22 de novembro de 2017

Fernando Relvas: 1956-2017.


Morreu-nos o Fernando Relvas.

Esta expressão – acrescentando o pronome reflexo àquele verbo que, de tão intransigentemente intransitivo assinala uma transição derradeira – é egoísta. Mas é também apropriada, como se uma morte fosse uma afronta pessoal para quem fica vivo e sente, de uma maneira ou outra, que lhe fizeram uma desfeita. Uma promessa incumprida, uma conversa inacabada, uma pergunta por fazer.

Este não é o local de fazer panegíricos. Os artistas não precisam de elogios, mas de serem lidos, e vistos, e pensados, e tivemos a oportunidade, quando da exposição Horizonte, Azul-Tranquilo, de escrever (pouco) aquilo que tínhamos a dizer da vida e obra de Fernando Relvas, que a Bedeteca nos permitiu, e o próprio Relvas, sempre disponível. Chamámos-lhe "sismógrafo" e "hápax", dois "insultos" a que o "urso" responderia com um encolher de ombros, indiferente, como deve ser, aos discursos ao quadrado. Ao revisitar algumas fotografias da montagem da exposição, deparámo-nos com esta, que então estava cheia de promessa, e agora se reveste de um sentimento de perda. Ainda assim, ainda assim, a paisagem está prestes a ser preenchida, a saída de emergência convida ao salto, o balão a que escutemos com atenção...

O Relvas foi, a nosso ver, um “artista de artistas”, naquele sentido em que a sua lavra e obra teve mais impacto sobre toda uma (ou mais) geração de artistas que se seguiram do que propriamente junto a um público mais massificado. Em parte, isso terá a ver com o facto de que a sua produção foi seguindo as variadíssimas circunstâncias em que as possibilidades de fazer e publicar banda desenhada em Portugal, por um português, se estendiam e haver, sobretudo nos dias de hoje, uma atenção mais vincada para com o objecto-livro (e não nos abstemos de incorrer nessa cegueira genérica, aqui, neste espaço) do que para com outras plataformas. E Relvas foi um mestre da banda desenhada de imprensa (semanário, revista, pasquim), em que a respiração era feita a cada momento, mais do que de projectos de longo curso e com estruturas literárias. E foi também um mestre do desenho, a pulso, quilómetros infindáveis de linhas de grafite e tinta e pixéis e frames percorridas por tantos, tantos projectos díspares em termos de estilos e géneros e vontades e fortunas, muitos dos quais inacabados, mas não por isso menos visitáveis. Arriscar-nos-íamos a afirmar que Relvas estava menos preocupado em “contar histórias” do que dar corpo à sua necessidade de expressar o desenho, mas um desenho naquele permanente desequilíbrio de enraizar mundos, mais ou menos ficcionais, e de se aproximar, numa qualquer ideia de comunidade, ao leitor e leitora.


Tivemos o raro privilégio de conhecer o artista de mais perto e podemos afirmar, com toda a segurança, que ainda há muito para aprender sobre Relvas, muito para ler, para descortinar, apreciar, desvendar e tentar compreender. Talvez nunca se chegue ao fim ou se atinja essa compreensão, mas isso é talvez um benefício ao leitor. Por isso, leia-se.

Até breve, Relvas.  

3 comentários:

L.Frasco disse...

Obrigado, Pedro, por este texto. Não sabia da sua morte.
E tens razão. Marcou muitos. A mim, em miúdo, como um modelo, um ídolo. Depois fui vendo a espaços alguns trabalhos.
E, vendo agora os esboços que publicas, tens mais uma vez razão: ficou muito por descobrir do Relvas.
Será que alguma vez lhe farão a devida homenagem, e conheceremos a extensão do seu trabalho?

Unknown disse...

Boa tarde,
Não podia deixar um comentário, sobre uma pessoa com quem tive o privilégio de privar, já faz alguns largos anos. Pois depois de constituir família, fui perdendo o contato com o meu amigo Relvas.
Apesar do artista que é, porque o continuará a ser, ficará a saudade do amigo, bastante divertido, bom ouvinte , aconselhador, bom contador de histórias.
Apesar da diferença de idades, pois o Relvas tinha idade para ser meu pai, via-o como um irmão mais velho.
Um até breve amigo, pois é nestas alturas que apertam as saudades.

José Prazeres

Pedro Moura disse...

Olá, Luís.
As homenagens fazem-se melhor ao vivo. A exposição que tive oportunidade de comissariar foi particularmente "cheia", e aquela associada ao último Festival de bd da Amadora também tinha bastante material. Em ambos os casos, houve vontade, seguramente, de mostrar mais, sermos mais completos, mas como havia dito ao próprio Relvas no início da exposição da Bedeteca, era necessário termos apoios de outro tipo de instituições... Talvez, um dia...