Este pequeno fascículo de uma vintena
de páginas pode ser lido como se se tratasse de um breve opúsculo
de poesia. Tão-somente essa poesia emerge não apenas nas frases
escritas à mão em curtíssimos parágrafos a cada página, mas na
sua integração com as composições gráficas que carregam. Há uma
voz na primeira pessoa, mas que se expressa por verbos conjugados,
elidindo os traços de um pronome assertivo. As frases descrevem uma
casa, as suas divisões, os espaços atravessados, as imagens revelam
pequenos objectos que lhe pertencem: uma porta, uma chave, uma
cadeira, alguns objectos naturais como troncos de árvore e
montanhas, e peças de xadrez, que emerge como uma metáfora
secundária desta travessia. (Mais)
Não valerá tentar desenterrar um
sentido narrativo das frases com a esperança de ter, no fim dessa
operação violenta e normalizadora, uma “história”. O propósito
do autor, nesta sua lavra de palavras e imagens, é criar uma ideia
de uma ascensão de sentido, uma libertação de uma ideia, na
personagem que apresenta. Para todos os efeitos, essa figura é a de
uma mulher, que poderá ser identificada como a “rainha”, quer
pela sua liberdade de movimento, quer por confissão de uma voz
desincorporada e por sua vez identificada, pela própria
protagonista, como tendo partido do tabuleiro. A primeira imagem
mostra o seu rosto, de olhos fechados, e uma tarja branca sobre a
boca. A última repete-a com exactidão, mas os olhos estão abertos.
O diálogo com a epígrafe de Jung - “Quem olha para fora sonha,
quem olha para dentro desperta” - não poderia ser mais claro,
mesmo que a sua aplicabilidade (a uma protagonista mais
literariamente desenvolvida, nas expectivas normativas da narração,
interpretações autobiografistas, etc.) esteja aquém de uma
explicação, que se tornaria ridícula redução.
Fabio Q, que assina trabalhos mais
comerciais como Efe Queiroz, trabalha aqui numa alargada tradição
do campo expandido da banda desenhada que permite o emprego de
instrumentos pictóricos e com grandes traços de materialidade. As
imagens são seguramente pintadas, talvez a acrílico sobre tela,
aplicadas com gestos bruscos, criando ora expansivas áreas de cor –
as quais guardam as suas intensidades originais, salvo os locais em
que são invadidas a golpe por outras intervenções – ora golpes
curtos, e provavelmente havendo posteriores adições com raspagens,
arrastamentos, descolagens e talvez mesmo desenho (a carvão?)
sobreposto. Se existem composições que fazem lembrar colagens ou
carimbos, uma análise cuidada mostra ser tudo pintado, mas mesmo
assim convidaria a essa tal integração, que tanto poderia englobar
um artista tão inventivo e plural como Barron Storey como autores de
banda desenhada mais convencional com estas abordagens, como David
Mack.
Onírico, então, cria através destas
imagens, mesmo que com uma valência individual, uma cadeia
direccionada pelo passeio da rainha, mas também pelas formas dos
fundos/planos geométricos no seu interior, cujos ângulos encaminham
o olhar na direcção da leitura.
Um livro anterior, Janela da Alma,
lançava uma pequena série de jogos lúdicos entre imagens de
sujeitos e as suas sombras projectadas, as quais revelariam sempre
algo de fantasioso, irreal mas mais significativo em termos do
segundo sentido que se pretendia (um centauro, um monstro...). De
certa forma, é exactamente o contrário de alguns livros
infanto-juvenis que primeiro mostram uma sombra, que leva a uma
interpretação, para depois se revelar algo totalmente diferente, as
mais das vezes com efeitos humorísticos, surpreendentes ou
divertidos. Neste caso, é como se a sombra carregasse algo de oculto
ao olho nu, mas em termos visuais o que é peculiar é o facto de
mostrar algo que estava antes mais visível ainda. Ou seja, o autor
não esconde informação para depois a revelar, mas antes apaga-a,
oculta-a, e ainda assim leva-a para um novo nível.
Se não existem esses jogos de
revelação/ocultação em Onírico, ainda assim podemos
exercer sobre as imagens desde segundo livro um mesmo tipo de
exercício mental de manipulação das formas. As manchas angulares
levam à ideia de uma espécie de Tangram, o que recoloca a ideia de
jogo de peças manipuláveis na linha da frente. Se a rainha é a
peça central que prende a atenção, e todo o livro é legível como
um tabuleiro atravessável (e pense-se nas nossas considerações
sobre o universo de Mattia Denisse de que demos conta], a partida em
si, as estratégias de abertura e de conquista, essas pertencerão ao
leitor.
Nota final: agradecimentos ao autor,
pela oferta das suas publicações.
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