Por esta altura, começa a construir-se
um edifício feito de elementos singulares, e a que se poderá vir a
dar o nome de “obra gráfica”, de Mattia Denisse, designação
que tanto terá a felicidade de agrupar essa sua produção por um
traço material, permitindo uma visão de conjunto e uma consideração
das constantes, como poderá incorrer em distrações relativas a
especificidades de cada um desses mesmos elementos. (Mais)
Este volume é a materialização, sob
a forma de um livro, do projecto de exposição/instalação de
desenhos Duplo Vê, que teve lugar na Casa das Histórias
Paula Rego, a que já fizéramos menção quando da nossa
participação nas marginálias da sua “versão” online. Dessa
forma, se o considerarmos a partir do conceito do “arquivo”,
talvez possam surgir algumas questões de família com outras
práticas artísticas. Não é que se trate de um repositório à la
Atlas de Richter, onde existisse uma colecção de elementos
passíveis de serem reempregues e transformados depois, mesmo que
tenhamos, em outros trabalhos do autor, aventado a ideia de que
certas cenas poderiam parecer apontamentos de instalações ou
performances por vir. Todavia, sublinhe-se que menos do que uma
espécie de esboço, esses desenhos devem surgir como a própria
materialização e concretização dessa mesma acção. O
Tautólogo, apesar desse título, não é um mero repositório
burocrático dos desenhos da exposição, não é um catálogo. É
antes um relançamento dos mesmos materiais numa modalidade
diferente, que agencia esses mesmos desenhos em novas redes de
possibilidade. Sendo um códice, a sua organização e convite ao
folheamento está “fechado”, digamos assim: a forma que tem não
pode ser negada, e há claramente uma busca de um ritmo interno.
Note-se como há uma paginação de um número de desenhos
semi-minimais desenhados a lápis vermelho e azul, seguidos por
núcleos de quatro páginas com desenhos a mais cores.
Apesar desse ritmo, a aparente falta de
linearidade narrativa, este fluxo descontínuo, não impede que
surjam “blocos de significado” recorrentes, ou situações que
conseguimos unir sob a impressão de um mesmo descritivo. Tendo em
conta a representação da personagem masculina, partilhando traços
físicos idênticos aos do próprio artista, é muito difícil não
construir uma ideia fantasmática do “artista no seu atelier”,
rodeado dos seus instrumentos de trabalho ou na iminência de criar a
sua prática. Mais, a associação textual deste projecto à
autobiografia de Georges Perec, W ou les souvenirs d'enfance,
leva a que se torne estimulante uma leitura autobiográfica. O
xadrez, a alquimia, o desdobramento do próprio corpo, as pesquisas
da fisicalidade, passando pelo sexo e a morte, também nos seus
sentidos arquetipais, os jogos de linguagem recombinatória, o ciclo
do escafandro (“História fantástica do mergulho”), uma espécie
de abandono a uma natureza selvagem, nunca “virginal”, mas sempre
informada por grandes enquadramentos teóricos, e toda uma panóplia
de referências cultas (literárias, artísticas, cinematográficas,
filosóficas, etc.) são os tais descritivos possíveis. O filósofo
Mark Johnson, que demonstrou com George Lakoff a origem física da
nossa linguagem metafórica (bem para além das ditas “figuras de
estilo” empregues na retórica), escreveu que “o conteúdo
proposicional é apenas possível graças a uma rede complexa de
estruturas esquemáticas não-proposicionais que emergem da nossa
experiência corporal [bodily]”. Por outras palavras,
Johnson demonstra como as imagens não emergem tão-somente de uma
hipotética e directa relação com a visão, mas antes no interior
de uma rede de convenções, possibilidades e limitações do corpo
humano. Denisse, mesmo que não explore de forma explícita essa
relação e debuxamento de limite, trabalha de uma forma clara essa
mesma relação, colocando estes corpos (estas personagens) no
centro do agenciamento dos restantes elementos.
Não deixa de ser curioso também que,
se as “artes arquivais” fazem usualmente menção ou uso de todo
um aparato tecnológico desenvolvido ao longo do século XIX e XX, e
que tem já no XXI consequências exponenciais na internet 3.0 e na
internet-das-coisas, Denisse se vire não apenas para uma das mais
velhas tecnologias humanas como para acções que também implicam um
quase-despojamento nessa história. Todos estes desenhos são
cumpridos tão-somente com lápis sobre papel. Os materiais
riscadores mais básicos – grafite e pigmentos, num invólucro de
madeira – e as superfícies mais imediatas – papel. Mas também
as “cenas” mostram um uso relativamente simples das tecnologias
de informação, comunicação e armazenamento. Certo, temos uma cena
onde se vê um projector numa sala de aula, ou outra com o portátil
do artista, mas a esmagadora maioria das imagens mostrarão o
protagonista manipulando ramos e paus, formas geométricas básicas
ou estruturas impossíveis, tabuleiros de xadrez e os seus
implacáveis relógios, e estando em contacto directo com os seus
próprios duplos, com esqueletos, com símios, com uma mulher
despida. Bastas vezes vemos o interior de uma sala onde se
apresentam, em estantes simples, toda uma série de objectos que
remetem a uma ideia de um gabinete de curiosidades a um só tempo
anómico e repleto de referências à história da arte e da
antropologia. Ou então a um laboratório alquímico, disciplina na
qual são a recombinação e transmutação as práticas principais.
A associação à patafísica é por
demais clara, já que mesmo textualmente citada em determinados
momentos. A patafísica nasceu num contexto paródico de estudantes,
nas mãos dos colegas adolescentes de Alfred Jarry, como bem nos
recorda uma recente e completa biografia do escritor em língua
inglesa, Alfred Jarry. A Pataphysical Life, de Alastair
Brotchie. Mas essa brincadeira ganharia contornos mais sérios de
investigação e prática literária e artística e, mais tarde,
filosófica, com a quantidade de autores, sobretudo de expressão
francesa, que contribuiriam para a sua consolidação (se bem que
jamais “solidificação”). A sua “definição” original
apresentava-a como “a ciência de soluções imaginárias, que
simbolicamente atribuem aos contornos as propriedades dos objectos
descritos pela sua virtualidade”. Ao contrário da ciência
propriamente dita, que tratará do geral, a patafísica abordava o
particular, e funcionaria, tal como um epifenómeno em relação aos
fenómenos, isto é, numa posição sobreposta, em relação à
física. Focando, então, o excepcional, explorando as capacidades do
virtual sobre o mundo real, fazendo com que o desejo, menos do que
uma ausência, passasse a informar de forma quase tangível, o
actual. De novo, tudo isto nos remete para a ideia de projecção das
acções das personagens representadas nos desenhos de Mattia
Denisse, na continuidade da ideia de um arquivo de coisas por vir.
E tal como a patafísica parodia, mas
aproveita, as capacidades providenciadas pelas ciências, tentemos
demonstrar uma potencialidade do livro. A esmagadora maioria dos
desenhos são aqueles delineados a linhas vermelhas e azuis (tal como
o livro nos é oferecido em duas versões de capa), os quais devem
ser compreendidos como “pré-desenhos” das composições
similares mais detalhadas (na figuração, texturas em trama, cores,
detalhes). O vermelho e o azul corresponderão aproximadamente às
extremidades do espectro cromático da visão humana e,
consequentemente, à frequência electromagnética. Se pensarmos nas
noções de red shift e blue shift, ou desvio para o
vermelho e desvio para o azul, poderemos pensar em outros
sistemas de oposição como aquele entre o afastamento e a
aproximação, o futuro e o passado, a velocidade e a inércia...
Essas dicotomias são resolvidas na combinação do desenho, que
tanto projecta algo para além dele (meta-, pata-) como se resolve
nele mesmo. Portanto, conforme o leitor ou leitora, que poderá
fazer-se de vesgo como o Deus interrogado ao longo do projecto,
poder-se-á manipular o livro como um gesto de passado, de arquivo,
de catálogo, de balanço, de fecho, como um novo gesto de
lançamento, de acção, de interpretação. E uma dessas opções
não elimina, substitui, delimita, a outra.
Cada olho no seu galho.
Nota final: agradecimentos ao autor e editores,
pela oferta do livro. Gif copiado do site da editora.
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