Na
contracapa deste volume antológico, que colecciona grande parte da
produção do autor francês nesta sua vertente de bandas não
desenhadas mas coladas, encontramos uma mulher, numa espécie de
função de Atlas, a segurar um globo terrestre. Calcorreando a sua
circunferência, encontramos várias personagens retiradas de
variados territórios da banda desenhada, que apesar de se
encontrarem num putativo intervalo limitado – diríamos a banda
desenhada de género(s) e comercial das décadas de 1930 a 1950,
sobretudo americana –, representariam vários registos: a aventura,
o policial, a comédia, o biográfico-histórico, o fantástico, etc.
Há femme fatales, um vilão, um hillbilly, um
cientista ao microscópio, bebés nadadores, uma tribo de
mulheres-gato, a mão de um pescador, uma pomba e uma manivela.
Talvez estas personagens avulsas e diversas não tenham aqui um valor
narrativo propriamente dito, mas em relação à expressão feliz e
celebratória da cariátide do mundo poderão cumprir o papel de
signos de um arquivo maior: aquele que está disponível e é
empregue pelo artista, para a sua prática transformativa e criativa. (Mais)
No
entanto, a imagem poderá dar a entender que é propósito do autor
re-lançar estas personagens em novas situações, paranarrativas,
eventuais (isto é, associadas a um evento, a alteração do
estado das coisas, implicando uma ancoragem espácio-temporal e de
causalidade), quando no fundo o que se opera nestas páginas é uma
actividade quase puramente estética, focada que está em questões
de composição e na manipulação de elementos constitutivos como
formas, linhas, tensões de objectos gráficos, cores, recorrências
e ritmos. Se, nessa prática, acabar por emergir alguma sensação de
significado textual, de acontecimento, de relações passíveis de
interpretação emotiva ou psicológica, será um acidente de
percurso, uma mais-valia de significado.
Samplerman
fará parte de um pequeno mas notável grupo de artistas que tem
criado novas bandas desenhadas a partir de textos
preexistentes, através
da técnica da colagem. Conforme já havíamos debatido numa ocasião
anterior, lavrámos um pequeno ensaio académico (ainda inédito) em
torno dessa questão, e quando debatemos o projecto 978 de Pascal Matthey, atravessámos algumas das noções-chave desta
prática, tal como arrolámos alguns nomes irmanáveis e aos quais
agora se junta o deste artista. Por exemplo, como medida de
contraste, ainda que não absoluto, em 978 havia, apesar das
aparências, um claríssimo programa narrativo a emergir da
disposição das imagens e a sua transformação em travelling.
Pelo contrário, em Fearless Colors, a mera presença de
fragmentos de objectos e /ou personagens identificáveis, sob a forma
de cortes, trechos, troços, dejectos e sobras, acumulando-se e
acotovelando-se entre si para criar uma imagem maior, poderia dar a
impressão de se querer avançar uma “outra” história, mas ela
na verdade dilui-se apenas nesse trânsito e prazer das formas.
É famosa
a curta peça de Art Spiegelman, “The Malpractice Suite”, que se
pode encontrar no seu Breakdowns (de 1977): a partir de uma
tira relativamente famosa e praticamente inócua, Rex Morgan,
M.D., sobre um médico, Spiegelman opera aquilo que Thierry
Groensteen chama no “bouquet” da Oubapo um trabalho de
reenquadramento por expansão, “revelando” dessa maneira os
pesadelos surrealistas que se escondiam para além dessa soap
opera da “middle white America”. O tipo de material de
partida parece ser aproximadamente idêntico àquele empregue por
Samplerman, mas os efeitos – visuais e políticos – são bem
distintos do famoso autor norte-americano. A banda desenhada de
produção “industrial” parece ter dado azo muito rapidamente a
práticas de apropriação, onde se destaca a colagem, com as
linguagens das segundas vanguardas do século XX. Vejam-se as obras
de autores como Ray Yoshida – que o autor cita, apropria e em torno
do qual faz variações de composição/distribuição de elementos –
ou de Öyvind Fahlström. E, tal qual esses dois artistas, Samplerman
parece diminuir o material da banda desenhada a uma espécie de
fragmentos de formas, menos atomizadas que as de Pascal Mathey, mas
não ao ponto de ser uma mera recuperação de formas activas.
O texto
editorial de apresentação deste volume emprega o vocábulo
“fractal”, o que nos parece ser muito preciso e correcto, se
tivermos em conta a maneira como o autor acciona mecanismos de
recursividade, destacando determinados elementos que “cortara” em
multiplicações, dispostas depois de uma forma simétrica ou pelo
menos em padrões arregimentados de acordo com algum princípio
axial. É sobretudo uma distribuição caleidoscópica aquela que é
espoletada na esmagadora maioria das páginas, mas há algumas outras
variações espaciais e compositivas.
Algumas
das peças, como as iniciais, quase parecem ser variações das
imagens mais antigas produzidas com recurso a microscópicos, em que
quase se negociava uma observação factual e estruturada em
princípios objectivos e científicos, e a incrédula descoberta da
existência dessas mesmas figuras, até ali pensadas como
fantasiosas. Ou seja, por um lado, a felicidade da descoberta de algo
novo e que se imagina ser revolucionário no que diz respeito ao
conhecimento e a prática humana. Por outro, a irresistível
tendência de “gozar” de imediato com essa mesma possibilidade.
No que diz respeito à banda desenhada, Samplerman fá-la avançar,
estendendo a ementa dos seus recursos, mais ao mesmo tempo não deixa
de brincar um bocado com essa mesma actividade, como se não se
quisesse ser levado demasiado a sério... Talvez esta seja ainda uma
barreira a ultrapassar pela própria banda desenhada (se bem que
existem muito autores que já a demoliram há muito, de Jochen Gerner
a Ilan Manouach, Martin Vaughn-James a Francisco Sousa Lobo, mas
também Alberto Breccia e Tsuge, entre muitos outros).
Essa ideia
de desdobramento orgânico é, de resto, o que parece presidir a “Big
Mess” (em torno de uma só personagem), “revealed” (?, difícil
identificar a identidade e isolamento das peças, mas esta
apresenta-se numa sequência de uma grelha regular de 3 x 4 vinhetas:
jogando com cristalizações a partir de elementos de polígonos,
paisagens, dedos, Kirby dots, etc.) e “Sky Dynamo”
(padrões), menos um jogo de espelhos distorcendo uma putativa imagem
original do que uma expansão de elementos internos dessa forma em
dendrites activas.
Nalguns
casos, alguma matéria verbal, sobretudo diálogos, “sobrevivem”,
recordando a prática transformadora de Tom Philips, e não é
totalmente impossível ler esse mesmo texto de forma a fazer emergir
novos textos, de resto, como bem diz o editor Marcos Farrajota, numa
lógica de samplagem, remix, e scratch mais
típicas do experimentalismo sonoro. O aumento “temático” também
é possível, naturalmente, como ocorre na peça onde Samplerman
reemprega elementos de Fletcher Hanks (Fantomah), tornando
ainda mais selvagens e surreais as histórias desse autor, ou
aumentando o absurdo do trânsito futurista em “Mankind has a
problem” [v. imagem anterior]... Por outras palavras, não é que seja impossível
forçar um sentido domesticado e até linear em algumas das peças. “Do you
think you own me?” é a peça que mais estaria próxima daquela de
Spiegelman, por exemplo. Poder-se-ia também imaginar que finalmente temos aqui uma
tradução do que significaria enfrentar, com efeito, uma “crise
nas infinitas terras”, que convidaria a delírios visuais bem mais
inesperados do que aqueles intentados por George Pérez. Mas estamos
em crer que seria não apenas uma violência mais forçada do que em
outros casos de bande colée (Mathey, Jess) como se tornaria
um filtro facilitista que nos impediria de ver e apreciar, pela sua
natureza própria, as construções, “sem medo”, que Samplerman
nos providencia. A afinidade com o trabalho de Cátia Serrão é,
nessa liberdade da narrativa, vincadíssima, ainda que a artista
portuguesa atinja os seus fins sem a defesa da ironia.
Fearless
Colors reúne trabalhos produzidos entre 2012 e 2015, e foi
co-publicado num esforço conjunto entre a editora portuguesa, a
espanhola Ediciones Valientes e a Kus! da Látvia. O autor esteve
presente na Mundo Fantasma, no Porto, a propósito da abertura da
exposição Matéria Escura, de Filipe Abranches (que se faz
acompanhar por um pequeno texto nosso) e fez uma breve demonstração
do seu processo de trabalho, utilizando instrumentos analógicos
(corte e colagem), apesar dele empregar sobretudo ferramentas
digitais para estes trabalhos. O autor estará presente esta
Sexta-feira, dia 16, a partir das 18h00, na Nouvelle Librairie
Française, para um encontro informal com leitores interessados, que
poderão adquirir o livro e pedir uma dédicace
(provavelmente ficando com um buraco no livro?).
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