou similares, surgem em variados papéis: cálices de rosa, alimento de pássaros, um cometa, um buraco no chão, e depois formas que poderão mesmo ganhar vida, como esta figura feminina caminhando.

O autor coloca como epígrafe deste volume o diálogo entre Hamlet e Polónio sobre as formas das nuvens, em que o príncipe vai descrevendo variamente as mesmas, e Polónio vai concordando. Não será muito produtivo entrarmos em detalhes do papel que esse diálogo terá na economia simbólica e política da peça, e concentremo-nos então na ideia central de que uma forma pode ser interpretada como pertencendo a várias descrições e assim, necessária e associativamente, a funções, papéis, valores, etc. A procissão de imagens, personagens e cenas então que se estendem em Mutations poderão querer dar conta de um só objecto central que se vai desdobrando, mutando, transformando, deslizando de um descritivo para o outro. Isso permite não apenas sublinhas as diferenças de grau entre cada uma das unidades gráficas apresentadas, mas força-nos a pensar em qual dos traços que as une comunitariamente. Porque talvez seja esse mesmo o propósito central do livro: mostra uma comunidade.

Os desenhos são efectuados, pelo que entendemos, com um lápis de grafite de ponta grossa, com gestos decididos e que nos fazem imaginar quase terem sido feitos de uma só vez, sem hesitações. Todas as linhas são debuxadas de um rasgo, sem correcções ou hesitações, moldando as formas como nascem. Existem alguns pequenos apontamentos de possíveis dedadas com a grafite, borrando uma ligeira mancha que dá textura e volume a um detalhe das figuras. Numa viva e diversa galeria de personagens.


Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta da publicação.

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