A Gradiva
dá início a esta colecção em português, mas numa ordem diferente
da original. O mesmo ocorreu, por exemplo, com a Biblioteca de Babel,
a famosa colecção organizada por Franco Maria Ricci e Jorge Luís
Borges para a italiana FMR e a espanhola Siruela, e publicada entre
nós pela Vega. Aproveitando o projecto editorial original da
Lombard, coordenado e pensado na sua génese por David Vandermeulen,
autor do magistral Fritz Haber, e contribuindo dessa maneira
para a criação de materiais originais e conduzidos por uma ideia
central – no caso, a veiculação de conteúdos complexos sobre os
mais diversos assuntos científicos, sociais, históricos e culturais
da humanidade através de pequenas súmulas em banda desenhada
ensaísta (voltaremos a este termo) –, a Gradiva lança mãos de
dois temas mais centrais e, sem dúvida, mais caros ao seu próprio
catálogo de primeira água. Esperemos, todavia, que não apenas haja
uma continuidade deste projecto, pois existem alguns volumes
excelentes em termos formais (volumes com os desenhos de Fabrice
Neaud, de Alfred, de Jean Solé), tal como temas – organizados
em sete categorias –
fascinantes e
tratados de maneira holística (a história da tatuagem, da
prostituição, do conflito israelo-palestiniano, da génese dos
escritos bíblicos), como não haja um desvirtuamento ou
aproveitamento “local” de criar intervenções na colecção
(como ocorreu na Biblioteca de Babel portuguesa). (Mais)
São
livrinhos de bolso, e capa brochada, sempre com menos de 90 páginas,
estes dois primeiros entre as 60 e as 80, a cores, com uma
materialidade excelente para serem lidas de um fôlego, mas também
permitindo que se tornem, depois, um guia rápido para as questões
colocadas.
Não
estando numerados, ajudarão a não criar uma certa dependência
psicológica em fazer a colecção, uma actividade muitas vezes
mecânica que nada serve a leitura, mas antes permitirão aquisições
mais específicas, interessada se integradas num mais complexo
processo de aprendizagem. E, acima de tudo, é preciso compreender
que estando criados de forma a permitiram uma abordagem relativamente
simplificada ou acessível, não são de forma alguma discursos nem
simplistas nem perdendo as complexidades que conteriam. Não são
livros dirigidos a crianças, ou pelo menos, somente, mas antes a
todo um público. Por isso, daquilo que nos é dado a entender, quase
sempre os argumentistas são pessoas especializadas nos campos
respectivos, entre investigadores, professores ou autores desse mesmo
campo, estando nas mãos dos autores de banda desenhada ou a
colaboração com eles ou a tarefa da transformação desse discurso.
A
utilização acima do termo “ensaístico” deve-se ao facto de que
não estamos perante uma mera adaptação de um tema a um veículo
narrativo, que criasse uma “história” para, como se costuma
dizer, “dourar a pílula” e até torná-la mais fácil de
engolir. Existirão estratégias comunicacionais que tornam a
veiculação destes saberes mais directa, mas não significa que se
apresente uma organização clássica narrativa. Quando falámos da
colecção Sociorama, ou nos livros de Squarzoni, apontámos a
existência de “empregos” possíveis para a banda desenhada, que
cada vez menos deve ser vista como “género” (um erro de
categorização de palmatória, mas ainda muito comum) mas antes como
“meio”, “veículo” ou “linguagem”. No caso desta Bedeteca
há mesmo uma argumentação ensaística, deixando em aberto muitas
das questões secundárias ou irresolúveis de cada tema, convidando
os leitores a pensar por si mesmos e lançar mãos de leituras e
pesquisas consequentes. Não se tratam de guias ou compêndios de
papinha feita, mas interpelações que demonstram que estes temas são
complexos e, não havendo respostas finais, há que dar início a
colocar as perguntas.
Os
Direitos do Homem. François De Smet e Thierry Bouüaert.
Neste
volume, é a própria Declaração que se nos dirige,
antropomorfizada sob a forma de uma voz narrando directamente.
Poder-se-ia imaginar que seria uma voz “desencarnada”, mas é
mesmo isso que não sucede. Eventualmente poderíamos ter aqui
tão-somente os artigos apresentados em 1948 com belas ilustrações
utópicas mostrando a felicidade da humanidade sob o seu signo, mas
este é um palácio cheio de fracturas, e elas estão bem expostas.
Bem pelo
contrário, a Declaração mostra o seu “corpo”, explicando-nos
quem são os seus pais, como cada um dos seus artigos foi discutido
em minúcia e controvérsia, que consequências e limitações eles
tiveram ou têm, quais os seus antecessores legais, as razões
imediatas da sua emergência urgente e quais as associações que
lança a toda a história global da humanidade. Ao mesmo tempo, os
autores fomentam uma “personalidade” na Declaração que não só
nos vai acusando dos nossos pecados sociais perpetrados uns contra os
outros, como também revela que não basta a sua existência
bem-pensante para, num passe de mágica, resolver os problemas que
nós próprios infligimos.
Por isso
os desenhos de Bouüaert, cultor de linhas nervosas, encavalitadas
mas de uma expressividade dramática significativa, se apresentam em
composições simples, quase de afirmação, mas numa paleta
cromática reduzida a ocres, verdes e rubros opacos, constituindo uma
espécie de gravidade.
François
De Smet não se coloca a ele mesmo no livro, mas compreendemos ser a
sua personalidade e experiência profissional, trabalhando com os
direitos dos migrantes, questão cada vez mais premente, complexa e
fácil de ser arrastada para posicionamentos simplistas (de parte a
parte), que está na linha da frente quando se sublinha sobretudo o
trabalho que ainda está por fazer. “Os direitos do homem são
uma construção contínua”, está escrito. Este livro ajuda a que
o ímpeto se mantenha.
O
Universo. Hubert Reeves e Daniel Casanave.
Este
é um livro de Hubert Reeves. Isto parece ser uma tautologia, mas os
conhecedores das obras mais famosas e populares deste astrofísico
compreenderão de imediato o que isso quer dizer. Este livrinho não
é, de forma alguma, um pequeno guia sobre a história do universo
tal como é compreendido aos olhos da física contemporânea, nem
tampouco uma descrição das escalas possíveis da sua análise e
estudo (da sopa de quarks à radição cósmica de fundo), se bem que
esses elementos também estejam integrados aqui. É um dos “poemas”
típicos de Reeves. Não se pode dizer com precisão que O
Universo apresente uma estrutura da complexa mistura de
pensamento científico de Reeves com a filosofia, já que os
“argumentos” principais aqui são reduzidos a uma ou duas
imagens. É antes uma celebração, criando metáforas incessantes
entre a beleza deste cosmos e outras realidades mais compreensíveis
à escala humana, de um quarteto de cordas de Schubert a uma tela de
Vermeer, empregando um poema de laivos bíblicos de Antonine Maillet
ou cenas de Citizen Kane...
O
próprio Reeves surge nas páginas como uma espécie de alegre guia
do leitor por este universo em várias escalas, e Daniel Casanave
proporciona formas simplificadas e claras, traduzindo de modo directo
e descomplicado as palavras e símiles do astrofísico. Trata-se mais
de uma espécie de pequena sebenta de introdução a uma atitude
perante o universo do que propriamente uma explicação com matéria
concreta. O livro abre, por exemplo, com a antiquíssima ideia da
“Música das esferas”, para depois termos o Reeves-personagem a
declarar “Existe uma relação mais profunda entre nós e as
estrelas.../É o que vou tentar explicar nesta banda desenhada.”
Todavia, não surgirá aqui o famoso discurso de Carl Sagan na série
Cosmos - “O nitrogénio no
nosso ADN, o cálcio nos nossos dentes... Somos feitos da matéria
das estrelas” - mas antes um passeio por impressões, que muitas
vezes cai em tautologias algo mancas (“[a arte] não precisa de
explicação: basta-se a si mesma”, mas cria um substrato, digamos,
suficiente, para estar, de novo, aberto a colocar estas questões.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos os volumes. Imagens fornecidas pela editora.
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