Fruto da estada de Tiago Baptista na
cidade de Berlim durante três meses de Inverno, numa residência
artística, este livro reúne toda uma série de pequenas histórias
que mais devem ser entendidas como impressões do que propriamente
como narrativas. Não se pode dizer que haja aqui uma assunção de
uma estrutura coerente ou subsumida à explicitação, como ocorre em
travelogues à la Guy Deslile ou outros, por exemplo. Tampouco
se poderá ler Berlim como se se tratasse de um registo
diarístico, já que a maioria das peças dão a ideia de uma certa
distância temporal, après le fait, sobre essa estada. Aliás,
há muitos momentos em que a voz do autor torna patente a dúvida, o
esquecimento, a falta de certeza. Isso não fragiliza o acto de
memória do livro, bem pelo contrário torna-o um acto mais humano. (Mais)
O título é, naturalmente, um recurso
estilístico que pretende instalar uma ideia complexa de antítese,
metáforas e paradoxos. Estabelecer qualquer relação directa com o
projecto de ficção historiográfica de Jason Lutes, Berlin,
não se revelaria particularmente profícuo, uma vez que as
afinidades estilísticas entre esse autor e Tiago Baptista não são
significativas; todavia, recordemos que, até à data, os sub-títulos
de cada um dos volumes de Lutes descrevem como que a matéria de que
aquela cidade (ao tempo de Weimar) era constituída: “cidade de
pedras”, “cidade do fumo” e “cidade da luz”. Essas matérias
eram depois topicalizadas e empregues durante a narrativa, e que se
tematizavam conforme os “estádios” que o autor explora nas
transformações política-sociais no início da década de 1930.
Poder-se-ia, então, aproveitar o balanço desse outro acto criativo
para interrogar em que medida as “sombras” surgem tratadas de
formas similares no projecto de Baptista.
Em vários momentos, o autor
arregimenta o tema da luz para estruturar os pequenos nódulos
narrativos que apresenta. Poderá falar do poderoso reflexo da luz
lunar sobre o manto de neve, a cor do lago congelado em pleno inverno
e a associação que faz ao cimento, tecendo depois ligações aos
vários edifícios que vai mencionando e compõem a sua própria
cartografia da cidade (e a que o Muro, que não precisa de mais
qualificativos, não é alheio), e, na peça “Sem sombras”, a
própria ausência de luz que provocaria o nítido contorno dos
objectos projectados. Sem sombras significa também sem luz, ou então
aponta à existência de uma contínua, ininterrupta, pesada,
inexorável sombra.
Essa sombra também se pode revestir
com os papéis da História e do Poder Político. É inevitável,
ainda, pensar-se e caminhar-se na capital alemã sem se experienciar
a grande ferida da Europa no século XX, e percebemos os pequenos
bailes que o autor faz em torno desse imenso episódio. Por outro
lado, contemporaneamente, seja essa imagem forçada, exagerada ou
pouco matizada, a percepção da Alemanha como o coração de um
projecto de uma Europa federal centralizada não é fácil de evitar.
Tiago Baptista nunca cria discursos directamente sobre esses temas, e
depois procurando uma posição hipotética numa economia de
posições. Constata os factos da sua experiência, seja ela
atravessar uma paisagem coberta de neve e não saber ler as pegadas
de coelhos, seja a escolha de um local para comer, ou seja mesmo uma
espécie de desaparição no ponto de fuga de um caminho infinito ao
longo do Muro de Berlim...
Conforme os projectos anteriores do
autor, desde os seus primeiros fanzines, há aqui alguma flutuação
estilística. Se se pensaria, com projectos tais como Imagem
Viagem, a procura por uma certa homogeneidade, expectável numa
certa domesticação propiciada pela produção de um objecto
“livro”, Tiago Baptista recusa essa pensamento, deixando ainda em
aberto as possibilidades de flutuações, contaminações e pesquisas
diversas na prestação gráfica conforme as necessidades. A primeira
parte, “Culturia”, que funciona como uma espécie de establishing
shot das condições da permanência de Baptista na sua
residência artística em Berlim, surge como uma espécie de câmara
parada sobre um mesmo espaço, quase à la Here, de Richard
McGuire, mas tão-somente apresentando os vários intervenientes
daquele local, e com uma assinatura mais desprendida na figuração.
Uma peça quase final, “Der Berliner Traum”, traduz um sonho com
uma abordagem estilizada ao extremo, sem grandes preocupações de
naturalismo, e que faz tanto recordar Amanda Baeza como aquela página
de banda desenhada que Freud publicou em A interpretação dos
sonhos(o que nos parece perfeitamente adequado). E “Herr
Sellery”, se em todos os aspectos se apresenta como uma história
realista, monta um episódio cómico-absurdo que acaba por ser uma
espécie de programa do próprio acto criativo de Tiago Baptista, ou
pelo menos do magma de dúvidas que o consomem.
A esmagadora maioria do livro, porém,
apresenta aquela figuração realista, composta, com contornos
grossos a negro e um interior mais diáfano, que dão às figuras,
por vezes, o ar de vitral, e por vezes próxima da produção de
pintura de Baptista, que se instalará numa certa recuperação do
monumental, do histórico, do dramático e do simbólico próximo a
outros autores (como Gonçalo Pena). No entanto, o autor lança-as
numa grande variedade de estratégias de expressão e de composição.
As intervenções de tinta salpicada, aguadas expressivas,
aproveitamentos de decalques, o uso de tramas mecânicas, a irónica
sobreposição de “postais” de um passado organizado e a
desolação presente, possíveis raspagens, o emprego de colagens, o
surgimento súbito de um desenho “cristalizado” de Catarina
Domingues, a mistura entre desenhos a um grafite mais diáfano e
tinta sólida, sublinham essa variedade, assim como a completa
precisão com que experimenta vários modos de estruturar páginas,
desde as sequências de spreads a grelhas inexoráveis, quer
de vinhetas quadrangulares quer de cantos arredondados, ou prevendo
várias formas de explorar a retórica das vinhetas. A escrita, à
mão, talvez com caneta, dá uma certa ideia de caligrafia e
correspondência pessoal a todo o tom narrativo, de missiva directa
ao leitor.
Algumas das peças já haviam sido
publicadas anteriormente, uma delas em Zona de Desconforto,
fazendo parte precisamente da colecção em que este título agora se
encontra, e regressando à ideia desta mesma série de livros de dar
a ver uma certa ideia de trânsito mas desprendida totalmente das
mais usuais linhas da “literatura de viagens” e muito menos
associada ao “encómio do turismo”. O objectivo deste livro,
afinal, não é conhecer a cidade de Berlim, nem tampouco compreender
“as experiência de Tiago Baptista em Berlim”, mas antes
compreender como é que essa experiência se abre a toda uma série
de interrogações de identidade própria, alheia, global, cultural e
política. Baptista não envereda jamais num discurso directamente
panfletário, como dissemos, preferindo ou um certo grau de
ambiguidade ou deixar que os não-ditos se instalem de modo
suficiente a obrigar o leitor a instalar-se nos interstícios do que
se assinala como silêncio, esquecimento, precariedade, miséria, e
também consciência. São marcantes sobretudo os relatos de “Jenin”
e “Maranda”, ambos mostrando locais em que o autor-protagonista
come e vai ao encontro não somente da pessoa que ali trabalha
(respectivamente, um palestiniano da Cisjordânia e um português de
Tondela) como nesse diálogo compreende a distância da sua
experiência com a dessas outras pessoas, assinalando não somente
mecanismos de empatia como de auto-compreensão de um certo
privilégio.
Ao contrário de livros que pretendem
fechar um sentido e dar ao leitor uma sensação de equilíbrio
humanista, em que uma suposta utopia de grande família seria
possível, Baptista quer mostrar a aguda distância que separa cada
ser humano, nos seus mundos específicos, assim como a rugosa textura
do próprio mundo, ou do pouco mundo, que se consegue estabelecer
como comum. Nesse sentido, quase se poderia depreender que a visão
de Baptista se poderia estender de uma mesma forma sobre outra
cidade, quem sabe sobre as próprias cidades portuguesas em que viveu
ou vive. Mais uma vez se regressando à ideia de ser um livro capaz
de demonstrar, com todos os seus defeitos, os defeitos da própria
condição humana.
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