Depois de Trama e Songs
(e outras produções anteriores), João Fazenda retorna a esta
espécie de balanço ou caderno de apontamentos anual com uma pequena
colecção de desenhos. Faz todo o sentido que um desenhador da
craveira de Fazenda procure, para além dos trabalhos mais
articulados com propósitos específicos, projectos que nascem
tão-somente de uma vontade de desenhar, unindo-o a grandes nomes do
desenho em si, como Stuart de Carvalhais, Saul Steinberg, Paul
Hogarth ou Topor, entre tantos outros, e os maravilhosos opúsculos,
livros, livrinhos, tomos, colecções que deixaram para trás. E que
não pareça uma hipérbole tamanha comparação, pois é com efeito
o prazer e a verve do próprio desenho, da pesquisa e do encontro que
dele nasce, que Mutations dá conta. (Mais)
Ao contrário, parece-nos, dos livros
anteriores, Mutations parece seguir uma linha de
desenvolvimento temático interno, uma espécie de desdobramento.
Cada página apresenta um desenho individual e, à partida, ou na
superfície, não há em comum a personagem, o espaço, ou até o
tipo de actividade, continuando-se assim a uma perspectiva global, da
parte do autor, do mundo humano. Existem personagens isoladas e
outras em interacção, há momentos de lazer e de labor, tempos
pausados e de máxima actividade, paisagens urbanas e paisagens
naturais, simples apontamentos talvez nascidos da observação diurna
e construções fantasiosas. As duas primeiras imagens parecem não
ter relação: um casal com um cão observando uma pintura abstracta,
e depois um homem dormindo entre árvores altas, enquadrando ao fundo
montes e montanhas. A terceira imagem mostra um homem a repousar no
chão, de olhos abertos, a contemplar uma forma irregular, cheia de
facetas e ângulos irregulares. Poderia ser uma pedra, ou uma folha
de papel amachucada. A partir das páginas seguintes, esta mesma
forma, ou similares, surgem em variados papéis: cálices de rosa,
alimento de pássaros, um cometa, um buraco no chão, e depois formas
que poderão mesmo ganhar vida, como esta figura feminina caminhando.
O autor coloca como epígrafe deste
volume o diálogo entre Hamlet e Polónio sobre as formas das nuvens,
em que o príncipe vai descrevendo variamente as mesmas, e Polónio
vai concordando. Não será muito produtivo entrarmos em detalhes do
papel que esse diálogo terá na economia simbólica e política da
peça, e concentremo-nos então na ideia central de que uma forma
pode ser interpretada como pertencendo a várias descrições e
assim, necessária e associativamente, a funções, papéis, valores,
etc. A procissão de imagens, personagens e cenas então que se
estendem em Mutations poderão querer dar conta de um só
objecto central que se vai desdobrando, mutando, transformando,
deslizando de um descritivo para o outro. Isso permite não apenas
sublinhas as diferenças de grau entre cada uma das unidades gráficas
apresentadas, mas força-nos a pensar em qual dos traços que as une
comunitariamente. Porque talvez seja esse mesmo o propósito central
do livro: mostra uma comunidade.
Os desenhos são efectuados, pelo que
entendemos, com um lápis de grafite de ponta grossa, com gestos
decididos e que nos fazem imaginar quase terem sido feitos de uma só
vez, sem hesitações. Todas as linhas são debuxadas de um rasgo,
sem correcções ou hesitações, moldando as formas como nascem.
Existem alguns pequenos apontamentos de possíveis dedadas com a
grafite, borrando uma ligeira mancha que dá textura e volume a um
detalhe das figuras. Numa viva e diversa galeria de personagens.
Nota final: agradecimentos ao autor,
pela oferta da publicação.
Sem comentários:
Enviar um comentário