Este é o primeiro projecto de
monografia apresentado pela parceria da G. Floy e a ComicHeart,
depois do primeiro volume do antológico The Lisbon Studio Series,
pretendendo uma oferta de banda desenhada contemporânea portuguesa
que possa apelar a um largo público interessado em abordagens mais
populares, imediatas, narrativamente clássicas e claras.
Materialmente falando, trata-se de um objecto de luxo, com todos os
pormenores de um álbum, num formato que remete para os “prestígio”
ou “deluxe” do mercado norte-americano, e apresentando um número
de páginas suficiente para satisfazer a leitura, ainda que crie mais
apetite do que o sacie, imaginando-se (ou sabendo mesmo) haver
possíveis desenvolvimentos. (Mais)
Ricardo Venâncio já havia apresentado
esta personagem ao grande público em várias ocasiões, como por
exemplo um pequeno desdobrável, histórias curtas, “promos” na
internet, exposições, mas este volume será certamente a
apresentação mais alargada possível a um público bem mais
significativo.
Se podemos dizer que o livro reúne
três histórias, a verdade é que haveria algum desequilíbrio nessa
interpretação. Afinal de contas, temos uma espécie de introdução
que instaura o grande mito de criação do “mundo” que o autor
idealizou, e introduz a personagem numa acção simples. Ocupando 6
páginas, as quatro primeiras traduzem por imagens a grande viagem
dos deuses primordiais Anuar e Rauna, a emergência do cosmos, do
tempo, da Terra e suas criaturas (numa amálgama e decalque de vários
mitos euro-orientais), e as segundas uma espécie de demonstração
sumária das capacidades guerreiras do protagonista. No final do
volume apresenta-se uma história curta de 4 páginas, que havia sido
publicada anteriormente em inglês, e que é uma espécie de anedota
curta, muito próxima do humor típico do Hellboy de Mignola,
misturando elementos de fantasia e horror para criar um efeito de
surpresa pelo divertimento. No entanto, não é um contributo
decisivo para a construção de Hanuram, quer no que diz respeito à
sua personalidade quer à sua destreza. É a história central,
portanto, que recupera o sub-título do volume, de 28 páginas, que
apresenta o sumo do volume.
Hanuram é um guerreiro com
características curiosas, pelo seu porte, não necessariamente
musculado, a sua careca, e o facto de estar enclausurado numa
armadura dourada (daí o cognome). De certa forma, recordará
Volstagg, por exemplo, mas apesar desse tratamento pouco
convencional, Ricardo Venâncio parece querer ofertar-nos um
guerreiro implacável e invencível, não fossem as suas aparentes
fraquezas (para já, o álcool). Não sendo ainda suficiente para
compreender todos os contornos da personalidade da personagem, já
que ela interage construtivamente com poucas outras, e quase não
estabelece diálogo com nenhuma (na verdade, parece que toda a “faixa
verbal” terá sido acrescentada posteriormente, havendo uma vontade
original de explorar as possibilidades da banda desenhada “muda”),
acreditamos que de facto haverá contornos de humor a explorar num
futuro hipotético. Fica portanto a sensação de que A fúria
não deixa de ser sobretudo um volume introdutório a um projecto de
worldbuilding que poderá vir a desdobrar-se.
Em 2009, o autor havia-nos ofertado o
primeiro volume de Defier, uma saga que não teve
continuidade, mas Hanuram herda toda uma série de
características, sobretudo em termos de género, dinâmica das cenas
de acção e de composição de páginas, ainda que mais dextras.
Algumas páginas têm um número pequeno de vinhetas, optando-se por
estratégias de arranjo muito equilibrado, mas Venâncio controla
esses efeitos, como esta em que a vinheta central poderá ocupar um
momento temporal tanto interno como externo às cenas circundantes.
Outros aspectos são bem distintos,
começando pelas cores digitais, as quais, se são mais vívidas, e
ricas, não deixam de deixar visíveis a gestualidade dos traços
primários, dando uma patina imediata de sketchbook muito
interessante, mas também deixando que algumas cenas “negras” ou
“nocturnas” tomem conta em demasia da figuração. Esta última
titubeia ligeiramente por o autor utilizar estruturas “ósseas”,
digamos assim, similares para todas as personagens, tornando-os
aparentados uns com os outros, independentemente das restantes
características físicas serem bem diferentes. Em parte, isso terá
a ver com a “assinatura gráfica” de um artista, mas isso leva a
que haja uma relativa limitação na expressividade dos rostos
apresentados, sejam eles humanos, deuses ou até as criaturas
fantásticas que se colocam no caminho de Hanuram.
Ricardo Venâncio coloca todas as três
peças, seja como for, numa espécie de in media res (como já
o havia feito anteriormente), com Hanuram “a caminho”. Não
sabemos de onde parte nem o que pretende alcançar, mas há algo na
sua movimentação que o coloca numa rota de colisão com os grandes
deuses deste mundo. A fúria é assim um início auspicioso e
perigoso para a personagem...
Nota final: agradecimentos aos
editores, pela oferta do volume.
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