Quase toda
a história humana é pautada pelo fascínio da animação, no
sentido da condição de algo estar vivo, mover-se, actuar,
talvez mesmo pensar e comunicar. É talvez esse sentimento que nos
tenha feito criar deuses, desenhar nas paredes, esculpir formas. É
esse sentimento que, ao longo da cultura humana, nos fez criar
histórias em que os objectos ganhavam poderes extraordinários,
guardavam resquícios das almas dos seus antigos possuidores,
enclausuravam seres vivos ou ganhavam eles mesmos uma espécie
qualquer de vida. Um fascínio que mistura idolatria a receios,
terrores a desejos, algo que pode tanto oscilar entre o sonho de
Pigmalião e Geppetto, como o horror do Mickey em Fantasia ou
dos pais do Pequeno Otik/Otesánek, de Svankmajer. Com o
advento do cinema, de facto, rapidamente os criadores puseram à
prova esse fascínio e são os brinquedos uma classe de objectos
preferencial dessa “vida”, sobretudo graças à técnica da
animação de volumes: desde o perdido The Humpty Dumpty Circus,
de Blackton e Smith (de 1898) ao sobrevivente Dreams of Toyland de
Arthur Melbourne Cooper, que data de 1908, mas a cuja tradição
temática pertencerá igualmente a série contemporânea da Doutora
Brinquedos, o já clássico Toy Story e
igualmente o assassino Chucky. (Mais)
O último
livro de Maria João Worm não sairá de uma prateleira, algures num
interior doméstico, em que os objectos espalhados ganham uma
dimensão de vida arrancada pelos poderes mediúnicos ou mesmo
demiúrgicos da artista. Se associarmos este livro a
Electrodomésticos classificados e Os animais domésticos,
encontraremos afinidades autorais e de métodos criativo, que fará
pensar em Worm como uma autora que não terá necessidade de se
estender para além das quatro paredes do seu quarto para construir
viagens interiores e de longo alcance, sem qualquer paradoxo.
A autora
coloca como protagonistas deste pequeno volume dois semi-brinquedos
num pequeno estado de animação. Como reza o título, num italiano
desarmante, trata-se de um frasco de talco em forma de urso e uma
pequena boneca articulada, nua, e italiana. Além deles, participam
ainda um jarro (de meio-litro) e um copo (de dois decilitros). Não
há cruzamentos entre cada um destes pares, e cada um executa cenas e
troca impressões entre si, intercaladas na distribuição do livro.
Se falamos em “pequeno estado de animação”, isso dever-se-á ao
facto de que a autora não os coloca numa aventura, nem
tampouco em paroxismos de movimento e deslocação, mas simplesmente
em pequenos nódulos nos quais as impressões e filosofias são
tecidas em poucas palavras.
A
antropomorfização de todas estas figuras não serve para criar
simpatia ou proximidade emocional entre os leitores e as personagens,
mas tão-somente para abrir um espaço suficiente no qual se vêm
instalar certas características humanas, nem sempre as mais
apetecíveis: a solidão mesmo em companhia, a incompreensibilidade
mútua, a melancolia, a incessante procura por modos de consolo e, ao
mesmo tempo, a incessante necessidade de diminuir o consolo dos
outros, e as pequenas migalhas que, no fim de tudo, lá restam de
solidariedade. Os diálogos não são, de forma alguma, absurdos, mas
encerram em si sempre uma qualquer maneira de espelhar aquilo que
assoma a existência humana, sejam elas as hierarquias culturais ou a
desconfiança do outro, e há mesmo um momento em que o sono
prometido aos bonecos é apenas um passo à frente daquele que nos
espera a nós mesmos...
O par da
boneca e do urso abrem uma questão curiosa pelas suas próprias
formas. São bonecos antigos, desusados, obsoletos, sem qualquer
préstimo actual para as crianças dos nossos dias em termos de
desejo, mas que ganham uma patina de nostalgia, enquanto brinquedos
vintage, por sua vez assegurando-lhes uma outra possível e
nova vida no império da comercialização. Surgem assim com um valor
patrimonial que advém da sua existência temporal, o que nos permite
rever a utilização dos termos italianos como passíveis de
acrescentar esse mesmo valor. Vão surgindo em pequenos “palcos”
diferentes, por vezes mesmo em interacções com objectos terceiros,
mas a sensação final é de que nem mesmo a dupla saberia bem dizer
o que os une.
Já o
jarro e o copo, absolutamente triviais no seu quotidiano e imediato
uso, parecem desprovidos (ainda?) da construção de um valor
além-uso, e por isso a sua relação diminui-se apenas à troca de
líquidos entre si, numa materialista e utilitária relação
contentor-de-partida e contentor-de-chegada, vertendo um o seu
conteúdo no outro...
O aspecto
geral do livro, o seu formato, distribuição das imagens e texto, e
até mesmo a concentração do seu título tão-somente no elencar
das duas personagens principais, parece remeter de imediato a um
universo infantil, ou melhor dizendo, dos livros ilustrados para a
infância, e é inegável que há um jogo de reflexos criado em torno
dessa ideia. Não é que o livro não possa ser lido às crianças,
mas não haverá aqui qualquer narrativa concentrada, intriga
ulterior, satisfação final e linear, moralismo da lição. Cada
página pode ser saboreada como uma pequena unidade entre imagem –
que pode ser uma cena ou uma acção desdobrada – e o texto –
usualmente, umas linhas de diálogo -, o que nos parece remeter às
mesmas estratégias de construção de significado que ocorria nos
históricos livros de emblemas.
A degustar
a cada página como se se tratassem de koans, estes objectos
banais podem encerrar coisas tremendas que nos falam ao mais fundo.
Nota
final: agradecimentos à autora, pela oferta do livro.
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