19 de setembro de 2017

Onírico. Fabio Q (auto-edição)

Este pequeno fascículo de uma vintena de páginas pode ser lido como se se tratasse de um breve opúsculo de poesia. Tão-somente essa poesia emerge não apenas nas frases escritas à mão em curtíssimos parágrafos a cada página, mas na sua integração com as composições gráficas que carregam. Há uma voz na primeira pessoa, mas que se expressa por verbos conjugados, elidindo os traços de um pronome assertivo. As frases descrevem uma casa, as suas divisões, os espaços atravessados, as imagens revelam pequenos objectos que lhe pertencem: uma porta, uma chave, uma cadeira, alguns objectos naturais como troncos de árvore e montanhas, e peças de xadrez, que emerge como uma metáfora secundária desta travessia. (Mais)

Não valerá tentar desenterrar um sentido narrativo das frases com a esperança de ter, no fim dessa operação violenta e normalizadora, uma “história”. O propósito do autor, nesta sua lavra de palavras e imagens, é criar uma ideia de uma ascensão de sentido, uma libertação de uma ideia, na personagem que apresenta. Para todos os efeitos, essa figura é a de uma mulher, que poderá ser identificada como a “rainha”, quer pela sua liberdade de movimento, quer por confissão de uma voz desincorporada e por sua vez identificada, pela própria protagonista, como tendo partido do tabuleiro. A primeira imagem mostra o seu rosto, de olhos fechados, e uma tarja branca sobre a boca. A última repete-a com exactidão, mas os olhos estão abertos. O diálogo com a epígrafe de Jung - “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta” - não poderia ser mais claro, mesmo que a sua aplicabilidade (a uma protagonista mais literariamente desenvolvida, nas expectivas normativas da narração, interpretações autobiografistas, etc.) esteja aquém de uma explicação, que se tornaria ridícula redução.

Fabio Q, que assina trabalhos mais comerciais como Efe Queiroz, trabalha aqui numa alargada tradição do campo expandido da banda desenhada que permite o emprego de instrumentos pictóricos e com grandes traços de materialidade. As imagens são seguramente pintadas, talvez a acrílico sobre tela, aplicadas com gestos bruscos, criando ora expansivas áreas de cor – as quais guardam as suas intensidades originais, salvo os locais em que são invadidas a golpe por outras intervenções – ora golpes curtos, e provavelmente havendo posteriores adições com raspagens, arrastamentos, descolagens e talvez mesmo desenho (a carvão?) sobreposto. Se existem composições que fazem lembrar colagens ou carimbos, uma análise cuidada mostra ser tudo pintado, mas mesmo assim convidaria a essa tal integração, que tanto poderia englobar um artista tão inventivo e plural como Barron Storey como autores de banda desenhada mais convencional com estas abordagens, como David Mack.

Onírico, então, cria através destas imagens, mesmo que com uma valência individual, uma cadeia direccionada pelo passeio da rainha, mas também pelas formas dos fundos/planos geométricos no seu interior, cujos ângulos encaminham o olhar na direcção da leitura.

Um livro anterior, Janela da Alma, lançava uma pequena série de jogos lúdicos entre imagens de sujeitos e as suas sombras projectadas, as quais revelariam sempre algo de fantasioso, irreal mas mais significativo em termos do segundo sentido que se pretendia (um centauro, um monstro...). De certa forma, é exactamente o contrário de alguns livros infanto-juvenis que primeiro mostram uma sombra, que leva a uma interpretação, para depois se revelar algo totalmente diferente, as mais das vezes com efeitos humorísticos, surpreendentes ou divertidos. Neste caso, é como se a sombra carregasse algo de oculto ao olho nu, mas em termos visuais o que é peculiar é o facto de mostrar algo que estava antes mais visível ainda. Ou seja, o autor não esconde informação para depois a revelar, mas antes apaga-a, oculta-a, e ainda assim leva-a para um novo nível.


Se não existem esses jogos de revelação/ocultação em Onírico, ainda assim podemos exercer sobre as imagens desde segundo livro um mesmo tipo de exercício mental de manipulação das formas. As manchas angulares levam à ideia de uma espécie de Tangram, o que recoloca a ideia de jogo de peças manipuláveis na linha da frente. Se a rainha é a peça central que prende a atenção, e todo o livro é legível como um tabuleiro atravessável (e pense-se nas nossas considerações sobre o universo de Mattia Denisse de que demos conta], a partida em si, as estratégias de abertura e de conquista, essas pertencerão ao leitor.

Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta das suas publicações.

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