29 de setembro de 2019

O leite da via láctea. Manuel Zimbro (Sistema Solar)

Por ocasião da exposição história secreta da aviação e alguns meteoritos, na galeria Quadruma maior retrospectiva alguma vez feita da obra de desenho, pintura, esculturas e instalações de Manuel Zimbro (1944-2003), a editora Sistema Solar - continuação da “verdadeira” Assírio & Alvim após a sua absorção pela Porto, e que havia mantido uma relação íntima com o artista enquanto divulgadora dos seus trabalhos quer enquanto espaço expositivo quer enquanto plataforma editorial incontornável - publicou este volume. Le lait de la voie lactée é um fac-símile, “warts and all”, de um projecto de álbum de banda desenhada que o autor terá criado “no início dos anos 80, quando Manuel Zimbro habitava em Paris”, lemos numa nota no final.  (Mais)
O livro não está completo. Temos acesso a todas as pranchas e é possível “ler a história” completa. Mas algumas páginas têm apenas a arte da linha desenhada, em alguns casos apenas mesmo o esboço, quase todas com pequenos apontamentos de correcções a fazer ulteriormente ou anotações diversas, o texto apenas colocado de forma temporária. É uma situação paradoxal. Não é uma narrativa incompleta, não se trata de um primeiro capítulo de algo maior que jamais se concretizou, não é algo interrompido e perdido e que nos obrigaria a um exercício mental de imaginação a completar o pensamento criativo do autor. Bem pelo contrário, é um ensaio, já intenso, mesmo que os figurinos não tenham sido cosidos ainda, a iluminação não esteja controlada de forma definitiva, haja ainda a possibilidade do cenógrafo subir ao palco e corrigir um gesto, uma posição ou burilar, no momento, a exactidão de uma frase. 

O leite da via láctea é, apesar de se verem as estruturas dos bastidores, um texto coeso, coerente e passível de uma satisfação narrativa e de significado junto aos seus leitores.


Colaborador e, mais tarde, companheiro da artista Lourdes Castro, o artista terá explorado as mais diversas disciplinas artísticas e campos da experimentação formal e conceptual. A sua obra assinada a título pessoal revela um conjunto de características perenes e investigadas com variações mas absoluta coesão. Em primeiro lugar, uma particular atenção que dá à Terra, não necessariamente aos seus “frutos” - isto é, todos e quaisquer dos elementos que podem ser vistos, de um ponto de vista antropocêntrico, “produtos”, “consumíveis”, “úteis”. A Terra como ela é, sobretudo os aspectos formais que oferece a um olhar atento, ele próprio ao rés do chão (um olhar que secciona, que recorta, que isola, que explora o intervalo entre formas, que procura interrogar o eidos): um molho de caruma, uma sâmara rodopiando até ao chão, a asa solta de um insecto, a irmandade das formas de seixos, a forma como um torrão de terra se coalesce em torno de uma raiz qualquer. A exposição indicada acima criava uma espécie de afinidade formal entre insectos, folhas, e construções semi- ou para-maquínicas pelo homem, com origens nessas mesmas formas. Havia um hausto, portanto, a atravessar todas aquelas peças (cuja narrativa expositiva para muito contribuía). 


Sem esquecer o mais absoluto virtuosismo do seu desenho burilado, e atenção de recorte para com o mais ínfimo dos detalhes que a terra oferece. Os seus desenhos de torrões de terra, por exemplo, recordam-nos, formal e espiritualmente, O grande molho de ervas de Dürer. 

palavra “espiritual” não surge aqui de modo displicente ou ilustrativo ou metafórico. Zimbro é, também, um autor budista, com incidência na escola zen. Desconheço se “praticante” ou “crente”, se for esse o modo de falar de tal mundividência, mas os princípios de imanência propostos por essa religião, a descoberta interior da afinidade entre o seu humano e as outras criaturas, inclusive não-animadas, é patente na sua prática e expressa neste álbum.  

Existem alguns casos, bastas vezes discutidos neste espaço ou noutras ocasiões, do encontro entre os mundos sociais e criativos da banda desenhada com o das artes, num seu sentido mais alargado. Não estamos a falar do trabalho “alimentício” ou “de juventude” de artistas, os quais, mal puderam, fugiram a sete pés dessa necessidade (um Júlio Resende ou um Gustave Doré), ou sequer de desvios no qual a prática se pautava pelas mesmas interrogações temáticas ou formais da “obra maior”, mas em pouco desviavam a linguagem da banda desenhada no interior dela mesma (Almada Negreiros, Cottinelli Telmo). E muito menos estamos a falar de reaproveitamentos ou apropriações de elementos formais da banda desenhada por autores das artes plásticas, os quais se mantêm bastas vezes por aspectos superficiais. Haverá casos de completo domínio entre um território e outro, e até mesmo de mestria e invenção (Lyonel FeiningerFrans Masereel), e há naturalmente os grandes experimentadores no seio do próprio território (Vaughn-James, Manouach, Franz, etc.). Mas depois há casos mais subtis e detalhados entre uma exploração que acompanha o ritmo de descobertas da própria prática do artista e se expressa por uma forma muito próxima do da banda desenhada “clássica”, ao mesmo tempo que contribui para que essa outra disciplina, não obstante a sua aparente ou histórica falta de legitimidade ou valorização, medre em direcções expansivas. 

São esses os casos de, por exemplo, Philip Guston e a sua série em torno de Nixon, Poor Richard, Eduardo Batarda e O Peregrino BlindadoMatt Mullican e Lawrence Weiner em In the Crack of Dawn. É discutível se Le lait de la voie lactée pertencerá a esse mesmo número. Na ausência de informações mais específicas do contexto, a única coisa que parece clara é que Manuel Zimbro terá criado este livro com o claro intuito de vir a ser publicado no mercado francês/francófono, estando a viver em Paris. O formato das pranchas, o número de páginas, a tipificação da composição de página, e até mesmo algumas características de figuração, de linha, do modo como os diálogos vão expondo os temas, tudo aponta para um conhecimento íntimo, competente, e até apaixonado pelo meio da banda desenhada dita franco-belga.  

Ainda assim, de acordo com Celso Martins, crítico de arte que apresentou o livro na Tinta nos Nervos, garante-nos que não terá sido uma “encomenda”, mas antes uma vontade do próprio Manuel Zimbro, em simplesmente fazer algo que lhe surgiu de intenso interesse. E que, na mesma lógica, se terá esgotado ou atingido um seu máximo interior, e ficaria neste estado “inacabado”, para sempre. Claro que jamais pensaríamos que Le lait teria sido um projecto discutido com os editores da Casterman ou da Dargaud, mas é algo que não destoa de forma alguma com todo o catálogo, por exemplo, das space opera psicadélicas da Losfeld, ou das investigações semi-alucinadas dos autores da Métal Hurlant, e, claro está, de toda a cultura da época, desde 2001: Space OydsseyThe Dark Side of the Moon ou Um Estranho numa Terra Estranha, de Robert A. Heinlein. 

Por um lado, podemos entender este livro como seguindo princípios organizativos bastante clássicos e expectáveis. Um grupo de personagens junta-se numa missão em busca de um fito, que lhes é atribuído por um ordenador, e atravessa paisagens diversas nas quais reúnem apoios, encontram obstáculos, metamorfoseiam as relações e dinâmicas internas ao colectivo, até que superam as provas e espoletam a transformação do mundo à sua volta (ou que habitam). Por outro lado, todavia, o livro reveste-se de princípios menos normalizados. Afinal de contas, as personagens são um nariz, uma boca, uma mão, uma orelha e um olho antropomorfizados: têm pernas e braços e falam. O mundo que habitam é o Planeta Corpo, e o Homem, que surge encarnado numa perpétua deflagração vulcânica, insta os cinco sentidos a não mais se distraírem nas suas características individuais, e atinjam algum Entendimento (em maiúscula, no texto). A mensagem é transmitida por uma gota de água, logo transformada em onda viva, saída do Mar da Razão. 


O que observaremos, então, é uma espécie de viagem iniciática dos cinco sentidos, atravessando toda uma paisagem fantástica, primeiro atravessando os Viveiros da Imaginação, no Mar do Coração, para depois ultrapassarem o Vale da Memória, a Floresta da Vontade, cortada pelo rio da Razão, seguido da travessia do Deserto das Costas e finalmente atingir a Região Sagrada (o livro contém mesmo um mapa desdobrável destas paragens, com um esquema infográfico que permite perceber em que momento/página do livro se encontra determinada acção em relação a esse mundo)... No fim, o cumprimento deste longo périplo representará a paulatina libertação de uma forma enclausurada: o Corpo deveria ser uma forma redonda, e a distração dos sentidos havia-o tornando num cubo; a viagem dos sentidos, as interrogações, diálogos e lições que atingem com as outras personagens, permitir-lhes-á libertar essa pátina grossa do Planeta. 


Durante a missão, os diálogos e as acções convidam a interpretações “cheias”. A dado, momento, a título de exemplo, encontram dois pequenos lagos, o da Consciência, menos profundo, e por isso a transbordar, e o da Iluminação, que “não tem fundo”. Os sentidos escolhem o primeiro para tomar um banho restaurativo. Noutro momento, um dos apoiantes na travessia é um jovem girassol, de uma tribo que durante o dia está imóvel e silenciosa, porque são o sol, e à noite, apesar de conseguirem falar, optam antes por dormir 

Há, então, uma clara possibilidade de leitura alegórica de toda esta aventura, no mais pleno sentido da palavra no contexto literário e até da cultura popular, mesmo que esta em particular se revista dessa outra possibilidade, de uma interpretação mais profunda, filosófica, existencial e espiritual.  

A saga do Incal, de Jodorowsky e Moebius, teve início em 1981, e acredito que seria interessante uma leitura comparatista. Os instrumentos, os géneros e, claro, a fortuna comercial, distanciam ambos os títulos, mas haverá preocupações alegóricas que poderão ser bastante úteis. Há uma cena, recordemo-nos, em que o Incal Luminoso secciona John Difool em quatro partes, cada qual correspondendo a uma parte do corpo e aos “humores” (tal como compreendido na medicina de Hipócrates), e apenas na sua fusão e equilíbrio se encontraria a justa medida. Até certo ponto, é esse o fim desta “comunidade” dos sentidos, como se compreende na justa cena final, em que cada um dos sentidos se “apercebe” e comunica com o Homem. Esse é mesmo o momento, à beira da integração (não “dissolução” no Homem), que eles ganham a maior medalha, a de serem personagens. 

Porém, a comparação destas obras levaria igualmente a uma grande distinção, de não somenos importância. É que Jodorowsky (e noutra escala Moebius), apesar a sua aparente iconoclastia, irreverência e variedade de pesquisa artística, é alguém que crê na Transcendência, e até mesmo impõe novas hierarquias de valor (senão mesmo de poder). Há sempre algo exterior ao mundo, ao Homem, onde se encontra o sentido, e é preciso apelar a esse poder e exterior para (re)valorizar a existência. Enquanto que Zimbro, nas suas obras, escritos e neste mesmo livro, parece antes criar um discurso da Imanência, em que é o envolver directo e concreto com o mundo que faz emergir o sentido. Mais do que isso, a importância do corpo, dos sentidos, nesse mesmo papel, é crucial.  

E a própria estrutura do livro, a sua narrativa, os seus lentos ritmos, a natureza da caminhada que simplesmente avança, são em si mesmos sinais dessa mesma entrega a que o leitor se deve submeter, para partilhar a descoberta dos protagonistas: ser, ser simplesmente, com a consciência, ou melhor, se possível, a iluminação, de se ser completamente.  
Nota: agradecimentos à editora e à Ar.Co, pela oferta do livro e convite a pensar sobre o livro, e a Celso Martins, pelo apoio na conversa sobre o mesmo na Tinta nos Nervos.  

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