Dividido
em quatro breves mas concentrados capítulos, esta curta narrativa de
umas 80 pranchas recupera alguma da candura do ambiente da infância
e as fantasias que se criam em torno do desconhecido e da aventura.
Passado numa pequena escola de província, à qual chega uma nova
estudante, Tangerina, que parece guardar um segredo, o jovem Spike
tenta ultrapassar as claras defesas sociais montadas pela rapariga,
para poder compreender um “monstro” que ela desenha
obsessivamente no seu caderno, e que ela diz ter escapado de um sonho
e precisa de ser re-capturado. (Mais)
Elaborando-se
uma espécie de variação sobre elementos reminiscentes de contos
tradicionais, de uma certa linha da animação japonesa, séries de
televisão e de narrativas de horror, No caderno da Tangerina pode
provavelmente oferecer dois níveis imediatos de leitura, sendo o
primeiro o literal e o segundo o psicanalítico. O primeiro remeteria
este livrinho para o género da fantasia negra, mas sem jamais cair
no horror profundo, tratando-se de algo que poderá ser lido por
leitores mais jovens, e que lhes permitirá enfrentar emoções ainda
estranhas, novas mas ao mesmo tempo fascinantes, precisamente pelo
perigo que prometem. Nessa sentido, haverá aspectos de épico, de
aventura, de heróico na maneira como Spike se “atreve” a
aproximar de Tangerina e até “atravessa a floresta” atrás dela,
recuperando toda uma série de estruturas narrativas clássicas. Não
há propriamente um combate, evitando-se assim papéis tradicionais
do “rapaz-herói” e da “rapariga-protegida”, mas tampouco uma
inversão básica dessa fórmula, transformando anyes a estrutura
actancial do livro numa refrescante diferença. Até certo ponto,
poder-se-ia dizer que há até algum grau de irresolução ou
ambivalência na forma como a intriga se “resolve”, e é isso o
que alavanca a próxima leitura.
Apesar de
não se estender de forma alguma a novela familiar quer de Tangerina
quer de Spike para a sua esfera familiar. A atenção da narrativa
fica circunscrita às relações passadas na escola, no recreio e nos
descampados para lá da cerca, mas o leitor arguto poderá tentar
lançar de imediato possibilidades interpretativas que o levará a
crises mais profundas. Tratar-se-á o monstro de uma tradução
possível de um trauma? A um nível metafórico, somente, simbólico
e partilhado pela empatia de Spike para com Tangerina, ou estaremos
mesmo face a uma desarrumação a nível psicológico? E o que pensar
precisamente dessa empatia tão significativa entre Spike e
Tangerina, que mais se pauta por uma cumplicidade não-dita, e até
negada pelos mesmos, do que discutida verbal e logicamente? A aliança
entre os protagonistas torna-se uma das pedras de toque desta pequena
e primeiraobra da autora.
O desenho
de Rita Alfaiate é algo devedor à mangá, mas de uma forma difusa,
quase “natural”, sendo mais fruto da própria natureza da
aprendizagem ou dos contornos mais usuais dos jovens artistas do que
de uma decisão consumada. Há uma certa urgência, simplicidade,
descomprometimento no desenho de Alfaiate que tem a ver com uma certa
atitude “de caderno escolar”, o que não deixa de ser apropriado.
E apesar das estratégias de simplificação (ausência de cenários
e/ou isolamento das personagens nas vinhetas, apagamento das texturas
nas figuras, rapidez das artes-finais), a autora guarda determinados
momentos para ancorar bem a acção em lugares bem demarcados e
cheios, e há mesmo algumas vinhetas que mostram antes uma lavra
expressiva, com a grafite, aparo ou caneta seca, ou uma acumulação
de efeitos de cinzentos, que reequilibra aquela simplicidade numa
mais vincada presença gráfica. E tudo isso com uma atenção
especial para com a tensão narrativa em curso, e não, de forma
alguma, ao acaso.
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