25 de junho de 2018

L’Orso Borotalco e la Bambola Nuda Italiana. Maria João Worm (Quarto de Jade)


Quase toda a história humana é pautada pelo fascínio da animação, no sentido da condição de algo estar vivo, mover-se, actuar, talvez mesmo pensar e comunicar. É talvez esse sentimento que nos tenha feito criar deuses, desenhar nas paredes, esculpir formas. É esse sentimento que, ao longo da cultura humana, nos fez criar histórias em que os objectos ganhavam poderes extraordinários, guardavam resquícios das almas dos seus antigos possuidores, enclausuravam seres vivos ou ganhavam eles mesmos uma espécie qualquer de vida. Um fascínio que mistura idolatria a receios, terrores a desejos, algo que pode tanto oscilar entre o sonho de Pigmalião e Geppetto, como o horror do Mickey em Fantasia ou dos pais do Pequeno Otik/Otesánek, de Svankmajer. Com o advento do cinema, de facto, rapidamente os criadores puseram à prova esse fascínio e são os brinquedos uma classe de objectos preferencial dessa “vida”, sobretudo graças à técnica da animação de volumes: desde o perdido The Humpty Dumpty Circus, de Blackton e Smith (de 1898) ao sobrevivente Dreams of Toyland de Arthur Melbourne Cooper, que data de 1908, mas a cuja tradição temática pertencerá igualmente a série contemporânea da Doutora Brinquedos, o já clássico Toy Story e igualmente o assassino Chucky. (Mais)

O último livro de Maria João Worm não sairá de uma prateleira, algures num interior doméstico, em que os objectos espalhados ganham uma dimensão de vida arrancada pelos poderes mediúnicos ou mesmo demiúrgicos da artista. Se associarmos este livro a Electrodomésticos classificados e Os animais domésticos, encontraremos afinidades autorais e de métodos criativo, que fará pensar em Worm como uma autora que não terá necessidade de se estender para além das quatro paredes do seu quarto para construir viagens interiores e de longo alcance, sem qualquer paradoxo.

A autora coloca como protagonistas deste pequeno volume dois semi-brinquedos num pequeno estado de animação. Como reza o título, num italiano desarmante, trata-se de um frasco de talco em forma de urso e uma pequena boneca articulada, nua, e italiana. Além deles, participam ainda um jarro (de meio-litro) e um copo (de dois decilitros). Não há cruzamentos entre cada um destes pares, e cada um executa cenas e troca impressões entre si, intercaladas na distribuição do livro. Se falamos em “pequeno estado de animação”, isso dever-se-á ao facto de que a autora não os coloca numa aventura, nem tampouco em paroxismos de movimento e deslocação, mas simplesmente em pequenos nódulos nos quais as impressões e filosofias são tecidas em poucas palavras.


A antropomorfização de todas estas figuras não serve para criar simpatia ou proximidade emocional entre os leitores e as personagens, mas tão-somente para abrir um espaço suficiente no qual se vêm instalar certas características humanas, nem sempre as mais apetecíveis: a solidão mesmo em companhia, a incompreensibilidade mútua, a melancolia, a incessante procura por modos de consolo e, ao mesmo tempo, a incessante necessidade de diminuir o consolo dos outros, e as pequenas migalhas que, no fim de tudo, lá restam de solidariedade. Os diálogos não são, de forma alguma, absurdos, mas encerram em si sempre uma qualquer maneira de espelhar aquilo que assoma a existência humana, sejam elas as hierarquias culturais ou a desconfiança do outro, e há mesmo um momento em que o sono prometido aos bonecos é apenas um passo à frente daquele que nos espera a nós mesmos...

O par da boneca e do urso abrem uma questão curiosa pelas suas próprias formas. São bonecos antigos, desusados, obsoletos, sem qualquer préstimo actual para as crianças dos nossos dias em termos de desejo, mas que ganham uma patina de nostalgia, enquanto brinquedos vintage, por sua vez assegurando-lhes uma outra possível e nova vida no império da comercialização. Surgem assim com um valor patrimonial que advém da sua existência temporal, o que nos permite rever a utilização dos termos italianos como passíveis de acrescentar esse mesmo valor. Vão surgindo em pequenos “palcos” diferentes, por vezes mesmo em interacções com objectos terceiros, mas a sensação final é de que nem mesmo a dupla saberia bem dizer o que os une.

Já o jarro e o copo, absolutamente triviais no seu quotidiano e imediato uso, parecem desprovidos (ainda?) da construção de um valor além-uso, e por isso a sua relação diminui-se apenas à troca de líquidos entre si, numa materialista e utilitária relação contentor-de-partida e contentor-de-chegada, vertendo um o seu conteúdo no outro...


O aspecto geral do livro, o seu formato, distribuição das imagens e texto, e até mesmo a concentração do seu título tão-somente no elencar das duas personagens principais, parece remeter de imediato a um universo infantil, ou melhor dizendo, dos livros ilustrados para a infância, e é inegável que há um jogo de reflexos criado em torno dessa ideia. Não é que o livro não possa ser lido às crianças, mas não haverá aqui qualquer narrativa concentrada, intriga ulterior, satisfação final e linear, moralismo da lição. Cada página pode ser saboreada como uma pequena unidade entre imagem – que pode ser uma cena ou uma acção desdobrada – e o texto – usualmente, umas linhas de diálogo -, o que nos parece remeter às mesmas estratégias de construção de significado que ocorria nos históricos livros de emblemas.

A degustar a cada página como se se tratassem de koans, estes objectos banais podem encerrar coisas tremendas que nos falam ao mais fundo.
Nota final: agradecimentos à autora, pela oferta do livro.

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