É por vezes difícil, se não
impossível, lermos, vermos, interpretarmos e pronunciar um juízo de
valor sobre uma determinada obra nova sem recorrermos a elementos que
lhe são extrínsecos. As mais das vezes, isso prende-se a questões
de biografia, círculo social ou outra actividade profissional,
pública ou artística que o autor ou autora exerçam e que parecem
fazer pressão sobre aquelas que se nos apresentam no momento. É
isso o que sucede quando se procuram “traços” de arquitectura em
desenhistas que têm formação de arquitecto (e tão distintos como
Richard Câmara, Francisco Sousa Lobo, Pedro Burgos, Ana Cortesão,
André Pereira), ou se pretendem compreender como actividades
musicais podem informar a prática da banda desenhada (Carlos
Zíngaro, Ilan Manouach, Brian Chippendale, André Coelho). Quase
sempre esse exercício é supérfluo e inválido, uma vez que
providencia mais com elementos de cegueira e limitação do que um
caminho para cumprir uma melhor leitura crítica. (Mais)
Ao depararmo-nos com esta colecção de
desenhos de Sei Miguel, consagrado monstro da improvisação sonora,
é muito difícil então que não tentemos raspar parte da sua patina
conquistada no circuito musical para alimentar uma putativa
celebração dos próprios desenhos. Um exercício facilitista, de
certa forma, que quase impediria enfrentar os desenhos por si mesmos.
Todavia, e sem paradoxo, talvez seja essa compreensão de outra
actividade que poderá fornecer-nos algumas pistas de leitura. Uma
possível definição de performance (cf. Stephen Davies) é a
de “um conjunto de instruções,
dirigidas aos seus executantes, para a produção das suas
execuções”. A improvisação não significa propriamente que haja
uma ausência absoluta de “instruções”, mas antes uma profunda
compreensão dos micro-mecanismos das estruturas expressivas
possíveis com um determinado meio sobre o qual se exerce mestria (de
um instrumento musical, do desenho) e uma capacidade subtil e
quase-instantânea de reacção em relação às condições
circunstanciais e imediatas do momento da sua produção.
Uma
compreensão clássica do “estilo”, no que diz respeito à
produção do desenho, veria uma plena possibilidade de elencar
elementos constitutivos dessa actividade, que se agregariam quase
necessariamente a determinados efeitos perceptuais. Por outras
palavras, uma quase redutora ligação directa entre causa e efeito
entre um traço, uma linha, uma nota suspensa, uma explosão de
fôlego num trompete, a um efeito de significado “previsto”.
Contudo, essa perspectiva impediria que se instalasse na própria
produção nova dos perceptos uma capacidade de surpresa, de
inesperado, até mesmo impediria que o “erro”, tão bem-vindo na
improvisação, se tornasse pasto de maravilha e produtividade
estética, e separasse de uma forma contudente a ideia de uma
“intenção original” e os seus resultados materiais efectivos e
observáveis/perceptíveis: um concerto, um desenho.
De
acordo com algumas entrevistas, Sei Miguel começou a sua actividade
enquanto desenhador, ecoando a experiência de Carlos Zíngaro que, a
um momento jovem, pensava ser esse o território onde medraria
profissionalmente, sendo a música algo secundário. Este volume
reúne dezenas de desenhos, elaborados no intervalo temporal indicado
na capa. Acrescentando-e à maneira muito precisa como o autor
intitula, assina e data os desenhos (pelo menos com o ano),
presume-se um desejo e um cuidado no seu arquivamento, insuflando à
sua qualidade improvisada uma possibilidade de gravação,
transformando-os então, por consequência, numa passível plataforma
de observação posterior, de aprendizagem, de, lá está,
compreender e aprofundar a mestria dos tais micro-mecanismos
expressivos que o desenho proporciona.
Desenhados
com um material riscador banal, desligado da nobreza de outros
materiais, poderia dar a sensação repentina estarmos perante meros
“rabiscos”, “doodles”, distraídos, que se cumpririam durante
uma conversão ao telefone ou numa reunião de trabalho (seria
tentador criar essa imagem a partir de um desenho e situação como a
de “Requerimento”). Mas a relativa pobreza do material é
consentânea com a relação desproporcional proposta por Sei Miguel
entre a economia de meios do ponto de partida e exuberância dos seus
resultados, que convidam a uma negociação permanente com o
significado ou a interpretação do espectador. É preciso igualmente
salientar a materialidade do próprio volume, desde o tratamento das
imagens à paginação, ao design e formato do livro, às manchas
quase-invisíveis da fita-cola que decoram a capa, que transformam
todas estas imagens – que imaginamos terem sido criadas em
circunstâncias muito distintas, quiçá em materiais de suporto
diferentes, e em formatos diversos – numa procissão relativamente
homogénea, coesa, sublinhando muitas das características comuns da
assinatura gráfica
do autor: linhas rápidas sem hesitações, formas abertas, um
burilar das figuras de modo angular, algo devedor ao cubismo e,
através dele, às ditas abordagens primitivistas, alguns pequenos
apontamentos de texturas, pontilhismos ou tramas para criar texturas
e volumes breves, manchas negras que fazem reequilibrar as massas e
aumentam os jogos de contraste possíveis.
Tal
como os livros de que temos falado de Gonçalo Pena, de Alice Geirinhas, de Mattia Denisse, ou outros, o acto da própria colecção
de objectos heterogéneos como desenhos numa massa unida poderá
forçar uma espécie de sentido unívoco sobre todo esse corpo. Mas
identificarmos elementos recorrentes, sejam eles estilísticos,
recursivos, materiais ou temáticos, é precisamente um dos
princípios organizativos do acto interpretativo. E é naturalíssimo
que emerja neste volume uma vontade, dos próprios desenhos, em se
coalescerem numa unidade.
A
esmagadora maioria dos desenhos centra-se em figuras, personagens
antropomórficas, hieráticas. Se algumas delas quase parecem remeter
a um universo de arquétipos (“Sacerdotisa”, “O bom pastor”,
“Aeromante”, “Criador”, “adorabilis”), cujos significados
são reforçados pela presença de personagens que citam a mitografia
ocidental (“Santo Antão”, “Saturninos”, “Tétis e
Oceanus”, “Narciso”, “baixa mitologia – Leda”) ou
situações micro-narrativas que auscultam noções ritualísticas
(“Ablução”, “O monge enamorado”, “A casa da morte”,
“Serenata”, “O antigo dever”),
outras
parecem ser quase retratos em frente a episódios quotidianos e
triviais (“São horas de dar as boas-noites”, “Espólio/Jovem
erudito”, “No jardim”, “Egipto”). Menos do que encontrarmos
um psicodrama organizado, vemos regressos e recorrências a
determinados assuntos.
No
entanto, sublinhe-se a repetição de um motivo: o da hierarquia
entre corpos, em que um demiurgo observa as suas criaturas, ou um
totem preside aos bacanais dos idólatras, ou uma relação entre
duas, ou mais personagens, envolvem de imediato um pequeno novelo
sentimental (feliz como em “A noiva” ou trágico como em “um
caso triste”, mas identificável em muitas outras prestações).
São raras as figuras totalmente isoladas, quase todas se encontram
sempre numa rede de relações que é necessário destrinçar
(chegue-se ou não às mesmas conclusões).
Existem
também algumas composições quase-abstractas, de paisagens onde se
isolam objectos geológicos ou cristalizados, talvez, mas que ecoam
elementos que compõem igualmente os fundos ou os corpos de outras
composições onde a figura humana ocupa o lugar de destaque. Aliás,
são essas estruturas não-humanas que muitas vezes adensam os
desenhos no que parecem ter de “excessivo”, isto é, para além
da necessidade do que identifica a figura para chegar à sua riqueza
material. E são muitas vezes os pormenores que tornam os desenhos
estimulantes na sua leitura: as expressões contrastantes dos
observadores, inclusive da lua cartoonesca,
de “choro”, a acumulação de chaves em “Suburbanos”, o
cavalo que trota atrás do menino em “Brinquedos”, o relâmpago
alado em “Leda”, o objecto observado por “Narciso” (a sua
própria reflexão distorcida?). Como é de esperar, esses elementos
apenas reforçam aquele exercício interpretativo que aventámos:
maior rigor nas relações entre as figuras, adensamento do seu
pequeno mundo concentrado, abertura da leitura.
Acompanhados de dois poemas-comentário
de Gastão Cruz, sendo um deles um riff sobre os títulos e
matéria dos desenhos, poderão ser também outro ponto de partida
para a “leitura” de toda esta matéria, sobretudo por nos ensinar
que “Ver é torcer a beleza dos seres”.
Nota final: agradecimentos aos editores
e ao autor, pela oferta do livro.
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