9 de setembro de 2018

Livro sagrado. Santo (Edições Milagre)


Esta pequena edição de autor reúne toda uma série de histórias curtas que estão associadas entre si por uma vontade comum, a de alcançar e transformar, através de várias estratégias, um fundo dos contos e tradições folclóricas portuguesas – o que não impede de arrolar a literatura, com Alexandre Herculano, Jorge de Sena e Zeca Afonso –, com várias roupagens. Tendo acompanhado o trabalho do autor há muitos anos, desde os seus primeiros trabalhos em fanzines no final dos anos 1990, fomos acompanhando estes trabalhos à medida que foram surgindo, inclusive tendo nós próprios colaborado, tendo incluído uma das histórias (“A Dama Pé de Cabra”), em inglês e a duas cores, na nossa própria publicação Quireward. (Mais)

Mas a reunião destes trabalhos todos num só volume vêm sublinhar a coesão final e desejada pelo autor. Se cada uma das narrativas pode ser lida (e foi-o, quando foram publicadas separada e paulatinamente pelas várias publicações) autonomamente, o seu conjunto assinala o desejo de querer criar um espaço comum e uniforme. Os elementos comuns são claros e diegéticos, sob a forma de personagens que se cruzam ou linhas de intrigas numa história que se revelam numa outra.

A dama pé de cabra, os gambuzinos, a coca, lobisomens, e muitas outras figuras ganham aqui corpos consistentes e visual e estilisticamente modernos, nua conhecida figuração de Santo, a um só tempo de um grande dinamismo cartoonesco informado, a um só tempo, por toda uma tradição da animação clássica, a banda desenhada infanto-juvenil belga (ali pela Escola de Marcinelle), e dos comics norte-americanos. Com efeito, a nível da visualidade, o autor é capaz de criar promessas electrificantes pelo seu composto sentido de design de personagens, que o inscreve num território muito alargado, quentanto poderia arrolar João Abel Manta como David Rubín.

Já no que diz respeito à narrativa propriamente dita, ou ao storytelling próprio da banda desenhada, o autor sofre de uma certa “pressa”. Isto é, existe matéria suficiente para criar páginas de história, que geridas de uma forma mais classicizante, normativa e, até mesmo, digamo-lo, “comercial”, poderia dar origem a uma série de livros apetecíveis ao mercado que se tem formado nos últimos anos. Todavia, o autor prefere criar grandes blocos de texto sob a forma de legendas ou balões de fala imensos, e avançar a história pelo texto, e menos pelas acções, e também de concatenar as acções em momentos-chave, mas espaçados em termos cronológicos e dramáticos. Na primeira história em que introduz o Padre Motard, tal como no prólogo da origem dos Super Pastorinhos, o autor mostra a capacidade que tem em criar páginas claríssimas, densas de promessa e com uma calmia diferente. Na cena da “caçada” em “Os Vampiros”, o autor mostra a sua capacidade de organizar uma acção contida. Mas em todos esses casos desembocam sempre num desenvolvimento menos estruturado do que poderia ser, preferindo uma espécie de “fuga em frente”.

Os conceitos que Santo apresenta demonstram que não apenas é um autor plenamente consciente da história dos géneros com os quais quer dialogar – leitores de Hellboy, The Invisibles, Preacher, entre outras possibilidades de intertextualidade, encontrarão aqui muitas afinidades – como um autor interessado em ser atento à realidade portuguesa. Os elementos que compõe estas histórias são ancorados na nossa terra e entorno: a paisagem, as personagens, a mesquinhice e a beatice, um pragmatismo casmurro e uma indiferença ao intelectualismo. E os alvos das críticas mais virulentas do autor são instituições cujo poder não esmoreceu em 40 anos de democracia: a pequena burocracia, Fátima e a Igreja Católica, e o chico-espertismo.



No entanto, também nessa dimensão espreitam esforços menos elegantes. Por um lado, o humor de Santo foi sempre corrosivo e iconoclasta, por vezes mesmo num tom algo juvenil, imaturo. É preciso aceitar, porém, que esses são instrumentos efectivos para desmontar uma certa posição bem-pensante que, por vezes, algumas das narrativas de fantasia tocando os mesmos temas acabam por formar, já que mesmo a literatura e cinema de terror avançam sempre uma filosofia conservadora e moralista. Aqui não se encontrará isso, apesar do título e até, certamente algo que o autor pondera constantemente, no nome do criador. Por outro lado, algumas das críticas ou das desmontagens desses poderes são feitas através de um tom algo condescendente e simplista, o que torna os “vilões” algo unidimensionais.

Tendo um formato pequeno, e reunindo trabalhos que, na maioria dos casos, foram pensados para um formato A4, a leitura sofre de uma legendagem por vezes cerrada (admitimos, difícil para míopes como nós) e a escolha cromática é por vezes errática e torna igualmente difícil a leitura das imagens.

Livro Sagrado é, apesar destes escolhos, um genuíno esforço de criar uma série de narrativas inteligentes e ancoradas na nossa tradição popular, com linhas de desenvolvimento promissoras, e esperemos que a sua recompensa seja a continuidade noutros capítulos futuros.

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